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Conciliação de classes ou Frente Única Operária: um debate a partir da luta contra o Regime de Recuperação Fiscal de Zema em MG

Flavia Valle

Douglas Silva

Conciliação de classes ou Frente Única Operária: um debate a partir da luta contra o Regime de Recuperação Fiscal de Zema em MG

Flavia Valle

Douglas Silva

No último período, em Minas Gerais, passamos por duas paralisações unificadas do funcionalismo público, contra o Regime de Recuperação Fiscal de Zema e as privatizações, e também paralisações dos trabalhadores da educação, contra demais ataques do governo contra a educação. Contra o Regime de Recuperação Fiscal, as burocracias sindicais levam a frente uma política de conciliação de classes e de alianças com supostos aliados, como o reacionário Rodrigo Pacheco. Em contraposição a esta política, buscamos refletir através da teoria revolucionária e da batalha pela frente única operária, em diálogo com debates levados a frente por Trótski e Lênin na III Internacional Comunista, e que permanecem atuais para o debate de estratégia e programa para nossas lutas hoje.

Romeu Zema, como representante da burguesia mineira, lançou-se à governador demonstrando a máxima de Marx de que o estado burguês é o balcão de negócios da burguesia. Todavia, esta mesma burguesia tem, ora seus representantes próprios e oriundos de sua classe, ora de classes subalternas transformados em seus próprios representantes, ou seja, aquilo que Gramsci chamaria de “transformismo”, quando a classe dominante busca assimilar os líderes do movimento operário para que colaborem na manutenção da ordem, seja mediante o convencimento ou através da corrupção.

Os ataques mais recentes do governador de MG em seu 2º turno chegam em novo contexto. Agora, com um país não mais governado pela extrema direita de Bolsonaro, mas por uma Frente Ampla encabeçada por Lula-Alckmin. Por isso, a necessidade de demonstrar as conexões e desmistificar ilusões de que derrotar Zema passa por se apoiar em outras alas de representantes da burguesia, tais como Rodrigo Pacheco ou até mesmo o governo federal. Tal debate é fundamental, justamente, por se tratar da política das burocracias sindicais, da CUT e do PT, que estão na direção estadual do SindUTE-MG, o segundo maior sindicato do Brasil, o qual leva a frente uma política de conciliação de classes, depositando toda a confiança na pressão parlamentar, no reacionário Centrão e no governo de Frente Ampla, contra uma política que batalhe pela constituição dos trabalhadores como sujeitos capazes de tomar em suas próprias mãos a luta contra os ataques de Zema e da extrema direita, assim como aos projetos neoliberais já aprovados pelo governo Lula-Alckmin como o Novo Arcabouço Fiscal e a privatização do metrô de BH.

Frente Única Operária e a batalha dos revolucionários pela unidade das fileiras operárias

Trótski reflete como “o problema da frente única surgiu da necessidade de assegurar à classe operária a possibilidade de uma frente única na luta contra o capital, apesar da divisão inevitável, na época presente, das organizações políticas que têm o apoio da classe operária” [1]. Contudo, enquanto debatia o papel da frente única como parte da mais ampla unidade entre as diversas categorias da classe trabalhadora no combate ao fascismo na Alemanha, a independência entre as classes — a burguesia de um lado e a classe trabalhadora de outro com seus interesses antagônicos e irreconciliáveis — se apresentava como elemento fundamental para determinar quais os sujeitos e de qual classe poderiam erguer uma saída contra os ataques aos trabalhadores, sem depositar confiança em nenhuma ala da burguesia.

Nesse sentido, Trótski argumentava contra o erro que representava, para os revolucionários, se apoiarem em um “bloco de esquerda” com a burguesia, o qual em nosso caso se apresenta nas ilusões alimentadas na figura de Pacheco e do conjunto da Frente Ampla encabeçada por Lula-Alckmin. O bolchevique seguia dizendo:

Os reformistas [...] serão os agentes do bloco de esquerdas na classe operária. [...] As camadas de operários desorientadas pela guerra e a lentidão da revolução podem depositar suas esperanças no bloco de esquerdas como mal menor, ao não ver outros caminhos e pensando em não arriscar nada [2].

