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A imagem no espelho

Juan Dal Maso

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Juan Dal Maso

Apontamentos sobre a luta ideológica, a recomposição do marxismo e os futuros possíveis do socialismo. Este artigo é uma contribuição do autor para a próxima conferência da Fração Trotskista-Quarta Internacional.

O artigo de Matías Maiello "Apontamentos sobre a luta ideológica para além da restauração burguesa" aborda várias questões fundamentais para a perspectiva socialista na atualidade, em torno de dois eixos: democracia soviética e planificação da economia.

Partindo das colocações de Matías, gostaria de retomar nestas linhas [1] a questão das condições atuais da luta ideológica, bem como da atualidade do socialismo, considerando outros aspectos possíveis.

A ideia deste artigo é trabalhar a reflexão em quatro níveis, sendo que cada um deles implica em outros problemas, mas também nos mesmos vistos de pontos de vista distintos conforme o caso: 1) características da luta ideológica no nível do senso comum das massas atuais; 2) crise, recomposição e perspectivas do marxismo; 3) o papel da política cultural no marco da luta ideológica num contexto de crise civilizatória e como parte de uma concepção de revolução permanente; 4) futuros possíveis do socialismo.

Devido a amplitude de cada um dos níveis enumerados, é impossível analisá-los em profundidade em um único artigo. Portanto, o objetivo principal destas linhas será apresentar uma série de argumentos básicos sobre cada uma das questões, como material para discussão.

A questão da luta ideológica no nível do senso comum de massas

Um primeiro problema a considerar é a extrema heterogeneidade dos fenômenos ideológicos atuais a nível internacional, o que impõe pensar em diferentes aspectos da luta ideológica. O fato de nos últimos anos terem surgido diversas tendências de direita e extrema-direita é inegável, mas ao mesmo tempo houve um crescimento (em setores mais pontuais) de um renovado interesse pelo socialismo, como evidenciado pelo aumento do DSA nos EUA (embora essa organização tenha experimentado um previsível atolamento com sua política de "entrismo" no Partido Democrata) ou pelo fato de que em círculos intelectuais e acadêmicos a discussão sobre o comunismo e a revolução tenha sido retomada (um exemplo recente é o livro de Lea Ypi sobre sua infância na Albânia "comunista", que se tornou um best-seller na Europa, sendo uma autora que defende abertamente o caráter progressivo das revoluções na história, ao mesmo tempo que é crítica do estalinismo). Além disso, como destacaremos mais adiante, há uma certa recuperação da autoridade do marxismo no plano teórico, especialmente em questões como a crise econômica. Entretanto podemos observar que os fenômenos ideológicos mais difundidos a nível de massas têm estado mais vinculados a posições de direita do que de esquerda.

Em termos gerais, poderíamos dizer que, a nível do senso comum das massas, podem ser identificados dois grandes fenômenos: a) crescimento de tendências identitárias e soberanistas; b) diversas formas de "neoliberalismo popular". Essas tendências, em diversos aspectos contraditórias entre si, são resultado da crise do "neoliberalismo progressista" e da chamada "globalização", embora num contexto de generalização da ideologia do consumo como forma de realização do indivíduo isolado.

Para além de suas diferenças, sobreposições e contradições, o que une a luta ideológica contra ambas as tendências (soberanistas/identitárias e neoliberais) é uma certa reposição da questão de classe, que é a forma mais elementar de introduzir uma cunha contra a identificação de setores operários e populares com posições afins aos interesses da burguesia.

Em relação às tendências identitárias e soberanistas, houve um crescimento em setores da esquerda (como a ala Jacobin da DSA ou a cisão da Die Linke liderada por Wagenknecht na Alemanha), da posição de que, diante das políticas senso-comum progressistas, que afastam as bases operárias e populares da esquerda e as aproxima das posições da extrema-direita, é necessário adotar a tática do adversário. Isso pode ser feito adquirindo um discurso economicista que se apresenta como "de classe" e relegando a luta antirracista ao lugar pejorativo de "identity politics" (Jacobin), ou adotando posições como a regulação da imigração (Wagenknecht).

