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SEMANÁRIO

Da revolta de 1936 à Nakba: a Internacional Comunista e a Quarta Internacional na questão palestina

Noah Brandsch

Da revolta de 1936 à Nakba: a Internacional Comunista e a Quarta Internacional na questão palestina

Noah Brandsch

Este trabalho se propõe a contribuir para uma compreensão mais profunda da chamada “questão palestina”, em um sentido de pensar a superação do apartheid e da opressão colonial na região. Para isso, a pesquisa investigará mais profundamente um período que foi chave para o desenvolvimento dos conflitos hoje existentes: a Revolta na Palestina de 1936-39 e a criação do Estado de Israel em 1948 (Nakba); e se deterá em investigar as posições dos grupos da chamada “extrema esquerda” nestes processos. Mais especificamente, no Partido Comunista Palestino (ligado à Comintern) e nos grupos da Oposição de Esquerda/IV Internacional, e em sua ligação com os debates e questões da luta de classes internacionalmente. Dessa forma, à luz da experiência do passado, teremos uma base mais sólida para pensar esses problemas no presente tanto na Palestina quanto fora dela.

من انتفاضة 1936 إلى النكبة: األممية الشيوعية واألممية الرابعة حول القضية الفلسطينية

Em diversos momentos das últimas décadas a chamada “questão palestina” volta à tona por conta dos inúmeros ataques do Estado sionista de Israel, que configura um verdadeiro Apartheid étnico-racial com a população árabe-palestina. Em meio a isso, surgem numerosas imagens à mente e em setores progressistas, de jovens ou mães palestinas se colocando em frente a tanques com apenas pedras na mão, resistindo contra essa opressão.

Essa é uma resistência que surge desde muito antes da partilha do território em 1948 com a votação na ONU para a criação de Israel. Durante todo esse período, múltiplas estratégias, com diferentes tradições políticas, atuaram e dirigiram estes processos de resistência e luta. Apesar de toda a força do povo palestino e da solidariedade internacional, nenhuma direção política se mostrou capaz, até o momento, de se enfrentar até o final com a opressão imperialista e sionista na região, a fim de superar tal condição para uma emancipação da população árabe e judia.

Poderíamos nos perguntar hoje se as principais direções políticas da Palestina, a OLP (Organização para a Libertação da Palestina/ منظمة التحرير الفلسطينية , também conhecida como Autoridade Palestina) e o Hamas, tem uma estratégia de fato para a libertação palestina, ou se atuam de forma a colaborar com a própria normalização do Apartheid e a contenção de uma nova Intifada que possa rumar para uma ruptura revolucionária com o Estado sionista.

A OLP e o Fatah (maior grupo da OLP), com mais influência na região da Cisjordânia por um lado, com uma política que reconhece diretamente a solução de dois Estados, legitimando a ocupação e o Apartheid. E o Hamas, com mais influência na Faixa de Gaza, por outro, apesar de ter métodos de enfrentamento mais incisivos com Israel (como através da luta armada ou o “terrorismo”, por exemplo), tem uma direção política e um programa que não buscam responder estruturalmente o problema palestino, como a libertação nacional em relação ao imperialismo; isso se dá também por ser um grupo com ligações diretas com as burguesias árabes, que tem seus interesses próprios na região (contrários aos dos trabalhadores árabes), principalmente com a monarquia teocrática e reacionária do Qatar. Em suma, nenhum dos dois se coloca à altura da tarefa de dar uma saída revolucionária às massas árabes-palestinas para a libertação nacional, justamente por não terem independência em relação às burguesias que buscam manter esta opressão, seja a burguesia sionista, imperialista ou árabe.

Portanto, uma das questões que levou à investigação presente neste trabalho foi: que direção política, e com que estratégia, poderia levar a uma saída que se enfrentasse com a opressão sionista e imperialista às massas árabes-palestinas? E em segundo lugar, como as massas judias se inseriam nesta questão?

