Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

A ciência em agonia na arte: reflexões sobre o filme “Oppenheimer”

Rosa Linh

A ciência em agonia na arte: reflexões sobre o filme “Oppenheimer”

Rosa Linh

“As ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante”, disse Karl Marx no célebre Manifesto Comunista. Uma das ideias colocadas em cheque pela superprodução de Christopher Nolan “Oppenheimer”, baseado na biografia de Kai Bird e Martin J. Sherwin “O Prometeu Americano” (2005), é a concepção de que a ciência, em particular as da natureza, são neutras e isentas. Nessas linhas, irei expor algumas reflexões sobre ciência, filosofia e marxismo dialogando com o filme. Apesar do filme ser baseado em fatos reais, esse texto contém alguns spoilers que podem atrapalhar a experiência completa do filme!

Dedico esse texto à Thiago Menezes Flausino, jovem negro de 13 anos brutalmente assassinado pela polícia racista do Rio de Janeiro. Seu sonho era ser jogador de futebol. Que a ciência, a arte, o esporte e a cultura sejam parte de iluminar a vida e os sonhos das crianças em um mundo livre de exploração e opressão sob as ruínas desse sistema capitalista podre e irracional.

Oppenheimer: em vida e na arte

Julius Robert Oppenheimer (1904-1967) foi um físico teórico americano, famoso por seu papel proeminente no Projeto Manhattan do governo dos EUA na Segunda Guerra Mundial, responsável pela produção das primeiras armas nucleares. “Oppy”, apelido do cientista mencionado na trama, era de família judia, graduou-se em Harvard em 1925, estudou por um tempo em Cambridge frequentando o famoso Laboratório Cavendish, na época dirigido por Ernest Rutherford, pai da física nuclear; foi convidado por Max Born a estudar na Universidade de Göttingen na Alemanha, onde terminou seu doutorado, famosa pelos avançados estudos teóricos. Nesses anos, ele conheceu e conviveu com personalidades como Niels Böhr, Paul Dirac, Enrico Fermi e Werner Heisenberg, entre outras referências de peso internacionais nesse efervescente ramo da ciência que se desdobrava, após as grandes descobertas da relatividade geral de Einstein, sob o fogo da Revolução Russa, a Revolução Alemã e a Primeira Guerra Mundial - a mecânica quântica.

Oppenheimer produziu importantes descobertas em vida, como o limite de Tolman-Oppenheimer-Volkoff que descreve o limite de massa para uma estrela de nêutrons, e a aproximação de Born-Oppenheimer, uma forma de simplificação do movimento poliatômico. Oppenheimer, além de tudo, foi o maior divulgador da mecânica quântica nos EUA dos anos 20 e 30. Em particular, suas descobertas que levaram às primeiras bombas nucleares, tratam da chamada fissão nuclear, onde os pesados núcleos atômicos do urânio ou plutônio são desintegrados em elementos mais leves quando são bombardeados por nêutrons. Ao bombardear-se um núcleo produzem-se mais nêutrons, que bombardeiam outros núcleos, gerando uma reação em cadeia. O isótopo mais utilizado para sofrer fissão nuclear é o urânio-235, o qual ao capturar um nêutron transforma-se em U-236 durante instante muito breve de tempo e então sofre fissão, que pode ser resumido pela seguinte equação química:

U235 + n = Sr-95 + Xe-139 + 2n + 198 MeV

[isótopo de Urânio-235 é bombardeado por um nêutron, gerando um isótopo de Estrôncio-95, um de Xenônio-139 e outros dois nêutrons que irão continuar produzindo mais reações em cadeia, além de 198 milhões de elétron-volts]

A primeira parte do filme conta a aurora da vida do cientista, e é captada com maestria: um jovem com ânsia de conhecimento pelas estrelas, partículas, pelas idiossincrasias fascinantes da ciência e da natureza, uma pessoa brilhante, mas comum, com contradições e problemas comuns. As descobertas do mundo natural se cruzam com a política e as contradições sociais de sua época. Oppenheimer teve múltiplas relações com militantes do Partido Comunista dos EUA, o filme chega a retratar o seu apoio ativo a fundação do sindicato de acadêmicos da Universidade de Berkeley, o suporte que deu aos republicanos na Guerra Civil Espanhola, o interesse pelas ideias de Karl Marx, Freud e Darwin.

