×

África | Golpe no Gabão: “Fim do regime” ou tentativa de evitar uma explosão social?

Outro golpe de Estado no quintal do imperialismo francês, mas esse parece responder mais às tensões socioeconômicas e políticas internas do que ao descontentamento diretamente ligado à presença francesa. Os militares agiram para acabar com o regime ou para preservá-lo?

quarta-feira 6 de setembro de 2023 | Edição do dia

O golpe no Gabão na noite de 29 para 30 de Agosto parece ter pego o mundo de surpresa. Certamente o país estava no meio de um processo eleitoral completamente manipulado e fraudulento: Internet cortada, imprensa estrangeira e observadores internacionais banidos, regras eleitorais alteradas no último minuto, repressão e restrições administrativas para a oposição. Apesar de tudo isto, a oposição afirmou ter vencido em grande parte na noite das eleições. No entanto, na noite de 29 para 30 de Agosto, o regime anunciou uma grande vitória para o atual presidente, Ali Bongo. Poucos minutos depois, uma dezena de soldados leu uma declaração na televisão anunciando que o exército anulou os resultados eleitorais, tomou o poder e “pôs fim ao regime”. A confusão e a inquietação foram palpáveis entre os líderes internacionais e as grandes multinacionais que investem no país.

Desde a sua independência em 1960, o Gabão tem sido governado pela família Bongo: Omar Bongo, pai do presidente deposto, foi colocado como vice-presidente de um presidente moribundo, Léon M’ba, em 1964 por Jacques Foccart, "Sr. Françafrique" do General De Gaulle, antes de assumir o cargo de presidente em 1967. O seu partido, o Partido Democrático Gabonês (PDG), permaneceu o "partido único" até 1990, antes de criar uma aparência de "sistema multipartidário" (com oposições muitas vezes criado pelo próprio regime) que não colocava realmente em perigo o poder da dinastia Bongo. Após a morte de Omar Bongo em 2009, seu filho, Ali Bongo, tornou-se presidente. Nem é preciso dizer que este regime ditatorial, corrupto e criminoso teve o total apoio do imperialismo francês!

Mesmo que a transição entre pai e filho pareça ter acontecido como uma típica “sucessão françafricana”, o poder de Ali Bongo não teve a mesma força que o de seu pai. Assim, em 2016, depois de eleições muito apertadas, onde Ali Bongo teria vencido com uma diferença de apenas 5.000 votos, surgiram manifestações em todo o país. Manifestações fortemente reprimidas pelo exército, que disparou munições reais, deixando centenas de feridos e desaparecidos, além de 38 mortos. Em 2019, na sequência de um acidente vascular cerebral de Ali Bongo, houve uma tentativa de golpe de Estado, mas que foi rapidamente reprimida.

Para as eleições deste ano, a oposição reuniu-se em grande parte na Plataforma Alternance 2023. Essa oposição é composta por antigos membros do partido dos Bongo, e o seu candidato à presidência, Albert Ondo Ossa, era ele próprio ministro de Omar Bongo. Durante as primeiras horas após o golpe, houve muita especulação de que os militares poderiam entregar o poder à oposição. Contudo, no momento este não parece ser o plano da junta, o que indicaria que a oposição e o exército seriam dois setores diferentes das classes dominantes. O próprio Albert Ondo Ossa distanciou-se dos militares, considerando que se tratava sobretudo de uma “revolução palaciana”, garantindo ao mesmo tempo que não apelaria à mobilização contra o golpe e escolheria a opção da “diplomacia”.

Com efeito, na segunda-feira, 4 de Setembro, os militares nomearão oficialmente o General Brice Oligui Nguema como presidente da transição. Oligui é o chefe da “Guarda Republicana”, herdeira da “Guarda Presidencial”, criada sob o conselho de Paris após a tentativa de golpe de estado de 1964, responsável por proteger o Presidente. Enquanto os militares falam do “fim do regime”, a realidade é que foi esse mesmo exército que disparou contra os manifestantes em 2016 e, para um regime quase dinástico, o próprio general Oligui é um primo distante do presidente Ali Bongo. Na verdade, Oligui saiu das entranhas do regime Bongo.