Para buscar responder esta questão, é fundamental voltar a um divisor de águas na história da esquerda e do movimento operário internacional: a Revolução Russa. Dividiu internacionalmente os setores que defenderam a tomada do poder pelos trabalhadores, sintetizada na palavra de ordem “todo poder aos sovietes”, e os que defenderam os Exércitos Brancos contrarrevolucionários. Dessa divisão surgiu a Internacional Comunista, dirigida pelo Partido Bolchevique, carregando consigo a estratégia que permitiu a tomada do poder em 1917 e dando vazão às principais demandas das massas russas naquele momento: pão, paz e terra.

Entretanto, por diversas questões que não vale aprofundarmos neste momento, a Internacional Comunista (IC) começou a passar por um processo de burocratização e a ter uma política alheia à tradição revolucionária dos bolcheviques de 1917, levando à derrotas de processos revolucionários, como a Revolução Chinesa de 1927 e a Espanhola de 1936; o que ficou conhecido como “stalinismo”, por o principal expoente deste processo de burocratização ser Josef Stálin. Disso, surgiram novas disputas estratégicas, ocasionando na expulsão da Oposição de Esquerda da IC, os quais ficaram conhecidos como “trotskistas”, por seu principal dirigente ser Léon Trotsky. Essas disputas se generalizaram nos diversos Partidos Comunistas e no movimento operário em todo o mundo, inclusive na Palestina, que tem suas particularidades específicas por conta do contexto do mandato britânico e da cada vez maior ocupação sionista.

É neste recorte, na disputa entre a IC e a Oposição de Esquerda (o que depois viria a ser a IV Internacional), ou entre stalinismo e trotskismo, na Palestina, em que vamos nos deter.

A Revolta de 1936-39 e a formação social palestina

Para entendermos com qual estratégia intervir em cada situação de cada tempo e espaço, é preciso entender esse tempo e espaço, e como operam as forças que pressionam cada situação. Em outras palavras, para dar uma saída à opressão nacional palestina, é necessário entender sua formação social, e como operam as diferentes classes e setores: o imperialismo, o sionismo, as burguesias árabes dentro e fora da palestina, as lideranças feudais, os trabalhadores e os camponeses.

A Revolta de 1936-39 foi um momento em que todas essas forças se movimentaram, e uma análise detida deste processo nos permite analisar as movimentações de cada setor.

As causas mais profundas desta revolta estava na opressão nacional do povo árabe-palestino pelas mãos dos imperialistas e de seus correios de transmissão na região, os sionistas. Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, os britânicos fortaleceram sua influência no Oriente Médio, e na Palestina não foi diferente: o Acordo Sykes-Picot estabeleceu o território palestino sob mandato britânico, que começou a operar em 1920. Junto à isso, a Declaração Balfour (1917), escrita pelos britânicos, prometia à Organização Sionista e ao Barão Rothschild a criação de um “lar judeu” na Palestina. A partir dessa década, começaram a crescer cada vez mais a imigração e os assentamentos judeus na Palestina, impulsionados diretamente por organizações sionistas.

Os interesses do imperialismo britânico na região, de espoliação dos recursos naturais, submetiam as massas árabes a uma enorme exploração e opressão. A exportação de capitais estrangeiros para a Palestina, com centros de mineração e extração de petróleo, levou à criação de cidades relativamente grandes em comparação às vastas vilas da região, juntamente à uma burguesia árabe, uma pequena-burguesia urbana e um concentrado proletariado, como nas cidades de Haifa, Jaffa, Al-Quds, Nablus etc. Isso levava a uma desigualdade entre campo e cidade, com a cidade tendo uma preponderância econômica e política em relação ao campo, em que tanto a burguesia quanto as elites feudais desenvolveram-se de forma submissa e dependente do imperialismo (um exemplo disso é como na Palestina, em muitos casos as próprias lideranças feudais compravam terras para revendê-las aos colonos sionistas), onde ambos disputavam para ter uma melhor posição no regime colonialista. Esse processo de desenvolvimento, caracterizado por Trotsky como desenvolvimento desigual e combinado ao analisar a formação social russa, é parte da forma com a qual se desenvolveu capitalismo internacionalmente, particularmente nas regiões coloniais e semi-coloniais; é um entrelaçamento entre os aspectos mais avançados do desenvolvimento da técnica capitalista e as formas “pré-capitalistas” de produção, dando origem a complexas formações sociais.

