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Sobre críticas mordazes e prognósticos pessimistas: um debate com Vladimir Safatle

Simone Ishibashi

Imagem: Zoltan Matuska
Créditos: Getty Images/iStockphoto

Sobre críticas mordazes e prognósticos pessimistas: um debate com Vladimir Safatle

Simone Ishibashi

Um artigo elaborado por Vladimir Safatle tem causado polêmica. Com título provocativo, "Como a esquerda morreu" publicado no jornal El País, o filósofo decreta o fim da esquerda. Fazemos coro com os que dizem que Safatle sempre merece ser lido. Mas não acriticamente, visto que a tese central do artigo aponta elementos corretos, e outros nem tanto. Mas sua carência mais evidente reside na ausência de uma saída à altura dos problemas que a nota aponta. Em outras palavras, Safatle oferece um texto em que a crítica mordaz combina-se à prognósticos pessimistas, e desemboca na proposição - algo subliminar - de uma saída equivocada. Vê-se então que nem sempre a agudeza para formular problemas e críticas, coincide com a mesma amplitude de visão para definir uma via certeira de resolvê-los.

Uma primeira questão que chama a atenção é o pessimismo. Em uma tacada Safatle, além de decretar a morte indiferenciada da esquerda em geral - muito embora depois trace uma linha de continuidade entre o PCB pré-golpe de 1964 e o PT atual, - ainda coloca quase como se estivéssemos vivenciando um regime fascista. O timing não é dos melhores, já que seu texto vem a público justamente em meio à maior greve dos petroleiros desde 1995. Greve de um setor enormemente estratégico, que já superou 15 dias, e que numa ação simbólica tem distribuído gás à população pela metade do preço. Esta importante mobilização dos petroleiros vem sendo ignorada solenemente pela mídia, sendo também uma ausência no texto de Safatle. Evidentemente que uma greve não é por si só capaz de reverter uma tradição de passividade de organizações políticas construída anos a fio, e tampouco está definido de antemão até onde pode chegar. Mas poderia ser o início de um novo momento, e certamente mostra que a suposta “vitória do fascismo” tem seus limites.

Para resumir parte das teses críticas de Safatle vaticina que após um ano de governo Bolsonaro o que se nota é que a esquerda “mais que falhou, morreu”. Que a reforma da previdência como ponto culminante do ataque à classe trabalhadora, não suscitou uma resposta como a que se deu na França, onde uma importante greve criou uma enorme crise para Macron. Aqui ao contrário disso, o que houve foi a aplicação por parte dos “governos de esquerda” em estados e municípios os mesmos ataques. Isso deriva, na opinião de Safatle, do horizonte “populista” ao qual se restringe a esquerda brasileira, cujo caráter nacionalista permitiria a unidade com setores da burguesia nacional. Nisso, para Safatle, PCB (com exceção de Marighela, a quem voltamos adiante) e o PT convergiriam.

O PCB cometeria esse erro pavimentando o caminho para o golpe de 1964. Já o PT inicia essa mesma trajetória na transição ao final da ditadura, anistiando militares torturadores. Desde então, o colapso do lulismo cedeu lugar à “emergência do fascismo”. A ultradireita recém nascida como aprofundamento do golpe de 2016 seria um duplo invertido do populismo encarnado pelo líder do PT. A diferença entre a duplicidade e a polaridade é ressaltada por Safatle para defender que há na realidade brasileira excesso do primeiro, e ausência do segundo. Assim, a partir desta conjunção de fatores a “esquerda brasileira” estaria sem capacidade de ação.

A análise de Safatle reveste-se, quando tomam-se apenas aos elementos críticos, de inegável veracidade. Decerto, que as estratégias encarnadas pelo PCB, e posteriormente pelo PT, são cada qual à sua maneira uma negação das potencialidades transformadoras da classe trabalhadora. Um balanço pormenorizado do PT teria que abarcar seu processo de “transformismo” de sua fundação até a ascensão de um primeiro governo social-liberal cujas intenções eram claras já na Carta ao Povo Brasileiro que pavimentou o caminho para a ascensão de Lula. Uma vez no poder Lula acenou com algumas concessões quando a economia internacional assim possibilitou, mas sempre se orgulhou de ter feito um governo em que “jamais os banqueiros ganharam tanto”. Esmiuçar esse processo transcende os limites deste artigo.

Aqui cabe apenas ressaltar que a impotência de tal projeto, efetivamente tornou-se ainda mais explícita com a escolha do PT de dialogar com os que conspiravam pelo golpe institucional de 2016, em detrimento do chamado a mobilização dos trabalhadores. O pavor da mobilização independente dos trabalhadores e das massas é patente na intelligentsia petista, como demonstra inclusive seu balanço das jornadas de junho de 2013, retratadas com horror como a porta de entrada para a extrema-direita. Tal avaliação é extremamente interessada e autocomplacente, já que anula justamente a responsabilidade que o PT teve para a ascensão da direita e da ultradireita.

O amor pela institucionalidade capitalista que o PT sempre teve, mesmo quando prendia-se Lula em meio à iminência das eleições de 2018, ou ainda a paralisia da burocracia sindical que auxiliou em momentos cruciais a organização do consenso sob o qual se assenta o poder das classes detentoras, quando deveria ser um instrumento de organização da classe trabalhadora, negando-se a unir as amplas e potentes fileiras dos trabalhadores do país, são exemplos desta estratégia que deve ser não apenas criticada, como superada em termos práticos e teóricos. Dessa maneira, não podemos mais que concordar com a falência dessa estratégia, que aliás só pôde ser identificada novamente com algo de “esquerda” pelo surgimento de uma ultradireita escancarada, em especial em sua verborragia, que esquerdizou o PT ao ponto de transformá-lo em “comunista” para dar a si própria um sentido de existência.

O PCB, por outro lado, antes do golpe de 1964 também marcou-se pelas vacilações, que cobraram um alto preço em vidas de trabalhadores e do povo, ceifadas pela ditadura militar. A Rebelião dos Marinheiros de 1963, importante levante de marinheiros de baixa patente que culminou na ocupação do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara de 25 a 27 de março motivado por demandas de melhoria das condições de trabalho, foi posta a perder pelas vacilações da direção do PCB. A exemplo de sua política nacional marcada pelo seguidismo a Jango, e à ala da burguesia nacional que este representava, o PCB impediu que se desenvolvesse uma aliança entre os marinheiros sublevados, os trabalhadores e camponeses organizados nas Ligas Camponesas, tal como debatemos extensamente aqui. Na atualidade, o PCB apresenta-se como uma agremiação com pouca influência para além da academia, e a declarada ausência de “centralismo teórico” serve apenas de cobertura para que ganhem terreno entre suas fileiras lamentáveis figuras que buscam reviver o stalinismo.

Seja como for, a crítica de Safatle ao PT ao colocar um paralelo com o posicionamento que Marighela assume contra o PCB após 1964, única reivindicação pela positiva em todo texto, ainda que indireta e sem compromisso por parte do autor, pode levar a que se substitua uma estratégia errada, por outra. Menos pacifista, decerto, mas nem por isso igualmente equivocada. Nas palavras de Safatle “(...) um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda”.

Carlos Marighela, inspirado em Che Guevara, Fidel Castro e Mao Tsé Tung, apesar de criticar a colaboração de classe do PCB, propõe uma estratégia que não supera os problemas que aponta. Não é o objetivo deste artigo esmiuçar as experiências da revolução cubana ou chinesa, ou de Marighela. Mas é preciso ressaltar que ainda que seja certo que o pacifismo e o reformismo são irmãos, isso não significa que não haja também um reformismo armado, ou que a luta armada não possa se opor à estratégia revolucionaria. A superação da política de colaboração de classe não depende apenas dos métodos empregados, se parlamentares ou em armas, mas também dos objetivos políticos que se almeja alcançar.

Para concretizar esta questão pode-se retomar que os objetivos políticos do Movimento 26 de Julho de Che Guevara não eram inicialmente a revolução socialista, mas derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista e restituir a Constituinte cubana de 1940, impondo certos limites à ingerência imperialista estadunidense, sem romper necessariamente com aquele. Objetivos políticos reformistas, portanto. Porém, a dinâmica de enfrentamentos entre os trabalhadores e camponeses de um lado, e o imperialismo por outro explode esta frente, e obriga o avanço contra a propriedade privada.