O filme entrelaça momentos históricos, indo e vindo entre o julgamento macartista e anti-comunista pelo qual passa Oppenheimer nos anos do pós-guerra, os dias em Los Alamos no Projeto Manhattan e a sua juventude. Apesar de seu passado de ideias que simpatizavam com a esquerda, o governo dos EUA viu em Oppenheimer o melhor cérebro para o desenvolvimento de sua máquina de guerra nuclear. Sob o pretexto de desenvolver a tecnologia da bomba atômica antes dos nazistas, ele ingressa no Projeto Manhattan. Com o fim da guerra, revela-se que um espião soviético esteve infiltrado em Los Alamos, o que levou aos julgamentos contra Oppenheimer. O filme deixa bem claro que o cientista não era comunista, por mais difuso que essa ideia possa ser interpretada na trama, confundida propositalmente com o stalinismo. Algo como se na juventude a efervescência das ideias revolucionárias desse lugar ao pragmatismo conservador do adulto, castrada e desprovida de vida. O que restou a Oppenheimer foi tentar usar a proeminência de sua figura para se opor à criação da bomba de hidrogênio, ainda mais devastadora e colossal, nos anos do pós-guerra, o que a história bem mostrou que não surtiu efeito.

A música parece ser parte indissociável do desenvolvimento da obra, entre o belo e a agonia. A angústia diante de um julgamento injusto, a agonia do som ensurdecedor da contradição entre a morte e a “vitória” científica após a explosão da bomba - tudo ao final parece levar ao caos e a dicotomia. No entanto, no momento em que Trinity, o primeiro protótipo de bomba nuclear testado, explode, o que se vê na tela é silêncio, a respiração forçada e pesada das personagens, em contraste com o barulho incessante e persistente que se assemelham a bombas e explosões ao longo do filme. É o momento de êxtase. Havia sido criada uma arma de destruição em massa como nunca se viu antes. O presidente dos EUA, Harry Truman, em seu discurso após o lançamento, descreveria como “a maior conquista da ciência organizada da história (…) É uma bomba atômica. É um aproveitamento da energia básica do universo. A força da qual o sol tira o seu poder foi solta naqueles que trouxeram a guerra para o Extremo Oriente”.

“Agora eu me tornei Morte, a destruidora de mundos” - essa é a frase que Oppenheimer diz ter fixado na memória ao ver a explosão. Ela foi retirada do texto religioso hindu Bhagavad Gita (ou “canção do bem-aventurado”), parte do poema épico indiano Mahabharata e datado do século IV a.C., que relata o diálogo de Krishna (suprema personalidade de Deus) com o herói Arjuna (discípulo guerreiro) no campo de batalha de Kurukshetra. Nesses escritos antigos, Arjuna aparece em confusão enquanto a seu dever de guerrear contra um exército que continha seus amigos e parentes, e é então que Krishna lhe interpela e explica sobre o dharma, a ciência da autorrealização, em outras palavras, o que é certo e justo. É uma das quatro lições principais do Bhagavad-Gita: desejo ou luxúria; riqueza; o desejo de retidão, ou dharma; e o estado final de liberação total, ou moksha. Buscando seu conselho, Arjuna pede a Krishna que revele sua forma universal. Krishna concorda e, no verso doze do Gita, ele se manifesta como um ser sublime e aterrorizante de muitas bocas e olhos. O hinduísmo não tem uma concepção linear de tempo: não importa o que Arjuna faça, tudo está nas mãos do divino e cabe a ele como guerreiro seguir seus ensinamentos, não deve se alegrar ou lamentar os resultados, quem deve morrer ou não diz respeito à Krishna.