Na particularidade da Palestina, a burguesia sionista competia com a burguesia árabe para ver qual das duas cumpriria melhor o papel de correia de transmissão dos interesses do imperialismo britânico. A burguesia sionista se provou mais capaz.

Alguns dados de Ghassan Kanafani, histórico militante marxista da Palestina e assassinado em 1972 pela polícia secreta israelense, em seu livro A Revolta de 1936-39 na Palestina, mostram o desenvolvimento da burguesia sionista na região em detrimento da árabe durante as décadas de 1920 e 1930:

“Em 1935, por exemplo, os judeus controlavam 872 de um total de 1212 estabelecimentos industriais na Palestina, empregando 13.678 trabalhadores , enquanto os demais eram controlados por árabes-palestinos e empregavam 4 mil trabalhadores. O investimento industrial judaico totaliza PL 4,391 milhões, antes 704 mil dos árabes-palestinos. A produção das empresas judaicas atingia Pl 6 milhões, contra PL 1,545 milhão das árabes-palestinas. Além disso, o capital judeu controlava 90% das concessões do governo do mandato britânico, equivalentes a um investimento total de PL 5,789 milhões e 2619 empregos.” [1]

Acompanhado à isso estava uma forte imigração judaica para a região, principalmente por conta da fuga do anti-semitismo que crescia na Europa, e da propaganda sionista de “retorno a um lar” e de formação de um Estado em “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Estima-se que em 1914 haviam 700 mil árabes-palestinos para 60-80 mil judeus, em 1937 essa relação mudou, respectivamente, de 1,3 milhão para 650 mil, fruto direto da imigração judaica para a região. Ligada a essa imigração, havia uma política deliberada por parte do mandato britânico e dos sionistas de substituição dos postos de trabalhos de trabalhadores árabes-palestinos por judeus, de assentamentos para colonos e expulsão dos árabes. Essa situação levou a um forte crescimento do desemprego na população árabe e a uma queda no salário real dos trabalhadores árabes (para dar um exemplo, George Mansour, secretário da Federação de Trabalhadores árabes-palestinos de Jaffa indicou à Comissão Real Peel que 98% dos trabalhadores árabes-palestinos viviam “bem abaixo da média” [2]). De tal forma, essa política atuava na divisão entre as fileiras dos trabalhadores árabes-palestinos e judeus, enfraquecendo a sua luta enquanto classe contra a classe capitalista; talvez uma das maiores expressões dessa divisão seja a criação da central sindical Histadrut em 1920, que apenas comportava trabalhadores judeus, e que veio a ser um braço direito do movimento sionista, inclusive sendo presidida pelo futuro Primeiro Ministro de Israel, David Ben-Gurion. O sionismo, com sua ideologia nacionalista e reacionária, atuava como garantir dos interesses do imperialismo na região:

“O sionismo é uma filosofia reacionária porque busca alcançar a salvação dos torturados povos judeus forjando uma aliança com o imperialismo britânico – contra suas vítimas, os árabes. Mas o sionismo não é apenas reacionário; também é utópico. Os eventos atuais demonstraram - para que até os cegos possam ver - que os imperialistas britânicos usam os judeus apenas como um peão de sua própria estratégia imperial de "dividir para conquistar". Assim, trinta anos após a declaração de Balfour, os judeus palestinos se encontram caçados, como animais selvagens, pelo soldado britânico, em sua própria “pátria”, enquanto todo o mundo árabe está em pé de guerra contra os judeus.” [3]

Toda essa situação deu origem à revolta de 1936. Foi uma revolta que generalizou-se por toda a Palestina contra a ocupação sionista e britânica, tendo um caráter de guerra civil e insurreição armada em diversos momentos, mesclando a formação de guerrilhas nas amplas massas de camponeses pobres com greves nos centros do proletariado nas grandes cidades. Essa revolta, em seus diferentes momentos de ascensão e refluxo, teve fortes aspectos de auto-organização, com comitês e representantes da própria revolta.