De tal modo, combater ilusões e todo tipo de demagogia nas fileiras da classe trabalhadora era tarefa essencial na luta que se travava por uma saída a favor do conjunto dos trabalhadores, sem meios termos. Trótski não recusava a necessidade da unidade, mas salientava quais eram os setores que deveriam construí-la. Por isso, foi taxativo contra a ilusão numa suposta burguesia progressista ao afirmar que, para os revolucionários:

um dos meios mais seguros de combater as tendências e as ideias do bloco de esquerdas na classe operária – ou seja, do bloco dos operários com uma parte da burguesia contra outra parte desta – é defender com resolução e perseverança a ideia do bloco de todos os partidos da classe operária contra toda a burguesia [3].

Seguindo as elaborações do bolchevique, Isaac Deutscher, principal biógrafo de Trótski, enfatizava que a frente única não deveria “transformar a ideia do socialismo na insignificância do sindicalismo e a reforma parlamentar, mas levar à luta das ‘exigências parciais’ seu próprio espírito e objetivo revolucionários.” Seguindo, finaliza dizendo que, tanto Lênin quanto Trótski, viam que “a arena principal da frente única estava fora dos parlamentos, nos sindicatos, na indústria e ‘nas ruas"’ [4]. Por conseguinte, não ignoravam o parlamento, mas alertavam sobre o que era central para a tática da frente única operária, ou seja, ser construída desde baixo, sendo parte de organizar os trabalhadores nos sindicatos, nas fábricas — em nosso caso, também nas escolas — e “nas ruas”, diferente de acordos feitos pelo alto sem participação e independência de classe.

Trótski também sublinhou que a frente única operária não se trata de um “fim em si mesmo”, mas parte do processo de se preparar para a tomada do poder pela classe trabalhadora. A esse respeito, Albamonte e Maiello afirmam que “a frente única para a defesa em determinado momento da correlação de forças devia passar a ser ofensiva, ou seja, sair dos limites do regime burguês e propor-se a sua destruição” [5]. Isto é, não se trata de uma frente em aliança com a burguesia, mas um fronte de batalha com os partidos e organizações dos trabalhadores e com os trabalhadores, como forma de impor uma saída favorável aos mesmos.

Assim sendo, a construção da frente única operária envolve a batalha pela auto-organização dos trabalhadores e setores oprimidos, contra a estratégia que deposita suas fichas na conciliação de classes, imposta pelas burocracias sindicais, as quais impossibilita o desenvolvimento de um mecanismo mais potente de organização desde baixo da classe trabalhadora como sujeito, através da batalha pela auto-organização desde os locais de trabalho e de organismos como comando de mobilização unificado entre as diferentes categorias que lutam contra o RRF. Tal processo poderia permitir, por exemplo, que a força e disposição de luta dos trabalhadores, demonstrada nas duas paralisações unificadas do funcionalismo, não se limitassem a paralisações esparsas contra os ataques de Zema, como vimos até agora, mas que se transformasse numa massa coordenada, num corpo coletivo, desde os grandes bastiões da classe operária como a educação, Cemig e Copasa, com comitês pela base desde os locais de trabalho, com assembleias, construindo em cada escola e local de trabalho. Imaginem a força que poderiam ter os trabalhadores de serviços estratégicos como os da Cemig e Copasa junto aos trabalhadores da educação, em ações construídas desde as bases de cada região do estado! Em suma, a auto-organização poderia demonstrar a capacidade da classe trabalhadora em pensar e fazer política, se organizando não apenas contra os ataques de Zema, mas de todos os representantes da burguesia que buscam impedir que nossa classe emerja como sujeito capaz de pensar os passos da própria luta.