Algumas interpretações desses escritos tomam o cenário de guerra como alegoria, colocando-a como representação da luta interna do sujeito e a busca pela efetivação de seu dever no mundo. Outros já os veem diretamente como uma forma de justificar a “guerra justa” e a bravura do dever do guerreiro, algo retomado inclusive por líderes nacionalistas hindus que defendiam a independência da Índia. No entanto, no sentido empregado por Nolan, o que parece se dar para Oppenheimer seja muito mais o conflito entre a capacidade destrutiva que a humanidade conquistou com a ciência, seu papel ativo nisso, e as implicações que isso acarretou.

Arjuna seguiu o caminho de Krishna, pois a vida e a morte seriam apenas uma ilusão, entender isso o libertaria do fardo da guerra. O mesmo não pode ser dito de Oppenheimer. A que preço estaria sujeito o conhecimento do movimento da matéria e da energia? O genocidio de milhares de japoneses em nome de combater o nazismo? No limite, qual seria a diferença entre ambos para os trabalhadores japoneses no fogo cruzado de dois países imperialistas? É melhor estar do lado do genocidio do “imperialismo democrático” do que da ditadura reacionária japonesa? Que lado a ciência deve tomar nisso?

O filme de Nolan não mostra o Japão nem o verdadeiro genocidio promovido lá, mas coloca em primeiro plano o sofrimento e a perturbação individual do cientista. Talvez seja em Gen Pés Descalços (Hadashi no Gen) que o horror da bomba atômica foi mais bem revelado. A série de mangás produzida por Keiji Nakazawa, sobrevivente da bomba de Hiroshima, penetra fundo na irracionalidade da guerra capitalista. A família do menino Gen, trabalhadores comuns, é pega de surpresa pela bomba atômica de urânio-235, “Little Boy”. O terror de uma explosão equivalente a 16 milhões de toneladas de TNT, com destruição total num raio de 1,6 km e incêndios subsequentes nos seguintes 11 km², numa onda de calor de mais de 4 mil graus celsius. Os olhos das crianças caiam para fora do crânios, o metal das pontes derretia, carcaças humanas sem a pele e desfiguradas perambulavam pelo caos, cravando sombras em formato de corpos como fotografias de raio-x no chão. Após alguns meses, contabilizou-se cerca de 150 mil mortos apenas em Hiroshima, contando o impacto da bomba e seus efeitos, as lesões, contaminação radioativa etc. Oppenheimer, assim como a burguesia imperialista que lhe empregou nessa tarefa, havia evocado forças muito mais poderosas do que poderia controlar.

Ao fim do filme de Nolan, temos a cena emblemática da conversa entre Einstein e Oppenheimer. Havia uma probabilidade matemática nos cálculos da fissão nuclear de que seria possível desencadear uma reação em cadeia tal que consumiria toda a atmosfera e destruiria o mundo. Oppenheimer procura Einstein em certo momento do filme, questionando-o se poderia ajudá-lo. “Nós destruímos o mundo”, é a frase que encerra o filme no diálogo entre ambos, dando lugar a múltiplos mísseis balísticos atravessando o continente. Esse diálogo foi uma licença poética de Nolan - Einstein, apesar de respeitar Oppenheimer e também das divergências teóricas, não participou do Projeto Manhattan e tinha uma postura pacifista e anti-guerra -, mas também um prenúncio do presente. Em um cenário de reutilização da época imperialista de crises, guerras e revoluções, com o rearmamento imperialista e as tensões entre nações, o espectro da guerra nuclear volta a ser um tema para Hollywood.

A sensação que essa maravilhosa obra de arte produz, no entanto, é de resignação, “incerteza” para colocar em termos da mecânica quântica. A questão que se coloca é: poderia ter sido diferente? A ciência não é neutra, está atravessada pelos interesses econômicos e políticos. Se o ser humano dominou a natureza a tal ponto, seríamos capazes então de nos destruirmos a nós mesmos? Cabe aqui uma certa digressão filosófica.