“Na verdade, foram os “oficiais” que emergiram das fileiras dos próprios camponeses que continuaram a desempenhar o papel principal, mas a maioria estava sujeita à" direção do Mufti.” [4]

Entretanto, a principal causa de sua derrota foi, em primeiro lugar, a direção política da revolta, abrindo espaço para uma violenta repressão por parte das forças militares sionistas e britânicas, totalizando uma cifra de mais de 5 mil mortos árabes.

No campo, a liderança clerical-feudal tomou o protagonismo. Nas cidades, as massas eram dirigidas pelo Mufti. Ambas cumpriram um papel de, segundo Kanafani, “ser obrigada a escolher entre confrontar essa escalada de vontade de lutar entre as massas ou sufocá-la e colocar as massas sob seu controle.” [5]. Ou seja, um papel de se colocar como uma direção capaz de confrontar o imperialismo e o sionismo, batalhando pela unidade dos camponeses e proletários, a fim de dar uma saída à libertação nacional:

“O Partido da Defesa, liderado por Raghib Nashashibi consistia em um pequeno grupo de effendis urbanos que representava sobretudo os interesses da nascente burguesia compradora e começava a descobrir que sua existência e crescimento dependia de estar ligada não apenas ao colonialismo britânico, mas também ao movimento sionista que controlava a transformação industrial da economia palestina. Devido a essa situação de classe, é possível sintetizar as suas histórias dizendo que eles “cooperaram com as autoridades da ocupação no campo administrativo e com os sionistas no campo comercial (...) Os líderes feudais e clericais palestinos sentiram que seus próprios interesses também estavam ameaçados pela crescente força econômica: o capitalismo judeu aliado ao mandato britânico. Mas seus interesses também eram ameaçados pelo lado oposto - as massas pobres árabes que já não sabiam a quem seguir. A liderança feudal e clerical palestina não podia tolerar a ascensão de um movimento sindical árabe independente de seu controle, assim, perpetrava ações para aniquilá-lo." [6]

Além das próprias elites árabes-palestinas e do sionismo/imperialismo, Kanafani classifica as burguesias e os Estados árabes vizinhos (que a partir de 1945 seria representado na Liga Árabe) como principais inimigos do povo palestino, por seu papel reacionário que cumpriram durante a revolta:

“Enquanto isso, os países árabes ao redor da Palestina jogavam dois papéis conflitivos entre si: por um lado, o movimento de massas pan-árabe servia de catalisador do espírito revolucionário das massas palestinas, já que existia uma relação dialética entre os palestinos e as lutas árabes em geral. Por outro lado, os regimes estabelecidos nos países árabes faziam de tudo para impedir e minar o movimento de massas palestino. O conflito cada vez mais agudo na Palestina ameaçava contribuir para o desenvolvimento mais violento da luta nesses países, criando um potencial revolucionário que as suas classes dirigentes não podiam desprezar.” [7]

As origens da derrota da revolta de 1936-39 estava na falta de uma direção revolucionária e de um setor que pudesse hegemonizar, levantar as bandeiras, e dar vazão às grandes massas camponesas que se revoltavam, formando comitês de resistência e armando-se. As elites palestinas, tanto as clérigas e feudais quanto a burguesia e pequena burguesia árabe urbana, ainda que não tivessem nenhum interesse na ofensiva sionista, foram incapazes de levar à frente tais demandas a fim de completar o processo revolucionário. Um programa que fosse levantado pelo proletariado, se aliando aos camponeses, de uma revolução agrária (contra as terras ocupadas pelos sionistas e senhores feudais), expropriação dos oleodutos que escoavam as riquezas para os britânicos, e uma política internacionalista para o povo judeu que era perseguido na Europa, era o que poderia ter superado a direção reacionária e levado o processo revolucionário a cabo. O Partido Comunista, e nenhum outro partido naquele momento, seja pelo programa ou pela sua pouca influência, foi capaz disso. A derrota de 1939, como definiu Kanafani ao final de sua análise, abriu espaço para a Nakba no pós-guerra.

