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SEMANÁRIO

Uma ponte para o atraso: o ataque de Bolsonaro aos Yanomamis

Cristina Santos

Ilustração: Juan Chirioca | @macacodosul

Uma ponte para o atraso: o ataque de Bolsonaro aos Yanomamis

Cristina Santos

Esta semana, Bolsonaro pisou pela primeira vez em uma terra indígena e o motivo da sua visita não poderia ser mais simbólico do que sintetiza a política do governo para os povos originários: a inauguração de uma ponte que facilita o acesso de garimpeiros às terras Yanomamis.

Os povos Yanomamis se tornaram tópico do debate nacional nas últimas semanas, primeiro após um bebê desta etnia de 1 ano (e apenas 3 quilos) ter morrido em consequência de desnutrição. Em abril, uma outra imagem de uma criança Yanomami em uma rede, com quadro de verminose e malária, causou grande comoção nas redes. Estes fatos por si já denotariam uma situação de extrema vulnerabilidade, mas além da fome e da calamidade sanitária, os povos Yanomamis combatem desde o final dos anos 80 a invasão do garimpo ilegal, que teve um salto no dia 10 de maio, quando garimpeiros abriram fogo contra uma aldeia Yanomami por terem construído uma barreira sanitária contra a covid-19. Com maior ou menor fiscalização, a atividade de garimpo ilegal nunca cessou na região e agora em meio à pandemia, garimpeiros querem o direito de levar o vírus para os indígenas.

Hoje, o garimpo ilegal tem um forte aliado no planalto, o próprio presidente da república e conta com o apoio ativo do Governador de Roraima Antonio Denarium do PSL, aliado de Bolsonaro. Esta semana, Bolsonaro pisou pela primeira vez em uma terra indígena e o motivo da sua visita não poderia ser mais simbólico do que sintetiza a política do governo para os povos originários: a inauguração de uma ponte que facilita o acesso de garimpeiros às terras Yanomamis.

Quanto à já limitada FUNAI, vem expressando o aparelhamento realizado pelo governo, à começar por ter hoje como chefe um ex-missionário evangélico, tratando o avanço do garimpo como um “conflito”, ou seja, como se houvesse uma relação equidistante e desacreditando as denúncias dos povos Yanomamis, como se fosse possível alguma neutralidade entre bandos armados atacando aldeias indígenas amparados nos desmontes dos direitos desses povos tomado como política de um governo de extrema direita como o de Bolsonaro.

Não nos surgem melhores palavras para definir a relação do governo federal com os povos originários que as do próprio Davi Kopenawa, uma das mais reconhecidas lideranças indígenas do mundo e um dos principais interlocutores de estudiosos da questão indígena, que conseguiu sintetizar em depoimento para o antropólogo Bruce Albert, o que significa concretamente o “passar a boiada” de Bolsonaro e Ricardo Salles:

“Eu já conheço as palavras desse presidente: ‘Que venham todos os Brancos que queiram dinheiro, os criadores de gado, os madeireiros, os garimpeiros e os colonos também. Eu vou lhes dar essa floresta, para acabar com todos os Yanomami, todos eles, e para que os Brancos se tornem os proprietários. É nossa terra e tudo bem! Assim é, eu sou o único senhor dessa terra!’. [...]. Faremos tudo virar mercadoria!” [1].

As palavras de Kopenawa devem ser ouvidas como um alerta de como está se concretizando o desmonte das políticas públicas do governo Bolsonaro, que reúne cortes de orçamento, perseguição aos servidores públicos, negacionismo ambiental; tudo a serviço do objetivo de, como disse Kopenawa, transformar tudo em mercadoria.

Crônica de um genocídio anunciado

De acordo com o relatório da FUNAI com base nos dados do senso de 2010, Os Yanomamis são uma população de 25.084, divididos em 4 subgrupos: Ninám, Sanumá, Yanomán e Yanománi. Seu território se encontra dentro das fronteiras do Brasil e da Venezuela, em regiões que há muito tempo são alvos do garimpo ilegal pelas reservas de ouro que possuem.

Segundo os pesquisadores e antropólogos Bruce Albert e François-Michel Le Tourneau, as terras Yanomamis foram invadidas por milhares de garimpeiros em 1987, resultando num quadro de violência, degradação ambiental e calamidade sanitária que foi amplamente divulgado na imprensa mundial e causou nos anos 80 ampla mobilização de organizações nacionais e internacionais contra a invasão do garimpo e exigindo a demarcação das terras Yanomami e sua declaração como área dedicada à preservação ambiental. Segundo estes pesquisadores, a demarcação se deu de forma totalmente contraditória, deixando brechas que na prática faziam de muitos territórios indígenas espaços reservados à exploração no futuro através do conceito de “unidades de conservação”, que na prática, servia como um processo intermediário para liberação para exploração, pois define de maneira ambígua a relação entre o território reservado aos povos originários e o que era Floresta ou área de preservação ambiental.