Prometeu Acorrentado x Prometeu Americano

Prometeu Acorrentado, de Peter Paul Rubens (1610-1611)

Prometeu Acorrentado, de Peter Paul Rubens (1610-1611)

Na mitologia grega, Prometeu era um titã que se opôs aos deuses, roubou o fogo e o entregou aos humanos. Zeus, temendo que os humanos pudessem se tornar mais poderosos que os próprios deuses, puniu Prometeu deixando-o acorrentado a uma rocha para toda a eternidade enquanto uma grande águia comia seu fígado, que se regenera sempre no dia seguinte. Esse mito foi fonte de inspiração para diversos filósofos, cientistas e artistas ao longo da história da modernidade, mas em geral recaem entre duas visões que foram desenvolvidas por poetas gregos.

A primeira, é a leitura de Hesíodo. Nessa aproximação, Prometeu é um desafiante inferior à proeminência do Olimpo, que provoca a ira de Zeus ao aplicar um truque ao colocar duas oferendas para o Deus: no primeiro havia carne escondida dentro do estômago de um boi (com aparência bem pouco comestível) e na outra ossos de boi envoltos em gordura (com aparência muito mais palatável). Zeus escolhe a segunda, o que gera um precedente futuro para as oferendas, fazendo com que tivessem que sacrificar apenas os ossos e podendo ficar com a carne. Diante disso, Zeus rouba o fogo da humanidade. Não aceitando essa decisão, o titã o toma de volta; Zeus então o aprisiona e manda Pandora, a primeira mulher, para viver com os seres humanos como forma de punição. Todos os atributos maléficos do mundo foram colocados dentro de uma caixa que não poderia nunca ser aberta. Por culpa da curiosidade, Pandora abre a caixa e libera todos os males e doenças que afligem a humanidade, mas consegue fechá-la antes que o pior deles escape: aquele que acaba com a esperança. Hesíodo coloca Zeus como um soberano sábio e justo, enquanto Prometeu é responsável pela desgraça da humanidade.

A outra é a interpretação de Ésquilo, “Prometeu Acorrentado”, muito admirada pelos grandes filósofos e pensadores materialistas como Bacon, Goethe, Darwin e o próprio Marx. A tortura de Zeus contra Prometeu, quem havia lhe ajudado a conquistar vitórias na guerra contra os Titãs, é vista como uma traição cruel. Nesse caso, Prometeu roubou o fogo, mas não apenas isso: com ele, ensinou a humanidade a escrita, iluminou os ensinamentos da matemática, agricultura, medicina e ciência, salvando-os dos planos de destruição de Zeus. Nesse caso, Prometeu é o benfeitor da humanidade e Zeus o tirano.

A obra de Nolan e a construção do “Prometeu Americano” é uma certa amálgama entre a interpretação de Hesíodo e a visão comum do pós-modernismo atual com relação à interpretação de Ésquilo. Oppenheimer desafiou os “deuses”, as leis da natureza, e ao dominar essas leis, deu à humanidade não sua liberdade, mas os males abertos com a caixa de Pandora. Nesse caso, talvez nem a esperança tenha restado, já que o prenúncio da guerra total parece soar mais alto. Por outro lado, dialoga com a perspectiva estreita e idealista do pós-modernismo, que rechaça a ciência e quaisquer elementos de uma “realidade objetiva” em nome de narrativas individuais e culturais, partindo dessa aversão que se tem à instrumentalização positivista e reacionária da ciência para fabricação de armas de destruição em massa.

