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Editorial | O novo governo na Argentina e as relações de poder

Um plano que propõe um reset reacionário do país. Um menemismo falseta e uma resistência que está apenas começando. Leia abaixo o editorial de “El Círculo Rojo”, programa de rádio do La Izquierda Diario da Argentina.

sexta-feira 24 de novembro de 2023 | Edição do dia

Na Argentina, parece que um século se passou desde o segundo turno do último domingo. Há situações que concentram mudanças que vêm se acumulando e se manifestam todas juntas. Estamos no mesmo país da quinta-feira passada e ao mesmo tempo estamos num país completamente diferente.

Vários aspectos do novo cenário político poderiam ser discutidos. Um deles é o balanço: como chegamos até aqui? Quais são as razões pelas quais um representante do libertarianismo radical se tornou presidente?

Uma avaliação da campanha também poderia ser feita à luz da atitude que os protagonistas estão tomando após a vitória de Javier Milei, porque para falar a verdade, algumas inconsistências são evidentes. Parte da extorsão para conseguir o alinhamento incondicional com Sergio Massa consistia em afirmar que o “fascismo” estava do outro lado. Porém, depois do segundo turno o “fascismo” foi recebido na Quinta presidencial de Olivos (Javier Milei foi recebido pelo atual presidente peronista Alberto Fernández) e a ala mais dura do “fascismo” (Victoria Villarruel, vice de Milei) foi recebida por Cristina Kirchner no Senado. Ou deram um giro copernicano para se tornarem democratas após as eleições ou, na realidade, tudo não passou de uma ideologização excessiva da campanha para conseguir resultados eleitorais que, além disso, não conseguiram ter.

Seria necessário refletir sobre as mudanças e deslocamentos da sociedade argentina em termos políticos e ideológicos, sobre as mudanças culturais, as transformações na sociologia do trabalho e a precariedade da vida que levaram uma parte importante do eleitorado a se conectar em alguns aspectos com a abordagem libertarianista. Seria necessário também discutir os limites: onde termina a raiva por uma crise crônica e um mal-estar geral que vem de longe e onde começam os acordos políticos ou ideológicos com o “programa” de Milei? Quanto de expressão de voto é a rejeição de tudo o que havia, de saciedade, de saturação, de repúdio à política tradicional e quanto de verdadeira identificação? Um tema muito difícil porque os movimentos da sociedade, das classes sociais, os seus movimentos não podem ser medidos através de uma ciência exata. Tendo a pensar que existe mais um componente de “voto de rechaço” do que os outros elementos, mas também é verdade que o “rechaço” foi dirigido numa direção específica e não para outras. E isso exige uma reflexão sobre o presente que não seja ritualística nem comemorativa e que evite oscilações ou antes alternâncias injustificadas entre o otimismo cego e o pessimismo paralisante.

Seria também necessário discutir o fracasso retumbante de uma tática e de uma estratégia política que o grupo da revista Crisis descreveu com bastante clareza num editorial intitulado The Wild Anomaly: condenam esta “ideia de que ’o pior de nós é melhor que o melhor deles’, porque é capaz de criar uma enorme máquina de fumo que, em última análise, apenas narcotiza o nosso próprio desejo de algo melhor. Para dizer com nome e sobrenome: Sergio Massa não alcançou a sobrevivência que prometeu e, na tentativa de chegar à presidência sem poupar recursos, favoreceu a ascensão da extrema direita e nos conduziu a um doloroso conformismo com este presente de injustiça. Chega de confiar o nosso destino aos profissionais de um pragmatismo sem resultados." Mais adiante dizem que devemos acabar com "O fetichismo do Estado, a busca por reconhecimento institucional como medida de sucesso, a integração de uns poucos que insensibiliza frente ao sofrimento da maioria, a aceitação resignada do mal menor para evitar a catástrofe, o gozo de um taticismo provocativo sem uma estratégia de médio prazo." Em suma, explicam o fracasso de tentar "combater a direita" com um “centro extremo” que copia não só o seu estilo, mas cada vez mais a sua agenda (o ajustamento, o punitivismo, etc.).