O Partido Comunista

O Partido Comunista da Palestina, membro da IC e fundado em 1923 por um grupo majoritariamente judeu, legava a estratégia etapista da estratégia stalinista nos países coloniais e semi-coloniais. Essa estratégia presumia que, dado o suposto baixo desenvolvimento do capitalismo nesses países, era necessário um processo revolucionário dirigido pela burguesia nacional, supostamente anti-imperialista, tal qual foi o papel da burguesia na Revolução Francesa ou Inglesa. A questão é que, justamente, essas burguesias se desenvolveram de forma a estarem subordinadas às burguesias imperialistas, e o seu papel na revolta palestina de 1936-39 o provou.

O PCP, porém, julgava haver um setor anti-imperialista nas elites árabes, e na prática atuou subordinando-se a ela ao invés de construir uma posição independente dos trabalhadores em suas organizações de luta como sindicatos e os comitês que se desenvolveram durante a revolta. Tanto é que, durante a revolta, ficaram reféns da política do Mufti:

“... deve ser adicionado o fato de que o Partido Comunista era próximo à direção de Hajj Amin al-Hussaini [Mufti], a quem via como “pertencente à ala mais extremamente ant-imperialista do movimento nacionalista.” [8]

Da mesma forma, o PCP, em seu IX Congresso em 1945, defende a unidade e fortalecimento das “forças progressistas”, das quais estariam inclusas as burguesias árabes (através da Liga Árabe) e os “imperialismos democráticos”) através da ONU:

“Portanto, a tarefa dos povos do Oriente Médio é lutar pelo fortalecimento das forças progressistas, a fim de trazer uma liderança mais democrática dos países árabes, sua unidade e sua união no âmbito das Nações Unidas para salvaguardar a paz no Oriente Médio, incluindo a Palestina.
Sob tais condições, a Liga Árabe seria capaz de ajudar na solução de muitos problemas do Oriente Médio.” [9].

Como se não bastasse o seguidismo do stalinismo ao nacionalismo burguês árabe, o PCP racha em 1943, formando a Liga pela Libertação Nacional, aderindo cada vez mais ao nacionalismo árabe; e após a criação de Israel, se torna o Partido Comunista da Terra Hebraica, também conhecido como Maki, tomando posições cada vez mais abertamente próximas ao sionismo.

E talvez o ponto mais central e diretamente traidor da política stalinista seja a votação da URSS na ONU a favor da partilha do território palestino em novembro de 1947, fortalecendo a política do imperialismo na região:

“Em 29 de novembro de 1947, a URSS votou a favor do plano de dividir a Palestina e criar um Estado judeu e um Estado árabe. A Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU foi aprovada com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções, incluindo, notadamente, a Iugoslávia. A URSS garantiu os votos “sim” da Bielo-Rússia, Ucrânia, Polônia e Tchecoslováquia, necessários porque a maioria de dois terços era necessária para aprovar a resolução. A criação do Estado judeu na Palestina exigia que os Estados Unidos e seus aliados, bem como a União Soviética e seus satélites, votassem da mesma forma, apesar da escalada da Guerra Fria. No confronto bipolar emergente, o projeto sionista só pôde ter sucesso porque os interesses das duas superpotências coincidiram temporariamente nessa questão.” [10]

Este apoio da União Soviética à criação do Estado de Israel na ONU em 1947, bem como seu envio de armas às milícias sionistas via Tchecoslováquia, é parte da disputa por influências com os Estados Unidos, frente à decadência da hegemonia britânica e indícios da Guerra Fria. Ele é parte dos interesses da burocracia stalinista em conter o movimento revolucionário internacional, ameaçando sua própria burocracia. A explosão da luta de classes no pré, durante e pós guerra nos diferentes países árabes obrigou a URSS a fazer o mesmo que fez com os movimentos revolucionários da Europa no final da guerra: pactuar com o imperialismo a fim de controlá-los, exemplo disso são os pactos de Yalta e Potsdam, ou a própria dissolução da Internacional Comunista em 1943.