Diante dessas posições, a prática da FT-QI consiste em recuperar a interpelação de classe, ligada a uma perspectiva hegemônica, apontando, por um lado, para a comunidade de interesses entre toda a classe trabalhadora, independentemente de suas origens étnicas, nacionais ou de qualquer outra forma de diferenciação, e ao mesmo tempo, a necessidade de unir a classe aos movimentos de luta contra as diversas opressões. As intervenções de Anasse Kazib e Révolution Permanente se destacam especialmente nesse aspecto. Partindo desse quadro, acredito que seja possível reforçar, como uma ampla luta ideológica para disseminação em massa, a primeira questão mais básica mencionada acima (recuperar a interpelação de classe ligada à uma perspectiva hegemônica), pois é a que impacta os setores da classe trabalhadora que não estão envolvidos em movimentos de luta ou sociais e que visa atingir a divisão entre nativos e estrangeiros ou entre aqueles que se identificam erroneamente com uma maioria racial, étnica ou cultural contra minorias oprimidas. Ao mesmo tempo, serve para reintroduzir a questão de classe nos movimentos organizados em torno de outros tipos de demandas. Aqui, pode-se pensar em realizar uma propaganda o mais popular possível em torno de três questões centrais: a) a imposição comum de trabalhar para viver; b) a semelhança das condições de vida (bairros populares ou áreas suburbanas e/ou periurbanas onde a "desertificação dos serviços públicos" se intensifica); c) o caráter geral da ofensiva capitalista que ataca simultaneamente os direitos das diferentes frações da classe trabalhadora e setores populares; d) a fragilidade das respostas isoladas ou setoriais.

Várias dessas questões foram levantadas em torno de processos como os dos Coletes Amarelos, a recente luta na França contra a reforma da previdência e o subsequente levantamento dos bairros populares, bem como na relação entre a Geração U e o BLM nos Estados Unidos.

Em relação ao "neoliberalismo popular", suas ideias básicas podem ser sintetizadas da seguinte maneira: a) o capitalismo é o único sistema possível; b) se alguém - como indivíduo isolado - se esforçar e trabalhar muito, poderá alcançar boas condições de vida; c) essas boas condições de vida são essencialmente definidas pela possibilidade de acesso ao consumo, não apenas para atender às necessidades básicas, mas para ter acesso a diversos produtos como uma forma de ocupar (ou substituir a falta de) tempo livre; d) a política é assunto dos "políticos" e não é concebida como a ação das massas na cena pública, como política de classe, nem como política revolucionária; e) que os empresários geram riqueza e oferecem empregos.

Neste contexto, considero que a luta ideológica contra essas suposições deve começar nos níveis mais elementares, abordando várias questões relacionadas a esses núcleos básicos: a) que o capitalismo não apenas não é o único sistema possível, mas é um dos muitos sistemas que existiram ao longo da história da humanidade; b) que a sociedade capitalista não é composta por indivíduos que conduzem suas vidas de maneira separada para alcançar seu bem-estar, mas sim uma estrutura complexa, composta por sistemas e organizações de vários tipos, baseada em relações de classe e uma organização e divisão do trabalho social comandada pela burguesia; c) que as boas condições de vida não dependem do acesso ao consumo nos termos promovidos pelo atual sistema, mas sim da possibilidade de satisfazer as necessidades do desenvolvimento pessoal de cada um, que não poderão ser plenamente descobertas enquanto as restrições materiais (começando pela necessidade de trabalhar de maneira mais ou menos forçada para viver) continuarem nos impedindo; d) que a antipolítica (aparentemente razoável contra figuras políticas patronais totalmente desacreditadas) implica na renúncia à intervenção da classe trabalhadora e do povo nos assuntos públicos; e) que o capital do empresário é produto da exploração da força de trabalho.

Ao mesmo tempo, vários dos argumentos contra o "neoliberalismo popular" poderiam ser adicionados ou complementados com os argumentos mais básicos sobre a questão de classe que mencionamos em relação ao soberanismo/identitarismo.

Diante daqueles que enfrentam essas perspectivas, mas destacam a importância da "redistribuição" por meio da intervenção estatal para compensar as injustiças do capitalismo, é válido replicar que a ideia do Estado como regulador das injustiças do capitalismo encontra seu limite em seu caráter de classe, expresso especialmente na dinâmica regressiva do reformismo durante as crises, como explicado de maneira exemplar por Stuart Hall em seu livro clássico sobre o surgimento do thatcherismo. Portanto, é necessário transformar o sistema por meio da luta de classes, com uma revolução social surgindo de baixo para cima capaz de reorganizar a sociedade sobre novas bases (aqui entram, por sua vez, as considerações do artigo de Matías sobre sovietes e planificação). Além disso, é preciso considerar a inviabilidade da continuidade da exploração capitalista do ponto de vista ecológico, aspecto que temos desenvolvido. Este último argumento também pode ser utilizado para debater contra aqueles que acusam o marxismo e o socialismo de serem "estatistas", com suas devidas readaptações.