A questão é que todos estes debates necessários e importantes se juntam a uma questão urgente porque Javier Milei é o presidente eleito e começou a desenvolver as suas ideias, o seu programa, que é basicamente um programa de guerra de classes, de guerra social contra os trabalhadores, as trabalhadoras e todos os setores populares.

Se somarmos tudo o que Milei declarou e anunciou nestes dias, configura-se um plano dessa natureza: a privatização dos meios de comunicação públicos, da YPF [estatal petroleira argentina] e da Aerolíneas Argentinas. Como definição geral ele disse que tudo o que pode ser privatizado iria ser privatizado. O corte drástico nas obras públicas e nas despesas do Estado (a tal ponto que até o pagamento do 13º foi questionado), uma redução fiscal que deve eliminar os subsídios e aumentar a tarifa dos serviços públicos, a provável redução dos trabalhadores do Estado, avanço sobre as aposentadorias (porque uma parte considerável dos gastos públicos é destinada a aposentadorias, pensões e benefícios sociais). Tudo isto num contexto de inflação galopante e de liquefação dos salários. Em suma, um plano menemista [1] evidenciado abertamente. Aliás, Milei disse a Alberto Fernández durante a visita a Olivos que era menemista, diferente de Macri que é mais “gorila” (antiperonista).

Como está Milei e sua coalizão política na tentativa de reeditar um neomenemismo? A verdade é que é débil. O que hoje em dia se pretende encobrir com todas as declarações bombásticas é precisamente essa fraqueza. Ao contrário de Menem, ele não tem partido (muito menos o Partido Judicialista) e é muito fraco no Congresso. Precisamente a lotação que está fazendo neste momento com os cargos do Gabinete tem a ver com tentar aproximar-se de uma maioria ou primeira minoria que lhe permita aprovar algumas leis ou pacote de leis. Já tivemos a experiência de um Gabinete dividido sob a administração de Alberto Fernández e esse foi um dos problemas políticos da sua gestão (não o único, mas um); Milei também tem muitos obstáculos legais para implementar grande parte do seu roteiro. Além disso, não tem uma situação internacional tão favorável como a de Menem (com um neoliberalismo que ainda gozava de boa saúde) e a crise é gravíssima, mas não atingiu um nível para impor como única saída o pedido de ordem a qualquer custo. Talvez uma crise tão desgastante tenha resignado muita gente, mas não necessariamente é isso que prima. Muitos dos eleitores de Milei queriam simplesmente rejeitar o antigo e melhorar com o novo.

Ora, isto descreve simplesmente o cenário para uma luta, para um confronto que não só é possível, mas cada vez mais inevitável. Esta equação, se não for aproveitada do outro lado (dos sindicatos, dos “movimentos sociais”, da juventude, das mulheres) pode mudar, porque as relações de força não são estáticas e eternas e devemos estar conscientes de uma questão: estamos perante um governo que tem a decisão e a aspiração de mudar a relação de forças num sentido regressivo. Um governo que não quer conter a crise com um ajuste negociado, mas sim acelerar a crise, governar durante a crise com uma política de choque. Isso acelera os tempos, quebra a dinâmica e deve nos tirar de todo rotineirismo.

Nesse sentido, são auspiciosas as assembleias em espaços públicos, entre trabalhadores estatais, aeronáuticos, greves de trabalhadores de fábricas de pneus e paralisações de colaboração em fábricas de alimentos. Até a CGT (através de Héctor Daer) foi mais crítica do que se poderia imaginar. Auspicioso, necessário, mas não suficiente porque o plano é amplo e geral e exige uma resistência maior e geral também. Nesse sentido, as coisas estão apenas começando.


[1Termo que se refere a uma linha política neoliberal devido às políticas implementadas na Argentina por Carlos Saúl Menem, presidente do país de 1989 a 1999.





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