Essa tese é contraposta na obra de John Bellamy Foster, “A Ecologia de Marx”, chamando essa visão do mito de Prometeu como parte da “crise do sócio-ambientalismo”. Uma visão que parte da aversão ao positivismo e do cientificismo engendrados pelo capitalismo, dos inventos e descobertas aplicadas de maneiras alienada e mercantil para a acumulação irracional de capital e da destruição militar, mas que acaba por cair no beco sem saída do romantismo culturalista. Termina por rechaçar a própria ciência e seu desenvolvimento que possibilita compreender o movimento da realidade material e prever seus desdobramentos, chegando ao ponto inclusive de colocar essa visão “prometeica-positivista”, etapista e de desenvolvimento linear da história como parte indissolúvel do marxismo. Já voltaremos a isso.

Em última instância, o desconforto provocado pelo filme se encontra nessa incompatibilidade entre a paixão jovial pela ciência e o medo que a tecnologia, a inovação e as descobertas sobre o universo podem trazer. Mas isso apenas revela a podridão cultural da burguesia, capaz do mais vil dos crimes históricos, se utilizando de uma das mais incríveis revelações científicas que conquistamos até os dias de hoje. A mecânica quântica possibilitou uma série de avanços que tornam nosso dia a dia possível, inclusive torna factível que você possa ler esse texto na tela do seu celular ou computador. Mas, nas mãos de uma classe de parasitas, produziu horror e morte. Essa é a principal conclusão que o filme não tira, muito pelo contrário.

Contudo, como mostra Foster, a história humana não é uma fatalidade, a realidade não se move por tautologias, é produto da ação, consciente ou não, das pessoas. Nessa dimensão, temos a crítica política ao filme, na qual a luta de classes, o motor da história, aparece apenas com um pano de fundo distante.

Os caminho da história

Marx via a ciência como uma totalidade, constituídas de partes distintas, mas que se combinadas constroem o conjunto do saber sobre a realidade como a conhecemos. Seu materialismo era, antes de tudo, de ação. Não bastava contemplar o mundo e a natureza, era preciso transformá-lo radicalmente. É nessa perspectiva que Foster, realiza um percurso histórico pelas origens da filosofia materialista. Sua tese central será a defesa de que o marxismo possui em sua própria concepção filosófica e política uma visão radicalmente ecológica.

Foster retoma com centralidade a apropriação que Marx fez da filosofia do grego Epicuro, um pensador extremamente materialista, tido como a inspiração do Iluminismo, proibido pela Igreja e atacado pelos conservadores por promover heresias anti-religiosas e até mesmo revolucionárias. Ao tomar o atomismo de Demócrito, ele afirma que tudo no mundo é composto por átomos, sendo porém de diferentes naturezas. A morte física seria o fim do corpo, e assim estariam livres para constituir outros seres e coisas. Ao contrário do pensamento determinista de Demócrito, no qual o movimento dos átomos estava já pré-concebido, linear de cima para baixo, Epicuro era um ferrenho defensor da liberdade: os átomos, vez ou outra, desviam sua trajetória e se chocam mutuamente. Era isso o que possibilitava a vida, logo a morte, como coisas reais e sensíveis. A natureza, portanto, possuía uma liberdade intrínseca.

Marx retomará essa ideia de liberdade materialista tanto nos seus primeiros escritos, mas também em seus futuros desenvolvimentos. Para ele, o ser humano é produto da natureza, da evolução das espécies, da história natural do planeta e do Cosmos. Ao contrário das visões idealistas de que seria o conceito, a ideia que engendra a realidade material, Marx defende que o ser humano só se realiza enquanto espécie por meio do trabalho, isto é, por meio da capacidade de moldar a natureza de acordo com sua projeção ideal na realidade da matéria, com a própria natureza moldando o ser humano. Trata-se de um processo complexo de coevolução interdependente. As formas sociais se baseiam, portanto, em como os seres humanos utilizam do trabalho para produzir e reproduzir a vida, se contradizem sucessivamente e dão lugar a outras configurações mais avançadas. A “necessidade” de uma forma social se revela na medida em que merece perecer e dar lugar a uma síntese entre si e seu contrário. O movimento real pela negação e pelo embate, em sua liberdade intrínseca. Logo, ao invés das identificações com o positivismo “prometeico”, o marxismo sempre foi eminentemente anti-teleológico, ou seja, rechaçava qualquer visão predeterminada da história. Era dialético, partia de conceber a realidade como síntese de múltiplas determinações, no seu movimento contraditório.

Como sintetiza o filósofo marxista Labriola, Marx e Engels foram filósofos de sua ciência, pois é a filosofia, o pensamento crítico sobre o mundo, que precisa animar a ciência, a experimentação e a constatação metódica do movimento do real. A dialética materialista possibilita o conhecimento do mundo, suas contradições, suas mudanças, sistematiza uma forma de compreender o real e prever seu movimento. Ela é a síntese superior de toda uma história de pensamento científico e filosófico, que teve como protagonistas Francis Bacon, o pai da ciência moderna, os materialistas radicais franceses, Charles Darwin, e muitos outros. Toda a tese do filme e de “Prometeu Americano” se coloca na esteira da crítica à própria concepção da ciência moderna, associando esses pensadores e o materialismo com o positivismo estreito e tautológico, inter-relacionando o utilitarismo liberal com uma espécie de pragmatismo do “fazer científico ocidental/eurocêntrico”.

Leia mais: A teoria decolonial e a invenção do “marxo-positivismo”: debate com Aníbal Quijano

O domínio da natureza pelo ser humano, para usar a formulação de Francis Bacon, não se dá no vácuo, na noção metafísica do “ser humano” abstrato, mas nas relações concretas de produção. A ciência, nas mãos da burguesia parasita, seja dos carniceiros racistas e eugenistas dos nazistas, ou do imperialismo “democrático” igualmente assassino, ou mesmo de seus colaboradores contrarrevolucionários da burocracia stalinista - a ciência fica em agonia, como o Prometeu torturado e acorrentado. É preciso libertá-la, iluminar o caminho da racionalidade no terreno da economia, expropriar os expropriadores, planejar a produção e distribuição das riquezas de forma democrática e pela base. É nesse sentido que Marx dá uma síntese superior ao materialismo - inclusive, numa perspectiva de ação, de construção de força material para o combate, ou seja, de fazer emergir na luta de classes o sujeito revolucionário que tudo produz, a classe operária, trazendo junto de si és oprimides. Para isso, é preciso construir partido revolucionário.

O filme de Nolan, além de subtrair quase inteiramente a intensa luta de classes que perpassava os anos da trama - dando enfoque na perspectiva subjetiva e tecnocrata, “de cima” - acaba por reproduzir a narrativa imperialista de que contra o fascismo, o que restava era estar do lado da “democracia”, ainda que questione até que ponto isso não possui limites. Apenas uma visão materialista e dialética, científica no seu sentido totalizante e libertária, poderia analisar a situação de forma correta e guiar a ação estratégica dos trabalhadores e da juventude em meio à guerra.

A IV Internacional de Trótski, em meio a essa situação, baseada no Programa de Transição e o Manifesto da IV Internacional sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Mundial, estipulou a única política revolucionária possível: para derrotar o fascismo, não é possível apoiar o imperialismo “democrático”, não se trata de um guerra de “regimes”, entre fascismo x democracia. A política que se continuava na guerra por ambos os bandos eram os interesses das distintas partes do capital imperialista em decadência buscando a hegemonia mundial às custas do proletariado.

Leia mais: A Quarta Internacional frente à Segunda Guerra Mundial

A classe trabalhadora é uma só, não tem fronteiras, é a única classe produtora e criadora do mundo atual, a única capaz de reorganizar a economia e esse mesmo mundo sob outras bases. A política traidora da URSS stalinista na Segunda Guerra Mundial foi categórica em negar essa premissa, seja pelo sufocamento da Revolução Espanhola que poderia ter impedido a guerra imperialista; sua colaboração com os nazistas com assinaturas do Pacto de não-agressão Molotov-Ribbentrop; ou a colaboração com os Aliados, seja pelas frentes populares deixando os trabalhadores à reboque de suas burguesias, seja pelo sufocamento à sangue do maior levantamento revolucionário da história da humanidade ao desarmar os operários na Grécia, Itália e França, assinando depois a coexistência pacífica com os carniceiros de Hiroshima e Nagasaki nos pactos de Potsdam e Yalta.

Outro desfecho da história era possível. Os trotskistas deixaram um rico arsenal de tática e estratégia para os combates do presente e do futuro, muito diferente do que prega o ceticismo tecnocrata de Oppenheimer. Nos dias de hoje, reatualiza-se a época de crises, guerras e revoluções, na qual a disputa pela supremacia tecnológica, científica e militar entre China e EUA, a guerra na Ucrânia e o rearmamento europeu, reacende o debate sobre para que a ciência está à serviço (e como preparar os combates do futuro para evitar a barbárie capitalista). Retomar o marxismo, e o trotskismo como seu continuador na atualidade, significa se opor tanto às visões tautológicas da história, mas também ao ceticismo com a luta de classes. Significa entender a ciência como parte dos avanços humanos em compreender o mundo, que ela não é neutra e de que devemos batalhar para colocá-la à serviço das maiorias populares contra a burguesia e sua sanha predatória.

Trótski dizia que é preciso um desejo íntimo de auge cultural como motor psíquico da moral proletária rumo ao comunismo. O mesmo podemos dizer da ecologia, do trato com relação a natureza. A compreensão das leis da natureza precisam servir a uma permanente e livre exploração e coevolução entre o ser humano e a natureza, de compreender suas leis para libertar a humanidade do reino da necessidade, o que implica necessariamente uma permanente e livre batalha pela preservação, reconstituição, florescimento e exacerbação da natureza em todos os seus aspectos. Isso é impossível sob o regime da propriedade privada burguesa.

Leia mais: Esboços para uma ecologia em Trótski: por uma vida que valha a pena ser vivida

Stephen Hawking, em seu best-seller “Uma Breve História do Tempo” tinha o sonho de que talvez um dia seria possível unificar a mecânica quântica e a relatividade, criar uma “teoria de tudo”. Ele acreditava que a “filosofia estava morta” e a física ditaria os rumos do descobrimento do sentido da vida e dos mistérios da existência. Mas sem uma visão totalizante, dialética consciente, isso é impossível. É preciso animar a ciência com uma filosofia revolucionária. Quiçá, no comunismo, numa sociedade sem classes e sem Estado, com a mais irrestrita liberdade científica e com o exuberante avanço das forças produtivas e da técnica, o diálogo entre os futuros Einstein e Oppenheimer não sejam sobre morte, mas sobre ir muito além do que nossa vã filosofia e ciência sabe hoje, será parte da vida cotidiana das crianças, será patrimônio do conjunto da humanidade. Caberá a nós, seres humanos do presente, atuar na realidade com uma estratégia e um programa revolucionário, nos organizar em partido e ser uma partícula na história da humanidade, os grãos de areia que farão desabar todas as dunas do deserto das “trevas” em que a ciência e a humanidade se encontram sob o capitalismo.

Foto do super telescópio espacial James Webb dos “Pilares da Criação”, localizados a 6.500 anos-luz da Terra, na Nebulosa da Águia da galáxia terrestre, Via Láctea.

Foto do super telescópio espacial James Webb dos “Pilares da Criação”, localizados a 6.500 anos-luz da Terra, na Nebulosa da Águia da galáxia terrestre, Via Láctea.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[filme]   /   [Carcará - Semanário de Arte e Cultura]   /   [cultura]   /   [Arte]   /   [II Guerra Mundial]   /   [Cinema]

Rosa Linh

Estudante de Ciências Sociais na UnB
Comentários