A seguir, destacaremos algumas questões sobre o correlato que esses debates no nível do senso comum têm no plano da recomposição teórica do marxismo, com seus avanços e contradições.

Mil e um marxismos e a necessidade de uma nova síntese

Em um contexto em que o marxismo recuperou autoridade em relação à explicação da crise capitalista a partir de 2008, é necessário refletir sobre as possibilidades de uma recomposição teórico-política mais abrangente. Por isso, é importante tentar traçar um inventário mínimo do que foi conquistado (em um sentido amplo).

No artigo "¿Más allá de los mil y un marxismos?", que escrevemos sobre os debates abordados pelo livro "Tras las huellas del marxismo occidental", de Santiago Roggerone, destacamos algumas questões para pensar o estado atual da teoria marxista e seus desafios. Em primeiro lugar, os "mil e um marxismos" atuais contribuíram com diversas elaborações que servem como pontos de apoio: maior conhecimento da obra de Marx e Engels; análises do capitalismo e do imperialismo atuais; reflexões sobre a relação entre produção e reprodução social no capitalismo, incluindo o papel das mulheres e do feminismo na luta de classes; análises de questões como as do Estado, da ideologia e da hegemonia; reflexões sobre a questão ecológica e sua relação com o socialismo, bem como análises das relações entre o marxismo e as ciências; estudos sobre as mudanças na classe trabalhadora em escala internacional (relacionadas, por exemplo, ao desenvolvimento específico da logística) e seu impacto nas formas de organização e luta de classes. Poderiam ser acrescentadas a essa lista as elaborações sobre a planificação socialista e seus recursos tecnológicos atuais discutidos no artigo de Matías.

Isso ocorre em um contexto em que a distinção canônica traçada por Perry Anderson entre "marxismo clássico" e "marxismo ocidental" é mais difusa do que aquela apresentada em sua obra clássica Considerações sobre o marxismo ocidental. Isso se deve a vários motivos: o primeiro é que, embora existam correntes marxistas militantes, não há um movimento operário socialista ou marxista de massas como no passado; o segundo é que a excessiva academização gerou cruzamentos entre as correntes que se declaram adeptas do marxismo clássico, assim como outras mais ligadas às diversas tradições do chamado "marxismo ocidental", tanto no debate e análise de problemas compartilhados quanto na participação militante em diversos movimentos. Sem reabrir a discussão sobre a validade ou não da categoria utilizada por Anderson, pode-se igualmente apontar que a diferença principal entre aqueles que pertencem aos diferentes legados de ambas as tradições continua sendo, sobretudo, o destaque dado à tarefa de construção de partidos. No entanto, quem deseja ter interlocutores reais em debates que tenham algum impacto para além do seu próprio nicho deve debater em ambos os campos.

Do ponto de vista de um marxismo militante que busca construir uma organização partidária, a luta pela recomposição teórica é (ou deveria ser) inseparável do trabalho para criar uma tendência revolucionária dentro da intelectualidade. E dentro desse mesmo contexto, avanços nesta dimensão também implicarão necessariamente no crescimento de uma tendência mais decidida em direção à militância revolucionária por parte de pelo menos uma parcela do marxismo acadêmico, o que, por sua vez, reformulará a relação entre o marxismo e o processo de academização.

Neste contexto, faz-se necessário pensar em que medida já existem ou podem ser geradas condições para uma "nova síntese" ou - melhor dizendo e para usar um termo menos pretensioso - uma nova recomposição do marxismo que permita integrar todos esses diversos aportes numa teoria poderosa para a crítica do capitalismo, a prefiguração da construção do socialismo e a teoria da revolução, na qual particularmente o trotskismo pode fazer contribuições destacadas e específicas.

No artigo citado anteriormente, destacamos que o trotskismo poderia contribuir para essa "nova síntese" com três elaborações centrais: a teoria da revolução permanente como uma explicação abrangente da natureza e do processo das revoluções contemporâneas, a questão da auto-organização das massas e a crítica ao estalinismo (incluindo estratégias e programas alternativos).