Além disso, um dos primeiros atos do novo homem forte do país foi reunir-se e sobretudo tranquilizar as patronais nacionais e internacionais. Entre as suas promessas está a privatização da gestão dos dois fundos de segurança social (CNSS e CNGAMS), uma exigência importante dos empresários gaboneses. Os anúncios do general foram recebidos com “aplausos de pé” pelos líderes empresariais presentes. Essa primeira decisão parece indicar que os soldados estão em total continuidade com a política pró-patronal e pró-imperialista do regime de Bongo. Sagrada “ruptura com o regime”.

Quanto aos interesses das potências imperialistas e de outros parceiros internacionais do Gabão, também aqui tudo parece indicar que os militares manterão todos os compromissos do país, pelo menos por enquanto. Entre os principais interessados ​​está obviamente a França. O imperialismo francês moldou o Estado gabonês, as relações do regime Bongo com os partidos políticos franceses são bem conhecidas, o exército francês tem uma base permanente no país com pelo menos 350 soldados no local, e várias multinacionais francesas operam no país (as suas ações entraram em colapso na bolsa de valores de Paris após as primeiras horas do golpe). É por isso que o golpe preocupa Paris. Mas como podemos ler no Le Monde, “Segundo várias fontes, ainda antes de ser empossado nas suas novas funções, o General Oligui Nguema tentou tranquilizar as suas intenções telefonando a vários líderes da África Central e ao embaixador francês em Libreville. “Ele é um homem equilibrado e discreto. Ele me disse que o exército já não quer ser usado para matar gaboneses depois de cada eleição. O seu golpe não segue a mesma lógica dos do Sahel. Não se trata de pedir a saída dos franceses”, relata um dos seus interlocutores sob condição de anonimato.

Embora o Gabão tenha mantido relações privilegiadas com o imperialismo francês, também soube aproximar-se da China e da Rússia. Assim, Ali Bongo, na primavera passada, foi à China e a relação entre os dois países foi elevada ao estatuto de “parceria estratégica”; A China já é o principal parceiro comercial do Gabão. A aproximação com a Rússia também é importante, o que explica porque o Gabão votou contra a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que tem relações um tanto tensas com a França. O golpe também envolve, portanto, preocupações com os interesses de Pequim e de Moscou.

Contudo, as manobras de potências estrangeiras não parecem estar por detrás do golpe. A situação socioeconômica do país se deteriorou nos últimos anos; é possível que parte da burguesia nacional tenha começado a ver o governo de Ali Bongo como um obstáculo, até mesmo um fator de desestabilização. Neste sentido, alguns começam a falar de um “golpe de palácio” que permite canalizar a raiva popular com a derrubada do presidente, preservando ao mesmo tempo o essencial do regime. Resta saber quais as medidas e o caminho que os militares tomarão a partir de agora e se isso será suficiente para acalmar o descontentamento generalizado.

Na verdade, não são apenas as questões políticas que causam o descontentamento popular. A campanha presidencial foi marcada pelas preocupações dos trabalhadores e das classes populares com a inflação que passou de 2,4% em 2022 para 4,8% neste ano, afetando todas as despesas básicas: alimentação, saúde, habitação, transportes, serviços.

A isso podemos acrescentar um problema estrutural do capitalismo semicolonial gabonês: desigualdade e pobreza. Embora o país seja um grande exportador de petróleo e matérias-primas, 33,9% da população vive abaixo da linha da pobreza, ou seja, com menos de 5,50 dólares por dia. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que o desemprego caiu de 18,5% em 2017 para 22% atualmente; e o desemprego dos jovens entre os 15 e os 24 anos é de quase 40%.

É provável que tudo isso faça com que os militares e o setor da burguesia nacional tema uma explosão social e que tenham decidido assumir a liderança. Mas serão eles capazes de responder a estes problemas profundos da classe trabalhadora e dos setores populares do Gabão? Mesmo que parte da população pareça apoiar o golpe dos militares, não devemos nos enganar: do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, os militares (ou a oposição) só beneficiarão outros setores capitalistas, os mesmos que o Regime Bongo. Na verdade, como dissemos, os militares e a oposição provêm em grande parte das fileiras do clã Bongo. Quanto ao imperialismo francês, mesmo que de momento não pareça haver quaisquer expressões “anti-francesas”, não podemos excluir que estas comecem a surgir no seio da população e que, diante dessa pressão, existam setores burgueses locais que usem demagogicamente a retórica anti-francesa. A situação permanece aberta e mesmo que os militares comecem a mostrar um programa totalmente burguês, poderão surgir contradições de classe contra os capitalistas locais, mas também contra o imperialismo francês e outras potências que têm intervido no país durante anos.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias