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GRAMSCI E TROTSKY | Revolução Passiva, Revolução Permanente e Hegemonia

segunda-feira 23 de março de 2015 | 20:59

É um clássico “lugar comum” da maioria dos intelectuais gramscianos (comum também a alguns anti-gramscianos furiosos) a apresentação das teorizações de Gramsci sobre a revolução passiva como o “fundamento objetivo” de uma estratégia “hegemônica” oposta à revolução permanente. A partir desta ótica, à capacidade do capitalismo de operar recomposições de todo tipo é necessário opor uma luta política de tipo acumulativo, cujas definições estratégicas não vão mais além, no melhor dos casos, da constituição de um “bloco popular” que opere uma mudança na relação de forças, ou, em casos menos afortunados, diversas variantes que vão desde as “esquerdas amplas” (Europa) até “governos progressistas” (América Latina).

Nas análises de Gramsci está presente a pergunta de se “existe uma identidade absoluta entre guerra de posição e revolução passiva? Ou ao menor existe ou pode ser concebido todo um período histórico no qual os dois conceitos devem se identificar, até o ponto no qual a guerra de posição se transforma em guerra de manobra?” (Cadernos 15 § 11). Levando em consideração o contexto da reflexão do comunista italiano, podemos sustentar, sem temer estar forçando um “uso”, que esta pergunta aponta mais a justificativa da guerra de posição devido a uma correlação de forças dada do que à adoção da revolução passiva como política própria.

A “antítese vigorosa”, as tendências ao extremo e a revolução passiva como “moderador”

Peter D. Thomas1 assinala bem que, nos Cadernos do Cárcere, a revolução passiva emerge como expressão da “crise orgânica” da sociedade burguesa tal como uma antítese ou fracasso da revolução ativa das classes populares.

É precisamente nesta figura da “antítese vigorosa” que Peter D. Thomas resgata dos Cadernos 15 § 62 a chave para pensar as relações entre revolução passiva e revolução permanente como dinâmicas contrapostas inerentes ao desenvolvimento da luta de classes no interior da sociedade burguesa.

E é no ano de 1848 o ponto de referência de Gramsci para pensar a relação entre revolução passiva, revolução permanente e hegemonia. O momento no qual ganha destaque esta “antítese vigorosa” das duas tendências: de um lado, o proletariado impõe a república burguesa rodeada de instituições sociais e luta para ir além da mesma; do outro lado, a burguesia provoca o proletariado ao combate para lhe infligir uma derrota. Esta derrota abre caminho para o bonapartismo e a posterior “normalização” da sociedade burguesa.

Na Alemanha, o processo se desenvolveu de forma mais conservadora, o partido democrático traiu os operários, porém estes não chegaram a se enfrentar com a burguesia, como na França. Mesmo assim, nos dois casos surge a necessidade de uma estratégia independente da burguesia por parte da classe operária.

É assim que surge o problema. Porque sem a “revolução permanente” de 1848, a consequente contrarrevolução burguesa e posteriormente a Comuna de Paris teriam sido impossíveis as “revoluções passivas” posteriores.

Seguindo a própria ideia gramsciana do Estado integral (ou ampliado)2 como unidade da ditadura e da hegemonia, a revolução passiva desloca a contrarrevolução quando esta não é diretamente necessária. Isto significa dizer que todas as formas de reação da burguesia e de seu Estado frente a luta de classes não se reduzem à revolução passiva (como pareceria ter pressuposto o próprio Peter D.Thomas).

Neste marco, se a luta de classes contém uma “tendência aos extremos” clausewitziana, cuja fórmula Marx expressou no grito de guerra da revolução permanente, a revolução passiva se introduz como um mecanismo “moderador” entre revolução e contrarrevolução.

De um século a outro: Revolução “pelo alto” e Revolução-Restauração

Retomando a diferença que A.Morton3 levanta entre as duas acepções da revolução passiva (como “revolução pelo alto” que forma o Estado nacional com métodos conservadores, e como “revolução-restauração” que toma as demandas dos de baixo integrando-as em uma nova política que as expropria mas não as resolve), no século XIX as “revoluções passivas” tinham um “caráter duplo”, já que, por um lado, cumpriam tarefas historicamente progressistas, mas com métodos conservadores.