Sobre as duas últimas questões, o artigo de Matías apresenta um amplo conjunto de considerações. Na próxima seção, vou me referir um pouco mais detalhadamente à primeira: a teoria da revolução permanente e sua relevância em um contexto de crise civilizatória que propõe reorganizar a política ideológica e cultural para a esquerda trotskista.

Crise civilizatória, revolução permanente e luta ideológica

Em "Resultados y Perspectivas" (1906), Trótski apontou que a dinâmica da Revolução Russa levaria a classe trabalhadora ao poder, liderando uma revolta nacional com uma "política democrática geral". No entanto, diante da resistência da burguesia, o exercício do poder imporia a necessidade de transição de uma "política democrática geral" para uma "política de classe". Por "política de classe", Trótski entendia uma política de ruptura com a burguesia encaminhada à revolução socialista. Por essa razão, sua concepção de hegemonia dava maior destaque do que a de outros marxistas russos à importância da luta decidida da classe trabalhadora por seus próprios interesses, sem negligenciar a relevância de atender às demandas dos setores aliados.

O principal problema subjetivo para uma política revolucionária na atualidade reside nas dificuldades de transição de uma "política democrática geral" para uma "política de classe", ou seja, na descontinuidade entre uma e outra. Parecem existir duas razões principais: uma é a crise do movimento operário como sujeito político capaz de unir em torno de si todos os setores oprimidos; e outra é a ausência de uma perspectiva socialista como algo desejável e possível não apenas nas massas desmobilizadas, mas também em grande parte dos movimentos organizados em torno de demandas específicas (principalmente adaptados para "conquistar direitos" dentro das democracias capitalistas). Conforme evidenciado pela própria enumeração dessas dificuldades, estas podem ser estendidas à questão da hegemonia, pois ambas as teorias buscam uma dinâmica semelhante: a transformação das lutas sociais, econômicas e democráticas em lutas pelo socialismo, através da consolidação de uma força social e política que busque esse objetivo. Claro que esse problema subjetivo está relacionado ao papel das lideranças burocráticas da classe trabalhadora e dos diversos movimentos, bem como suas estratégias reformistas que atuam como aparelho conservador de contenção, desempenhando o papel de "polícia" já apontado anteriormente por Gramsci e Trótski. No entanto, justamente por isso, a questão da recomposição subjetiva é central, embora não dependa inteiramente de nossa vontade, já que ela não pode substituir as experiências das massas.

Então, juntamente com a participação decidida na luta de classes, buscando convergir com os setores mais combativos das massas e colaborando na produção de conclusões políticas comuns à luz da experiência, se coloca uma luta para influenciar as formas de pensar, abordando as questões mencionadas anteriormente: a nível do senso comum está colocada uma luta ideológica em torno de seus núcleos elementares, que é, por sua vez, sustentada por uma nova situação do marxismo e suas possibilidades de recomposição. Esta situação, por enquanto, está mais avançada no plano teórico do que no político, razão pela qual se propõe voltar a refletir sobre a operacionalidade da teoria da revolução permanente (assim como a da hegemonia) e trabalhar nos aspectos que poderiam influenciar na restauração (não apenas com base em nossa vontade, mas na medida em que a situação da luta de classes melhore) de sua dinâmica virtuosa.

Para isso, é necessário pensar em formas de contribuir para uma precondição dessa dinâmica, que é a de uma classe trabalhadora com subjetividade de classe produtora (e, portanto, consciente de sua oposição de interesses com o capitalismo). Para alcançar esse objetivo, revisaremos algumas contribuições de Mariátegui e Gramsci.

Em 1923, em um contexto mundial com certos pontos de contato, embora também grandes diferenças em relação ao presente, Mariátegui definiu (em suas palestras na Universidade Popular González Prada) a crise do capitalismo como uma crise de civilização, econômica, política e ideológica. Por isso, Mariátegui dedicou atenção especial às vanguardas artísticas como expressão da crise, bem como do início da construção de algo novo, em meio a uma situação internacional dominada pelo peso da Revolução Russa. Envolvido mais cedo do que Mariátegui na organização operária, Gramsci havia indicado - em artigos como "Socialismo e Cultura" (1916), "Por uma Associação de Cultura" (1917) ou "Cultura e Luta de Classes" (1918) - o caráter integral da crise como uma crise da civilização capitalista, semelhante a Mariátegui, ao mesmo tempo em que destacava a importância da classe trabalhadora assumir criticamente a herança cultural da sociedade atual e buscar estabelecer as bases de práticas culturais alternativas. Nos anos de L’Ordine Nuovo, aprofundou essa orientação, unindo suas preocupações culturais à ideia da classe trabalhadora como classe produtora.

Pensada em seu caráter integral, a crise implica uma necessidade de abordar não apenas a questão política e econômica, mas também a ideológica em um sentido amplo, conforme mencionado em outro artigo, seguindo uma antiga interpelação de Horacio González sobre a "cultura de esquerda". Isso inclui a discussão com as ideias do senso comum, assim como as da intelectualidade, mas também a promoção de uma prática política que revalorize as questões culturais. Nesse contexto, a luta para construir partidos revolucionários, juntamente com a agitação política com orientação hegemônica, o desenvolvimento de tendências classistas e antiburocráticas nos sindicatos e organizações de massa, e a promoção de instâncias de auto-organização, a disputa ideológica no nível da comunicação de massa (jornais digitais, rádio, TV, redes sociais) e no interior das instituições educacionais, como escolas e universidades, deve incluir decididamente o desenvolvimento de instituições político-culturais (desde suplementos teóricos, revistas ou editoriais até casas socialistas que reúnam trabalhadores, mulheres, estudantes, intelectuais e artistas). Inclusive, em situações de crescimento do ativismo social e político, esse tipo de instância atua naturalmente como locais de reagrupamento e organização, em sintonia com as lutas cotidianas compartilhadas.

Diante de possíveis - e previsíveis - objeções acusando de "culturalismo", destaco duas ressalvas. Em primeiro lugar, a colocação feita não consiste em afirmar que é possível criar uma "cultura socialista" predominante entre as massas sob a dominação do capitalismo, nem em propor uma "cultura proletária" de natureza populista ou estalinista, nem uma política "contracultural" que negligencie a luta política contra o Estado burguês. Em oposição a essas opções, o desenvolvimento de instâncias político-culturais que promovam valores contrapostos aos da ideologia capitalista atual - que, em momentos de luta de classes mais intensa, naturalmente atuam como locais de reagrupamento e debate - faz parte da luta política por uma estratégia revolucionária. Ao mesmo tempo, busca fortalecer a ideia da classe trabalhadora como "classe produtora" e, portanto, capaz de construir (com as alianças apropriadas) uma influência no plano intelectual. Peças de teatro, concertos, exposições artísticas, atividades sociais e esportivas, palestras ou cinemas/debate não substituem a política "pura e dura", mas podem proporcionar um substrato mais amplo em práticas que colaboram com a formação de uma nova subjetividade socialista e revolucionária, que vai além das lutas pontuais e da "política democrática geral". Essa luta diz respeito à questão de reconstruir o horizonte socialista como algo desejável e possível para o movimento de massas, sobre o qual faremos algumas considerações finais.

Futuros possíveis do socialismo

Nas conclusões de "O Fim da História" (1992), já mencionado, Perry Anderson questionava as possibilidades do socialismo para o futuro, durante o auge do neoliberalismo. Nessa reflexão, o historiador britânico apresentava quatro "imagens no espelho", silhuetas de outras experiências históricas com as quais pretendia pensar o que poderia acontecer com o socialismo a partir de então: as imagens eram jesuíta, leveller, jacobino e liberal. Jesuíta, porque podia-se pensar que o socialismo seria esquecido e visto, no melhor dos casos, como uma curiosidade, assim como acontecia com os historiadores contemporâneos em relação às missões da Companhia de Jesus nos territórios guaranis nos séculos XVII e XVIII. Leveller porque a outra opção era, em vez do esquecimento, a "substituição de valores". A Revolução Inglesa do século XVII, apesar de sua radicalidade e caráter pioneiro, não teve continuidade ideológica devido à predominância de imaginários religiosos formatados pelo protestantismo nos protagonistas. Daí que a Grande Revolução Francesa foi realizada ao serviço da mesma classe social, mas sem inspiração nas ideias de sua antecessora do outro lado do Canal da Mancha. Jacobino era, na perspectiva de Anderson, o caso que sintetizava a terceira opção: "a mutação". O jacobinismo como tal não tinha perdurado, mas, para sobreviver, transformou-se à direita no liberalismo e à esquerda no socialismo. Podia-se perceber elementos de continuidade em cada um dos herdeiros, mas, essencialmente, eram correntes que defendiam ideias diferentes entre si e em relação a seus antecessores. Por fim, a imagem do liberal encerrava a enumeração de destinos possíveis com a ideia da "redenção posterior". Vilipendiado pelas experiências de política de massas que iam do bolchevismo ao Estado de Bem-Estar, passando pelo corporativismo fascista, o liberalismo encerrou o século XX prevalecendo sobre seus oponentes, sob a forma da ofensiva neoliberal.

Como aponta o artigo de Matías, Anderson radicalizaria mais tarde esta definição da redenção posterior do liberalismo, indicando em seu editorial "Renovações" (2000) o neoliberalismo como a ideologia mais bem-sucedida da história.

Em seu livro "Hemisfério Esquerda" (2010), Razmig Keucheyan revisitou essas imagens no espelho do socialismo, constatando que a hipótese dos jesuítas não havia sido comprovada e indicando também que a redenção posterior parecia improvável. Dentro de um quadro de análise que buscava mapear as diversas teorias e posições críticas em relação ao capitalismo, não necessariamente socialistas e, em muitos casos, pouco afins ao marxismo - os "novos pensamentos críticos" -, Keucheyan apontou uma ideia que parece plausível: poderíamos conceber o período histórico atual como um momento semelhante ao que ocorreu entre a Revolução Inglesa do século XVII e a Revolução Francesa do século XVIII.

A ideia é sugestiva por várias razões, a primeira delas é que não considera impossível a revolução em direção ao futuro (ao contrário de Anderson). Em segundo lugar, merece ser levada a sério a ideia de que as futuras revoluções terão imaginários adequados aos seus próprios problemas, mas diferentes dos que foram predominantes nas revoluções do século XX. Sem dúvida, o socialismo do século XXI (não confundir com o estatismo burguês com um pouco de mobilização de massas, que Chávez definiu com esse nome) não será a "redenção posterior" do socialismo do século XX, precisamente porque a existência do estalinismo e seu fracasso impedem um retorno ao ponto de partida. Além disso, pode-se pensar em termos de "substituição de valores" para uma série de questões novas ou que deveriam ser incorporadas com maior ênfase ou considerações específicas em um socialismo do futuro. Por exemplo, a relação entre crescimento e decrescimento de acordo com os países e as atividades econômicas, em vez da ideia genérica de "desenvolvimento das forças produtivas" e a imagem de uma "abundância" generalizada, ou o peso da questão da libertação das mulheres em um contexto de ascensão das lutas feministas e crescimento da composição feminina da classe trabalhadora em nível mundial. No entanto, é importante observar que a "substituição de valores" com a qual Anderson define a relação entre levellers e jacobinos pode ser enganosa: além das grandes diferenças de contexto e imaginação e da falta de referência dos segundos nos primeiros, muitas de suas ideias são semelhantes. A mesma ressalva pode ser feita para um novo socialismo no século XXI: enquanto mantiver suas linhas estratégicas de expropriar a burguesia para dirigir-se à construção de uma sociedade sem classes, não poderá renunciar a uma boa parte do legado do marxismo, por mais que o reconstitua em moldes político-ideológicos novos. Nesse sentido, a reconstrução de um imaginário socialista pode combinar aspectos tanto de "substituição de valores" quanto de "mutação", e na medida em que se sustentem núcleos básicos da crítica marxista ao capitalismo, de "redenção posterior". Um trabalho teórico, político e de organização firme e sustentado - em seus múltiplos níveis - e as experiências da luta de classes com seus avanços, retrocessos, contribuições e contradições começarão a delinear qual será, finalmente, a "imagem no espelho".


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FOOTNOTES

[1Aproveito para agradecer as observações e comentários sobre o rascunho deste texto de Ariane Díaz, Esteban Mercatante, Fernando Rosso, Juan Chingo, Santiago Roggerone e Yazmín Muñoz Sad, que contribuíram para esclarecer muitas das questões levantadas. Agradeço também a Fabio Frosini por responder às minhas consultas em relação aos artigos juvenis de Gramsci, publicados sem assinatura.
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