O resultado disso é que hoje, as terras indígenas são recortadas por hectares e hectares de terras exploradas por madeireiras e garimpeiros, comprimindo os povos em suas aldeias e delimitando o acesso à terra para sua atividade produtiva. É a expressão da incapacidade do capitalismo de resolver quaisquer de suas contradições. Ao contrário de garantir o acesso à terra e o desenvolvimento das populações originárias, a exploração predatória busca avançar sobre estes povos, como a continuidade da espoliação capitalista original que separou o ser humano do produto de seu trabalho.

Desde a Reforma do Código Florestal brasileiro em 2012 há uma crescente investida do agronegócio contra áreas de conservação e terras dos povos originários e quilombolas; e os governos do PT foram cúmplices com várias concessões a este setor. Já em 2003 Lula havia liberado o plantio e comercialização dos transgênicos e em 2008 o Brasil chegou ao pódio mundial de consumidor de agrotóxico. É preciso também dizer que em nenhum momento o governo do PT pautou o problema da terra no Brasil, sendo a reforma agrária totalmente engavetada durante os seus 14 anos de governo.

Mas o grande ponto de inflexão se deu após o golpe institucional de 2016, com Michel Temer começando por liquidar o Ministério de Desenvolvimento Agrário que tinha entre suas atribuições as políticas relativas à agricultura familiar [2]. Em consonância com Temer, o golpista Supremo Tribunal Federal reciclou a tese do “Marco Temporal”, segundo à qual o direito à terra aos povos indígenas só seria garantido quando esta estivesse ocupada por eles na data da promulgação da constituição de 1988 ou se pudessem comprovar terem sido expulsos delas. Uma tese reacionária.

A eleição de Bolsonaro foi a coroação para os interesses do agronegócio e do garimpo ilegal, colocando à frente do Ministério do Meio Ambiente um negacionista dos problemas ambientais como Ricardo Salles, que marcou sua trajetória no planalto como “anti-ministro” do meio ambiente: com relações com madeireiras e com o garimpo, a gestão de Sales vem sendo marcada por desmatamentos e queimadas recordes em áreas de conservação ambiental: segundo o instituto Imazon, em abril de 2021 o desmatamento já era 216% maior que o ano anterior.

O presidente que fez a declaração que "cada vez o índio é um ser humano igual a nós", desumanizando os povos originários como se fossem "menos seres humanos", tem no seu programa o desmatamento, a exploração predatória e o ataque aos setores oprimidos. Episódio à parte a declaração do presidente na ONU em setembro de 2020, que em meio ao escândalo internacional do alcance das queimadas na Amazônia e no Pantanal, colocou a culpa nos indígenas pelo desastre. Por mais absurdo que tenha sido este discurso, isso nunca foi incomum nas declarações do presidente: no último discurso em rede nacional, na quarta-feira, 02 de junho, Bolsonaro elogiou as altas na bolsa de valores; quando o país está com metade da sua população em insegurança alimentar, taxas de desemprego recordes e já passamos de 460 mil mortos pela pandemia do coronavírus.

Enquanto isso, o garimpo já ocupa o equivalente a 2.400 campos de futebol em terras Yanomami e certamente, é uma grande chaga local. O conflito com garimpeiros teve uma escalada nas últimas semanas após os Yanomamis construírem uma barreira sanitária, por precaução por causa do alastramento da covid-19 na região, mas ao que parece, o garimpo quer defender na bala o direito de levar a doença para as terras indígenas. No sábado 15 de maio, Dário Kopenawa, liderança indígena, informou que 2 crianças haviam sido assassinadas por garimpeiros após ataque na comunidade Palimiú, em Roraima.

A região também concentra parte das reservas mundiais das valiosas terras raras, minerais de alto valor para a produção de equipamentos de alta tecnologia e durabilidade, empregado na produção de máquinas de inteligência artificial, portanto, interesses de empresas imperialistas não estão descartadas. Talvez por isso, a Organização das Nações Unidas se manifestou contra os ataques às terras Yanomami, sua preocupação, mais do que a vida dos povos desta terra, é garantir que o imperialismo se aproprie de sua fatia do bolo. Por isso é preciso denunciar o garimpo que apoiado no bolsonarismo perseguem e assassinam os Yanomamis para explorar suas terras sem depositar nem um fio de confiança nas instituições do imperialismo, como a ONU.