Portanto, batalhar pela auto-organização também passa por fazer experiências com o papel das burocracias sindicais, dos partidos burgueses, das polícias (que em nossas mobilizações já demonstraram seu papel repressivo inúmeras vezes) e reformistas de todo tipo, que se esforçam ao máximo para impedir qualquer independência dos trabalhadores. Para tanto, buscam a todo custo vender a ideia de que nossa força está na confiança em alguns poucos parlamentares e na pressão aos políticos que, em sua maioria, demonstraram pertencerem ao lado oposto ao nosso. Ou então que nosso “teto” de ambição seria, no máximo, a renegociação de uma dívida que não foi contraída pelos trabalhadores, mas pela própria burguesia para manter seus lucros e privilégios de classe, chegando ao impropério de reivindicarem até mesmo governo neoliberais como os de Aécio e Anastasia por supostamente terem se comprometido com o pagamento da dívida pública.

Para superação dos limites da política de conciliação de classes, a batalha pela frente única operária e a auto-organização cumprem um papel chave em impulsionar a mobilização desde a base de trabalhadores e, a partir da experiência com a luta de classes e a disputa entre estratégias distintas, demonstrar a real disposição dos setores em campo na luta por nossos direitos e demandas. Afinal, são nos processos de mobilizações, paralisações e greves, que testamos o verdadeiro espírito dos grupos que dizem defender os interesses dos trabalhadores e dos setores oprimidos, quando na verdade buscam reorganizar o tabuleiro econômico e político a favor de seus interesses e disputas próprias.

Como no golpe institucional de 2016, a conciliação de classes já foi colocada à prova

A conciliação de classes já foi colocada à prova no passado. Durante os governos do PT, o partido protagonizou alianças diversas com as alas mais à direita na arena política, incluindo o próprio Centrão, com o qual voltaram a estreitar relações cedendo, inclusive, ministérios. Assim, construíram alianças com grupos que possuíam interesses distintos aos dos trabalhadores e setores oprimidos. Nesse sentido, o golpe institucional de 2016 foi apenas a ponta do iceberg, representando a sanha da burguesia em atacar, não apenas o PT, o qual voltou ao governo perdoando os golpistas, mas o conjunto dos trabalhadores aplicando as reformas da previdência, a trabalhista e o Novo Ensino Médio, por exemplo. Sendo que todas elas seguem intocadas pelo atual governo.

Hoje, como se o passado não permitisse a apreensão de lições, a conciliação de classes voltou ao centro da política, porém num regime político ainda mais degradado e com um lulismo senil que já não pode oferecer sequer a ilusão de que haverá uma melhora social substantiva no país, ilusão vendida ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula. Conciliação de classe que acaba por fortalecer a extrema direita. A presença de Alckmin na vice-presidência é apenas uma das expressões dessa reconciliação e perdão aos golpistas, mas a tentativa de nos vender Pacheco, apoiador do golpe de 2016, como “amigo” contra Zema, também é sintomático da necessidade do governo de Frente Ampla, juntamente com as burocracias sindicais, em limpar o terreno contra qualquer possibilidade de auto-organização dos trabalhadores e devolver um remédio amargo, tal como a conciliação de classes, como a única solução.

Lições e perspectivas para uma frente única operária hoje

Transcorrido os aspectos históricos sobre a frente única operária, nos cabe a pergunta sobre quais lições e perspectivas podemos extrair para a construção de uma alternativa que seja encabeçada hoje, em Minas Gerais, pelo funcionalismo público e o conjunto da população trabalhadora contra os ataques do governo Zema. Não obstante, uma primeira lição passa pela compreensão de que atores burgueses distintos, como Pacheco e o conjunto da Frente Ampla, buscam não só cravar seu espaço frente às próximas eleições e desgastar Zema para esse objetivo, mas também de tentar salvar um regime político extremamente degradado e em que não há bases sustentáveis para uma nova hegemonia como a que tentou erguer o lulismo anteriormente. Portanto, não se trata de aliados ou interessados em solucionar os problemas que atingem a população mineira, nem mesmo de combater a extrema direita, mas empenhados em acordos que descartam o conjunto dos trabalhadores como sujeitos capazes de construir alternativas verdadeiramente responsáveis pelos seus interesses de classe.

