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Crônica | Quando me tornei um africano

Essa crônica é pra debater com Emicida sua posição sobre a identidade negra que segundo, o fato mais importante da negritude é sempre ter tido uma "relação não belicosa com a realidade". Algo que discordamos.

Renato ShakurEstudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

quarta-feira 15 de março de 2023 | 23:49

Eu tenho um pouco de dúvida em precisar a primeira vez quando me senti negro, ou melhor, quando me tornei africano.

Talvez tenha sido em 1857, quando vi a grande paralisação de negro escravizados, libertos e livres que trabalhavam ao ganho. Para quem não sabe, o ganho é um trabalho duro, difícil exigia muito de nossos irmãos, se assemelha hoje em algum sentido ao trabalho de entregador de aplicativo, cujo objetivo central é circular mercadorias. Era essa a função do ganho essencialmente, tudo que circulava era carregado por mãos negras.

Cartas, pessoas, mercadorias do porto e até fezes, sério, até isso eram eles que carregavam. Os ganhadores também trabalhavam no comércio como caixeiros, nas quitandas, como sapateiros e por aí vai. Bom, não vou me alongar nisso, mas acho que já deu pra entender a importância dos trabalhadores escravizados e livres no século XIX.

A greve deles foi incrível. Lembro muito bem que a cidade de Salvador amanheceu parada, só circulava vento e olhe lá. Me perdoem a brincadeira, mas ver a cara de tacho dos senhores e da polícia era impagável. Mas também não é exatamente sobre isso que queria falar. O que mais me encantou era como os ganhadores se organizaram para concretizar a greve. Eles organizavam o ganho através dos cantos que era uma forma africana de organização social que transpuseram à realidade escravista. Através deles se sabia qual trabalho estava disponível, quem iria desempenhá-lo e qual seria a recompensa por ele.

Até aí tudo bem, faça sol ou chuva eles estavam trabalhando. De um dia pro outro chegou um comunicado que os ganhadores da cidade deveriam usar uma corrente no pescoço, assim como usam os animais, com uma identificação para facilitar a fiscalização (e repressão, é claro) das autoridades. Aí passaram dos limites. Pronto, aquele elemento éticno e cultural africano, o canto, passou a ser a forma de organização da greve. Cada próximo passo da greve era organizado por ali. Eles usaram a cultura negra como um ponto de apoio de luta por seus direitos, antecipando séculos antes a forma de luta do proletariado brasileiro em diversos enfrentamentos com a burguesia. Não poderia ser diferente, aí eu tinha me tornado um africano.

Eu queria poder contar mais e mais histórias desse tipo, porque essa foi apenas uma das inúmeras vezes que a história mostrou que não haveria limites entre a revolução e o negro. Mas tem um relato de um escravista que odeia o nosso povo sobre o Quilombo dos Palmares, o padre Antônio da Silva, que queria compartilhar com vocês:

“O tempo o fez crescer na quantidade e a vizinhança dos moradores o fez destros nas armas. Usam hoje de todas, umas que fazem,outras que roubam e muitas que compram. As que fazem são arcos e flechas, as que roubam e compram são as de fogo. Os nossos assaltos os têm feito prevenidos e o seu exercício os tem feito experimentados. Não vivem todos juntos, porque um sucesso não acabe a todos, em palmares distintos têm sua habitação, assim pelo sustento como pela segurança. São grandemente trabalhadores, plantam os legumes da terra, de cujos frutos formam providamente celeiros da guerra e do inverno. O seu principal sustento é o milho grosso, dele fazem iguarias. As caças os ajudam muito, porque são aqueles matos abundantes delas. Toda a forma de guerra se acha neles…” (1)

Quando li isso pela primeira vez descobri o que me fazia sentir negro. Só de imaginar que naquela época a identidade negra para os palmarinos e palmarinas significava se enfrentar como numa guerra, sem conciliação, contra aqueles que queriam nos privar de toda a liberdade, é de se encher os olhos de lágrimas e se orgulhar. É isso, toda forma de guerra também se encontra em mim e isso é maravilhoso.

Conheci também a história de um tal Agostinho José Pereira, o Divino Mestre, que perambulava pela cidade de Recife lá próximo dos dias que antecipavam a insurreição praieira em 1848. Ele andava com uma bíblia e um texto intitulado “ABC do Haiti”, além de centenas de seguidores que adoravam ouvir suas “divinas” palavras. Na bíblia estava grifada apenas as passagens que falavam sobre o fim da escravidão e aquele papel cujo título é bem sugestivo eram versos que diziam para os trabalhadores livres e escravizados se inspirarem na revolução do Haiti, a revolução de negros que aboliu a escravidão e derrotou Napoleão Bonaparte.

Por obra das palavras de Emicida precisei rememorar nossas histórias, e a contrapelo do que ele acha, o negro nunca teve uma "relação harmônica" com nenhuma classe que não fosse a sua, a trabalhadora. Só abriu mão da luta contra sua dura e cruel realidade nos livros dos historiadores capitalistas. O que não faltam são lindas e grandiosas histórias que mostram que nunca nos demos bem com a realidade do racismo e da exploração.

E quantas histórias… é difícil dizer quando de fato me tornei um africano, mas me torno negro toda vez que luto, como meus antepassados.

Veja o vídeo do Emicida na íntegra aqui

Notas:

1. Guerra contra Palmares: o manuscrito 1678, pp.18-19




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