As contradições: o garimpo e o garimpeiro

O garimpo é uma atividade insalubre e de alto custo humano e seu próprio desenvolvimento no Brasil é parte da mesma decomposição capitalista. As pessoas que entram nesta atividade, geralmente vêm da própria classe trabalhadora, com a ilusão de grandes ganhos econômicos através do garimpo de minérios valiosos como o ouro; e com a crise econômica e sanitária e as grandes taxas de desemprego, não é difícil que muitos se iludam e vejam nessa atividade uma saída para a subsistência.

Portanto os movimentos do governo de Bolsonaro de legalização do garimpo e desmonte dos órgãos civis de fiscalização ambiental denotam grandes interesses econômicos nessa atividade, logo não estamos falando aqui somente de pequenos grupos de garimpeiros manuais, que igualmente podem representar parte da base bolsonarista, mas sim de interesses de grandes grupos econômicos. Segundo reportagem do G1, o perfil do próprio garimpo foi fortemente alterado ao longo dos anos, e esta que era uma atividade precária, onde o que primava era o garimpeiro vivendo em condições insalubres, hoje o que se encontra principalmente em regiões como nas proximidades das terras indígenas, são garimpos com maquinarias sofisticadas, verdadeiros vilarejos construídos à beira das minas de exploração e forte armamento. Em reportagem do National Geografic, que foca na questão do garimpo ilegal na região de Alto Tapajós, coloca que os que chegaram nos últimos anos vem na maior parte do Mato Grosso e do Maranhão para trabalhar com o chamado “garimpo moderno”, equipado com maquinaria pesada. Segundo esta mesma reportagem, muitos chegam do Nordeste para trabalhar, enquanto os que chegam do Sudeste, vão para investir; donos de máquinas que atuam, mas não vivem no local.

Quando falamos de grupo de garimpeiros atacando os povos originários, ao contrário de se pensar apenas uma atividade individual de pequenos grupos, o garimpo apresenta sofisticação e possui o respaldo do governo do estado e de Bolsonaro e Ricardo Salles na esfera federal. Na investida de garimpeiros contra Yanomamis no mês passado, foram utilizadas até mesmo bombas de gás lacrimogêneo contra a aldeia. Nisso fica a pergunta: como grupos de garimpeiros têm acesso à tipos de armamento que são exclusivas dos aparatos repressivos do estado?

Um mesmo inimigo: A luta dos povos originários é a luta da classe trabalhadora

A própria existência dos povos originários que resistiram às políticas do estado racista brasileiro de etnocídio, colonização, catequização forçada, destruição e roubo. Representam parte da resistência dos povos à espoliação capitalista, que com a concentração da riqueza na mão de uma minoria e a exploração irracional dos recursos naturais leva milhões à miséria e está caminhando para um verdadeiro colapso ambiental.

Ao contrário da ponte inaugurada pelo reacionário Bolsonaro na última semana para facilitar o acesso às terras indígenas e colocar essa população já vulnerável em maior risco, é preciso defender uma aliança entre os povos originários e a classe trabalhadora. A livre determinação dos povos indígenas e quilombolas sobre seus territórios são fundamentais para seu direito à vida, também a necessária reforma urbana radical, demanda democrática elementar que a burguesia nacional jamais será capaz de resolver e nenhum governo conciliador levará a cabo; precisa ser imposta pela força da classe trabalhadora organizada, junto aos movimentos sociais e setores oprimidos.

A luta dos povos indígenas é luta de classes, pois é luta contra a espoliação capitalista. Precisa ser encarada como parte do programa da classe trabalhadora pelo fim de toda opressão. Por isso quando desde o Esquerda Diário e o Movimento Revolucionário de Trabalhadores defendemos que é preciso impor uma Assembleia Constituinte por meio da força da nossa mobilização, que seja organizada em cada local de trabalho e estudo e junto aos movimentos sociais e que coloque na ordem do dia todas as demandas dos povos explorados e oprimidos, estamos propondo também a aliança entre a classe historicamente espoliada pelo capital – a classe trabalhadora – e os povos originários que ainda hoje resistem contra essa mesma espoliação. Essa aliança não é só possível, como é necessária.


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FOOTNOTES

[2POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021.
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Cristina Santos

Recife | @crisantosss
Professora e militante do grupo Pão e Rosas.
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