Agora, diante deste “lulismo senil em um regime degradado”, as ilusões na conciliação de classes se demonstra de modo ainda mais contraditório, pois se pauta na integração de atores políticos oriundos do apoio ao golpe institucional e/ou do bolsonarismo a Frente Ampla, significando acordo e ocupação de cargos, como no caso do Centrão, de partidos que foram base do governo de Bolsonaro e até mesmo do partido Republicanos de Tarcísio de Freitas em São Paulo, governador que persegue metroviários que lutam contra a privatização do metrô e da Sabesp (companhia de água de SP) e que ainda será agraciado pela Frente Ampla com verbas do novo PAC para as linhas privatizadas do metrô. Isto é, a conciliação não combate as causas, muito menos os efeitos da ascensão da extrema direita. No caso de Zema, resta saber se seguirá destinado ao descarte pela Frente Ampla, como vimos no processo ao redor do Regime de Recuperação Fiscal ao não ter aceitado inicialmente uma renegociação da dívida, ou mais integrado posteriormente (como acontece hoje com Tarcísio de Freitas).

Contra o RRF de Zema, a federalização das empresas mineiras de Pacheco ou a “terceira via” de Aécio Neves, ressuscitado das cinzas para lembrar que tudo de ruim sempre pode voltar à superfície, não respondem em nada aos interesses da população mineira. Pois a chave da compreensão da dívida e da estrutura que a sustenta segue intacta, a qual reside na manutenção dos privilégios de empresas bilionárias que seguiram com isenções no governo atual e em todos os anteriores.

Consequentemente, todos os atores burgueses e políticos de plantão seguem sem questionar uma gota da responsabilidade de empresas como a Vale e a Localiza no empilhamento da dívida, ao passo que se mantêm isenções aos mega-empresários. Ou seja, a unidade construída em torno de uma solução entre os de cima, para a situação de Minas, passa pela aliança entre distintos atores burgueses, os quais, ainda que atravessados pelas disputas inter-burguesas, seguem em consonância quando a questão é preservar os lucros capitalistas e agir sem permitir que haja espaço para os trabalhadores e população atuarem na construção de uma alternativa que os tenham como sujeitos atuantes.

Logo, o debate sobre a unidade necessária entre as fileiras de trabalhadores e da população mineira contra os ataques de Zema, passa pela distinção entre aqueles que pertencem a nossa classe, isto é, possui interesses em comum e podem, em unidade, levantar um programa político contra qualquer setor burguês que busque vender suas alternativas e interesses de classe como sendo de toda a sociedade. Contudo, nossa batalha pela independência de classe aposta na força de unidade de trabalhadores, como a que se mostrou de forma embrionária nas paralisações unificadas de servidores em MG contra Zema (apesar do controle das burocracias sindicais em não fomentar a cosntrução das paralisações desde as bases), e pela “hegemonia operária”, mirando contra os lucros de grandes capitalistas que vivem às custas da vida da população e da destruição sócio-ambiental e batalhando para aliar a classe trabalhadora às demandas populares, em unidade com a juventude, mulheres, negros, LGBTQIAPN+, povos originários, sem ilusões no Congresso, no STF e no conjunto da burguesia.


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FOOTNOTES

[1LEON, Trótski. Leon Trótski: Sobre a Frente Única (1922). Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Leon-Trotski-Sobre-a-Frente-Unica-192

[2Ibidem.

[3Ibidem.

[4DEUTSCHER, Isaac. O profeta desarmado 1921-1929. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005.

[5ALBAMONTE, Emilio; MAIELLO, Matias. Estratégia socialista e arte militar. 1. Ed. São Paulo: Edições Iskra, 2020.
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Flavia Valle

Professora, Minas Gerais
Rede estadual de ensino, Contagem

Douglas Silva

Professor de Sociologia
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