Terminada a luta da burguesia contra a velha sociedade, a revolução passiva se caracteriza por garantir a duração ou sobrevivência de um regime social que se tornava historicamente conservador. E neste contexto, o caráter duplo da “revolução pelo alto” que tinham as revoluções passivas do século XIX tende a se diluir em função do aspecto mais puramente “restaurador”. Neste marco, a pergunta de Gramsci, de se o fascismo poderia constituir algum tipo de revolução passiva (Cadernos 10 § 9), ainda que mostre uma tendência à generalização do mecanismo a que fizemos referência em outros artigos, também coloca um limite à leitura da “revolução passiva” como algo “progressivo”.

Terminada a luta da burguesia contra os vestígios de um regime anterior, que possam ser levados à frente sem que a luta “democrática” se transforme em luta social e sem que isto represente um “progresso” (dado característico das revoluções passivas do século XIX), o que fica da revolução passiva no século XX (e no século atual) é um mecanismo de expropriação das reivindicações populares pela via de “renovações”, “modernizações” e “recomposições” parciais, que preparam o caminho a restaurações mais de direita em sua totalidade.

Neste contexto, devemos agregar que durante o século XX foi dissipado qualquer indício de “progressismo” ou “relação contraditória entre progressismo e conservadorismo” no caráter “moderador” que havíamos atribuído à revolução passiva durante o século XIX. A revolução passiva [no século XX e hoje em dia] se apoia nos resultados obtidos previamente pela contrarrevolução ou prepara o caminho para que esta chegue em melhores condições. Segundo a profundidade da contrarrevolução ou da crise prévia, as recomposições se aproximam mais de “revoluções-restaurações” ou a “passivizações restauradoras”.

De outro modo são ininteligíveis as recomposições estatais do segundo pós-guerra na Europa Ocidental, sem a Segunda Guerra Mundial e sem o papel do stalinismo, primeiro como degeneração da direção da Revolução de Outubro e depois da III Internacional; até chegar à “institucionalização internacional” que deu nascimento ao que ficou conhecido como “mundo de Yalta”.

O stalinismo desempenhou um papel contrarrevolucionário em escala internacional, tentando evitar que as revoluções saíssem de seu controle ou realizando “expropriações pelo alto” nos territórios que ficaram sob seu controle depois da Segunda Guerra (reproduzindo o mecanismo da revolução passiva) e, deste modo, foi um garantidor da estabilidade da “democracia ocidental” durante o segundo pós-guerra.

E por pior que pareça a muitos, a “revolução passiva” termina sendo uma confirmação da Teoria da Revolução Permanente: as lutas nacionais, populares e democráticas que não avançam a uma luta contra o capitalismo e pelo poder operário, acabam desviadas, contidas, abortadas, submetidas a restaurações que tendem à constituição de um regime muito parecido ou pior que o anterior (Egito). Em resumo, a “revolução passiva” se torna um dos principais mecanismos preventivos para bloquear a dinâmica permanente da revolução.

Por este motivo a oposição abstrata entre hegemonia e revolução permanente termina, de alguma forma, na reivindicação da revolução passiva como programa e como estratégia.

Passado e Presente da permanência do movimento

Tendo afirmado em linhas gerais as relações entre revolução passiva e revolução permanente, tentaremos pensar as relações entre hegemonia e revolução permanente na atualidade. Para isto tomaremos o artigo “Por uma teoria da hegemonia” de Fabio Frosini4. Ele, diferente de outras posições gramscianas, busca estabelecer uma relação de continuidade entre a revolução permanente e a hegemonia.

Frosini cita o Caderno 1 §44, no qual Gramsci afirma:

A propósito da consigna “jacobina” lançada por Marx à Alemanha em 48-49 deve-se observar seu complicado destino. Retomada, sistematizada, elaborada e intelectualizada pelo grupo Parvus-Bronstein, se manifestou inerte e ineficaz em 1905 e depois: era uma coisa abstrata, de gabinete científico. A corrente que opôs a ela em sua manifestação intelectualizada, ao contrário, sem usá-la “de propósito” a usou de fato em sua forma histórica, concreta, vivente, adaptada ao tempo e ao lugar, como que brotando de todos os poros da sociedade que havia que transformar, da aliança entre duas classes com hegemonia da classe urbana.

Não deixa de ser estranha a ideia de uma teoria “abstrata” que se manifeste “inerte e ineficaz” possa ser empregada de fato de maneira “histórica, concreta, vivente, adaptada ao tempo e ao lugar”. Ou melhor dizendo, parece uma falsa oposição entre realpolitik e teoria. Mas inclusive com esta objeção, é interessante como o próprio Gramsci em sua oposição à Teoria da Revolução Permanente de Trotsky como teoria, de fato a reconhece, afirmando que foram os bolcheviques os que a levaram adiante e que esta teoria afirmava as linhas gerais corretas de como seria o desenvolvimento da revolução russa, tanto que nos fatos Lênin e Trotsky confluíram na política de “aliança entre duas classes com hegemonia da classe urbana”. Isto aconteceu depois que Kamenev e Stalin, na ausência de Lênin, apoiaram o governo provisório entre fevereiro e abril (questão que Lênin corrigiu com suas Teses de Abril).

Por outro lado cabe esclarecer que Gramsci confunde a Teoria da Revolução Permanente expressa em Resultados e Perspectivas, que era uma teoria especialmente para a Rússia, com a versão “madura” baseada na generalização das lições estratégicas das experiências protagonizadas pelo movimento comunista nos anos ’20, em especial a revolução chinesa de 1925-1927, a partir da qual Trotsky generalizou a teoria (enquanto Gramsci se limitava na China à política de Assembleia Nacional Pan-Chinesa, sem hegemonia da classe operária).

Neste contexto, se é correto o critério de Karl Korsch, de que se deve entender o marxismo como uma teoria da revolução, podemos considerar a Teoria da Revolução Permanente como o momento mais elevado do desenvolvimento da teoria marxista no Século XX, principalmente pela mudança no marco teórico que ela implicou em relação às concepções “novecentistas” que sobreviveram até os anos 20 (notadamente, a ideia de que a revolução proletária correspondia somente aos países “avançados”).

Mas para sair da oposição estéril entre “hegemonia” e “revolução permanente”, Frosini tenta relacioná-las introduzindo uma variável, porém, sem mudar o ponto de vista de Gramsci:

Segundo Gramsci há um forte nexo entre a consigna lançada por Marx, o jacobinismo em sua efetividade histórica e a organização hegemônica correspondente ao Estado moderno (hegeliano!), ou seja a hegemonia das classes produtivas urbanas sobre os camponeses. Em resumo: a única maneira de utilizar hoje a revolução permanente – diferente de Parvus e Trotsky, que a reduziram a uma “teoria” (a “sistematizaram”) – é pensa-la histórica e politicamente, como estrutura da hegemonia; mas também seu contrário: a única forma de pensar a hegemonia à altura de Marx (sem deixar a hegemonia cair em uma composição “passiva” do tipo hegeliano, ou deixa-la derivar em um “republicanismo” vazio e finalmente retórico do tipo jacobino-radical) é ancorá-la à revolução em permanência.

A definição implícita em seu raciocíno que queremos resgatar seria mais ou menos assim: “opor a hegemonia à revolução permanente tem como resultado algum tipo de reivindicação da revolução passiva como programa pela positiva”.

Frosini coloca isto da seguinte forma:

….a diferença entre a composição “passiva” dos conflitos e seu decolar “em permanência” marca a diferença entre hegemonia burguesa e proletária…

E, finalizando seu artigo ele defende:

Entendida assim a hegemonia proletária é a “forma atual da doutrina ‘quarentaoitista’ [1848] da ‘revolução permanente’, ou seja que conserva a exigência da permanência do movimento uma vez que a sociedade civil hegeliana tenha sido repensada não somente como “sistema de necessidades”, mas também como parte do Estado, ou melhor, como aquele lugar no qual decisivamente a batalha política seja ganha ou perdida.

Neste contexto, para pensar as condições de atualidade da Teoria da Revolução Permanente, temos que voltar a trabalhar sobre as relações entre a “fórmula de Marx” e “fórmula de Gramsci”. A primeira, centrada na necessidade de uma localização independente da classe operária frente às frações burguesas que tentavam limitar a radicalidade das revoluções de 1848; e a segunda, sobre a hegemonia (sempre combatendo o relativo deslocamento que este faz da centralidade da classe operária a uma espécie de “bloco nacional-popular”) fincando o pé na necessidade de que a classe operária conquiste a direção “intelectual e moral” das classes “subalternas” (oprimidas socialmente e sem representação política própria) em sociedades nas quais o Estado se apresenta como estado “integral” (ou estado ampliado) cooptando as organizações operárias como base da ordem burguesa. E finalmente a relação com a “formula de Trotsky” que leva a “permanência do movimento” a um novo nível de generalização teórica, fundamentada na experiência histórica: de democrático-burguesa a socialista, de nacional a internacional, como revolução permanente no interior da sociedade pós-revolucionária.

Se é verdade que a “fórmula de Trotsky” contém as duas anteriores o inverso não é verdadeiro. O certo é que para afirmar tal coisa é necessário precisar em qual sentido as contém.

Se tentamos pensar a dinâmica atual da revolução permanente podemos dizer que, diferente do período do segundo pós-guerra (no qual essa dinâmica ficou bloqueada e a revolução foi transferida à periferia enquanto havia estabilidade nos países centrais), enquanto no ascenso de 68/81 houve uma tendência a confluir novamente as metrópoles e a periferia, e houve retrocesso de conjunto durante a “restauração burguesa” no neoliberalismo; na atualidade, ela volta a se generalizar em uma dinâmica mais “totalizante” na qual podem ocorrer processos nos diferentes continentes sem que nenhum deles tenha a exclusividade das crises e das revoluções, nem, tampouco, da estabilidade.

Por estes motivos a permanente de Trotsky goza de boa saúde. Entretanto, como a classe operária ainda intervém como um ator dentro dos movimentos populares heterogêneos sem conquistar ainda a direção, mantém-se vigente a “fórmula de Marx”. Ou seja, o programa permanentista passa em primeiro lugar pela conquista de uma posição independente da classe trabalhadora para que esta avance em se reconhecer como sujeito e, ao mesmo tempo, se coloque a necessidade hegemonizar aos demais setores oprimidos.

Em seu momento tanto Trotsky como Gramsci analisaram as mudanças nas formas estatais durante o período do entre-guerras. Coincidiram em muitos aspectos sobre os processos de “ampliação” do Estado com o fim de conter ou subordinar as tendências da luta de classes e as organizações operárias 5. A isto devemos acrescentar a relativa generalização das características “ocidentais” à maioria dos países (Estado “ampliado”, baseado na extensão da democracia burguesa, na estatização dos sindicatos e na formação da “opinião pública” através dos meios de comunicação). Pra enriquecer a teoria, isto faz com que a “fórmula permanentista” de Trotsky tenda a incorporar aspectos da “fórmula hegemônica” de Gramsci, que adverte que o inimigo a ser enfrentado é um aparato estatal “baseado em algo a mais” que a dominação pura e dura.

Neste marco a relação de complementaridade entre “revolução passiva” e “contrarrevolução” torna estéril a formulação da hegemonia como uma estratégia alternativa à revolução permanente, já que a única forma na qual a acumulação “hegemônica” pode transcender os mecanismos da revolução passiva (que buscam a constante apropriação das práticas dos setores operários e populares) é levando a “permanência do movimento” para além dos limites impostos por estes mecanismos, incluindo aí a etapa da luta política acumulativa.

Por isto, a revolução permanente pode ser a “estrutura da hegemonia” somente se a “permanência do movimento” é concebida a partir de uma estratégia que transcende a luta política acumulativa até a guerra civil e a tomada do poder pela classe operária. Ou seja, que a hegemonia se transforma em um momento da revolução permanente, nos dizeres de Gramsci, o momento onde a “guerra de posição se transforma em guerra de movimento”.

1-Ver “La hegemonía light de las nuevas izquierdas” em Ideas de Izquierda N° 8.
2- Ver “Trotsky, Gramsci y el Estado en Occidente” em Ideas de Izquierda N° 11
3- Morton, A.D., “Viajando con Gramsci: La espacialidad de la revolución pasiva”, em Modonesi, M. (Coordenador) Horizontes Gramscianos. Estudios en torno al pensamiento de Antonio Gramsci, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, 2013, pg. 99/125.
4- Frosini, F. “Hacia una teoría de la hegemonía”, en Modonesi, M. op. cit., pgs. 59/79.
5- Ver “Trotsky, Gramsci y el Estado en Occidente” em Ideas de Izquierda N° 11




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