O zigue-zague da URSS baseada nos acordos diplomáticos para manter o “socialismo em um só país”, e não em uma luta revolucionária centrada na luta de classes, fez com que os PCs perdessem grande influência na classe trabalhadora e no movimento de massas, abrindo espaço cada vez maior para a influência de direções nacionalistas e reacionárias:

“Os comunistas árabes consequentemente endossaram a posição soviética, embora tivessem de enfrentar consequências muito negativas, incluindo a perda de muitos de seus membros. De agosto de 1947 a junho de 1949, a lista do Partido Comunista Libanês caiu de 12.000 para 3.500, enquanto o partido sírio caiu de 8.400 membros para 4.500 - uma perda de entre dois terços e metade de seus membros. Essa queda na adesão decorreu não apenas da posição dos partidos na Palestina, mas também porque suas atividades clandestinas que levaram os governos sírio e libanês a desmantelá-los em reação ao voto soviético na Palestina. O preço era ainda mais alto no Iraque; líderes do Partido Comunista Iraquiano foram presos, condenados à morte e executados em fevereiro de 1949.” [11]

A separação do Partido Comunista Palestino em um setor pró-nacionalismo árabe e outro pró-sionista expressava o que estava colocado naquele momento: uma divisão entre os trabalhadores árabes e judeus em prol de um conflito reacionário que era dirigido pelas burguesias. Esse chauvinismo de ambos os lados e o enfraquecimento do movimento operário como um todo na região era fruto da derrota da revolta que se selou em 1939, e da Catástrofe da Nakba. O stalinismo provava ser incapaz de ter uma estratégia para se manter com independência de classe, não estando à altura de dirigir as massas árabes-palestinas à libertação nacional.

“Ao invés de ser a vanguarda da luta anti-imperialista das massas de árabes e judeus, o Partido Comunista da Palestina se tornou o seguidor “comunista” dos sionistas “de esquerda”. Precisamente em uma hora em que o sionismo mostra a todos a sua face contrarrevolucionária, o seu servilismo aberto ao imperialismo, então o próprio Partido Comunista leva ao ridículo toda a sua exposição anterior das fraudes imperialista e sionista.” [12]

O trotskismo na Palestina

Tais posições da IC stalinista, desde a década de 1920, já gerava diversas indignações e divergências nas fileiras dos comunistas que buscavam uma continuidade da estratégia revolucionária legada da Revolução Russa, e na Palestina não foi diferente. A Oposição de Esquerda Internacional, que a partir de 1938 se tornaria IV Internacional, formou um grupo chamado Revolutionary Communist League of Palestine, que editava o jornal em árabe Sawt al-Haq e em hebraico Kol Hamaamad. Este grupo foi formado no final dos anos 1930 por um setor do KPO (Oposição de Esquerda do Partido Comunista Alemão) e o racha de um setor da esquerda do Poalei Tziyon Smol que organizava círculos de debates marxistas; em 1942, um importante dirigente árabe do PCP, Jabra Nicola, rompe com o stalinismo e soma às fileiras do RCLP.

Um debate importante colocado para os comunistas naquele momento era sobre a questão judia, e em especial por um grupo revolucionário na Palestina majoritariamente formado por judeus que haviam rompido com o sionismo de esquerda. Com a atuação do stalinismo nos países da Europa que abriu espaço ao nazismo e ao anti-semitismo, grandes setores da classe trabalhadora judia buscavam no sionismo de esquerda ou no trotskismo uma alternativa:

“No Hashomer Hatzair [grupo sionosta de esquerda], eles estavam procurando uma nova identidade judaica que quebrasse as tradições que me foram transmitidas. Na prática, porém, o projeto político do socialismo judaico na Palestina provou ser uma utopia reacionária. Eles reconheceram que o socialismo, como resposta concreta à crise capitalista, só poderia ser realizado dentro de uma estrutura internacional. O comunismo oficial teria sido uma opção óbvia para os jovens revolucionários judeus. Mas o regime de Stalin na União Soviética mostrou seus traços anti-semitas cada vez mais abertamente.” [13]