No escrito de Marighela A crise brasileira de 1966 ele diz que o combate à ditadura deveria englobar uma ampla aliança de todas as forças contrárias a elas. Em suas palavras “depende da unidade com a esquerda o êxito da unidade com as forças do centro opostas à ditadura, desde as que obedecem ao comando de Jango, às que são lideradas por Jânio, Kubitschek e outros”. O problema aqui não é a unidade de ação, ou seja de combate, com setores dirigidos por Jango, Jânio ou Kubitscheck contra a ditadura, desde que os trabalhadores mantivessem sua independência política. O problema reside em que na opinião de Marighela esta unidade de ação deveria se dar sob o objetivo estratégico de concretizar “as forças básicas da revolução antimperialista e antifeudal, nacional e democrática”. Ou seja, a partir de um programa político e estratégico que poderia ser tomado por alas da burguesia igualmente referenciadas em Jânio, Jango e Kubitschek, abrindo brechas para anular justamente a independência política dos trabalhadores.

Assim, se é verdade que o pacifismo e gradualismo semeados pelo PT devem ser superados, também é igualmente verdadeiro e nada menos importante que se elabore sob qual estratégia e um programa claro sobre como isso deve se dar. Mas Safatle ao colocar todo o relevo no problema da colaboração de classes de um ponto de vista centralmente orientado aos métodos de luta, ou dos acordos como o da transição pactuada da democracia para a ditadura, termina abrindo brechas para o embelezamento do reformismo armado como se esse fosse a superação do reformismo desarmado.

Retomando o exemplo nomeado pelo próprio Safatle. Na França a importante greve protagonizada por setores dos serviços mais estratégicos dentre a classe trabalhadora, com destaque para os transportes, conseguiram sustentar contra a vontade das direções sindicais uma greve que atravessou as festas de final de ano. Naquela ocasião a CGT queria desarmar a mobilização dos trabalhadores, e chamou uma trégua, propondo uma retomada apenas para o dia 9 de janeiro. Mas os trabalhadores criaram uma coordenação que representava, votava e organizava as ações a partir da base, o que fez com a greve se sustentasse, e se transformasse em um grande problema para Macron. Dentre os trabalhadores que se destacaram está Anasse Kazib, ferroviário e membro do portal Revolution Permanent, que conseguiu impor ser a voz da greve contra a burocracia sindical, e conta aqui a importância de uma estratégia clara para levar adiante qualquer luta seriamente, não apenas contra a reforma da previdência, mas no calor da qual se debatia entre os trabalhadores a necessidade de construir uma nova sociedade.

E isso exige uma crítica dura e profunda, mas ao mesmo tempo o abandono de todo o ceticismo, não em relação aos objetivos e modus operandi da esquerda que prima apenas pela atuação parlamentar e sindical, mas sobretudo em relação à classe trabalhadora. Porque não podemos deixar de notar que a morte decretada por Safatle à esquerda, e o quadro de ascensão fascista que pinta sugerindo uma vitória da regressão sem brechas alimenta apenas o ceticismo. Enfim, suas posições tão ácidas - e corretas - contra o PT, combinam-se a uma lacuna nada menor, ao não apontar como objetivo a construção resoluta de uma alternativa política ao próprio PT.

Não deveríamos, por exemplo, estar hoje colocando nossas forças para que a já citada luta dos petroleiros rompa o cerco imposto não só pela grande mídia, mas também pelas próprias direções burocráticas, e seja vencedora impondo uma primeira derrota a Bolsonaro? Portanto, não se trata aqui de clamar que a esquerda brasileira em “geral” está morta ou viva. Mas de tirar as lições das estratégias já provadas pela história, para superar heranças que seguem sendo um peso morto, de modo a criar condições para que se abra o caminho a novas alternativas políticas revolucionárias. Tais alternativas podem avançar em base às experiências e disposição de lutas que os trabalhadores, mesmo em uma situação nacional desfavorável. Superar o ceticismo é tão fundamental quando criticar agudamente.


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Simone Ishibashi

Rio de Janeiro
Editora da revista Ideias de Esquerda e Doutora em Economia Política Internacional pela UFRJ.
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