Este elemento da unidade internacional das fileiras da classe trabalhadora contra a opressão anti-semita e o colonialismo era algo muito marcado no trotskismo. A partilha da Palestina era algo marcado pelo sangue dos árabes e dos judeus. Em 1940, pouco antes de sua morte, Trotsky escreve em On the jewish problem:

“A tentativa de resolver a questão judaica através da migração de judeus para a Palestina pode agora ser vista pelo que é, uma trágica zombaria do povo judeu. Interessado em ganhar a simpatia dos árabes que são mais numerosos que os judeus, o governo britânico alterou drasticamente sua política em relação aos judeus e, na verdade, renunciou à promessa de ajudá-los a encontrar seu “próprio lar” em uma terra estrangeira. O futuro desenvolvimento de eventos militares pode muito bem transformar a Palestina em uma armadilha sangrenta para várias centenas de milhares de judeus. Nunca ficou tão claro como hoje que a salvação do povo judeu está inseparavelmente ligada à derrubada do sistema capitalista.” [14]

Da mesma forma confluiam os militantes da RCLP em sua famosa declaração de maio de 1948, com a já anunciada partilha, em seu texto Contra a Corrente:

“Cada lado é “anti-imperialista” até a medula, ocupado em deter os reacionários... do lado oposto. E o imperialismo sempre é visto... ajudando o outro lado. Mas este tipo de exposição é querosene para a fogueira imperialista. A política de bajulação do imperialismo se baseia em agentes a agências dentro dos dois campos. Portanto, nós dizemos ao povo palestino em resposta aos propagandistas patrióticos: Façam desta guerra entre judeus e árabes, que serve aos interesses do imperialismo, uma guerra comum de ambas as nações contra o imperialismo!
(...)
Ao invés de um discurso abstrato “anti-imperialista” dos social-patriotas que encobrem o seu servilismo ao imperialismo, nós estamos mostrando uma forma prática de lutar contra o opressor estrangeiro: desmascarar os agentes locais, minar a sua influência; de forma que o trabalhador árabe e fellah irão entender que a campanha militar contra os judeus ajuda a desencadear a partilha e ajuda apenas os reacionários e imperialistas, enquanto ela é travada pelas suas costas e paga com o seu sangue; para que o trabalhador judeu reconheça finalmente suas ilusões no sionismo e entenda que ele não estará livre e seguro enquanto não terminar a discriminação nacional, o isolamento e a lealdade ao imperialismo.
Nós temos que manter o contato entre os trabalhadores de ambos os povo em qualquer local de trabalho onde isso ainda possa ser feito para prevenir ações provocativas e para proteger as vidas dos trabalhadores no trabalho e nas ruas. Vamos forjar quadros revolucionários. Neste inferno incandescente de chauvinismo nós temos que nos agarrar à bandeira da irmandade internacional dos trabalhadores.” [15]

Apesar de, como o nome do texto já diz, ser uma posição “contra a corrente”, por toda a pressão chauvinista colocada por ambos os lados pela adaptação dos outros partidos de esquerda (como o PCP), houveram momentos em que se mostrou que era uma saída, não apenas necessária do ponto de vista do sofrimento das massas, mas possível do ponto de vista prático, com uma forte greve geral unificada de trabalhadores árabes e judeus em maio de 1946, como coloca Tony Cliff, militante judeu trotskista da época:

“As maiores greves da história da Palestina, superando de longe qualquer outra já realizada, estouraram no mês passado. Saíram 32.000 trabalhadores, dos quais 26.000 eram árabes e 6.000 judeus.
As maiores greves da história da Palestina Em 9 de abril, 500 trabalhadores árabes e judeus dos Correios e Telégrafos em Tel Aviv e Jaffa entraram em greve. No dia 10 a greve estendeu-se aos Correios e Telégrafos de todo o país abrangendo no total 2.000 trabalhadores e empregados. No dia 15, os funcionários do Governo da 2ª Divisão - os funcionários de menor remuneração, constituindo 20.000 fortes, o que representa mais de 90% de todos os funcionários públicos, entraram em greve. No mesmo dia, os ferroviários de todo o país e os trabalhadores dos portos de Haifa e Jaffa aderiram à greve.” [16]

Essa posição, evidentemente, se colocava de forma radicalmente contrária à posição da IC e dos PCs, que atuavam, no limite, pela divisão chauvinista entre os trabalhadores árabes e judeus. Tal posição requeria uma forte luta política com os stalinistas e, como não poderia ser de outra forma, se refletia em sua posição centralmente contrária à partilha da Palestina, sem ilusões no “imperialismo democrático” representado pela ONU, como pode ser visto na declaração cujo nome é justamente Contra a Partilha!, de setembro de 1947:

“Resumindo: a proposta do comitê da ONU não é uma solução nem para os judeus nem para os árabes; é uma solução pura e exclusivamente para os países imperialistas. Os tomadores de decisão sionistas agarraram avidamente o osso que o imperialismo jogou sobre eles. E os críticos sionistas de "esquerda", em nome de tirar a máscara do jogo dos imperialistas, atacam sem entusiasmo a proposta de partição e exigem... um estado judeu em toda a Palestina! Um estado binacional como proposto por Shomer HaTsa’ir (Jovem Guarda) é apenas uma outra vestimenta para o direito dos judeus de impor aos árabes - sem seu consentimento e contra sua vontade - a imigração judaica e as políticas sionistas.
E quanto ao Partido Comunista da Palestina? Ele está aparentemente esperando por uma solução "justa" da ONU. Em todo caso, continua a semear ilusões na ONU e, nesse sentido, ajuda a ocultar e a implementar programas imperialistas.
Contra tudo isso, dizemos: não vamos cair na armadilha! A solução do problema judaico, como a solução dos problemas do país, não virá “de cima”, da ONU ou de qualquer outra instituição imperialista. Nenhuma "luta", nenhum "terror", nenhuma "pressão" moral fará com que o imperialismo renuncie aos seus interesses vitais na região (as ações do petróleo pagaram 60% de dividendos este ano!).
Para resolver o problema judeu, para nos libertar do fardo do imperialismo, só há um caminho: luta de classes comum com nossos irmãos árabes; uma luta que é um elo inseparável da luta anti-imperialista das massas oprimidas em todo o Oriente árabe e em todo o mundo.
A força do imperialismo está na divisão - nossa força na unidade de classe internacional.” [17]

Considerações finais:

O programa e a estratégia da IV Internacional, se opondo tanto ao imperialismo britânico, ao sionismo, às burguesias árabes colaboradoras com o imperialismo, e, por consequência, à política oficial dos Partidos Comunistas, é o que pode apresentar uma saída tanto aos trabalhadores e ao povo árabe, bem como aos judeus, que na época sofriam com o aumento da perseguição anti-semita (principalmente pelo nazismo), que se radicalizavam e eram disputados pela saída reacionária e utópica do sionismo. A construção de uma direção revolucionária que pudesse dar vazão à toda a histórica luta do povo árabe-palestino por uma Palestina livre do rio ao mar, bem como aos trabalhadores judeus e de todo o mundo oprimidos e explorados pelo colonialismo, o capitalismo e, naquele momento, o nazi-fascismo, foi parte das batalhas da Quarta Internacional no mundo todo e especialmente na Palestina.

“fomos derrotados em uma etapa da luta anti-imperialista e que devemos nos preparar para a vitória em uma próxima etapa - isto é, para a unificação da Palestina e do Oriente Árabe em geral - criando a única força que pode atingir esses objetivos: o partido proletário revolucionário unificado do Oriente Árabe.” [18]

Referências bibliográficas:

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  •  KANAFANI, Ghassan. A Revolta de 1936-39 na Palestina. São Paulo, Editora Sundermann, 2022.
  •  KIRSCHBAUM, Saul. A INTERNACIONAL COMUNISTA E A QUESTÃO JUDAICA. São Paulo, USP, 2 2019.
  •  MONTAG, Santiago & MARTINELLI, Martín. Gaza: Between Israeli Bombs and Palestinian Resistance. Left Voice, August 2022.
  •  [PODCAST] Trotskismo e stalinismo na questão palestina | Espectro do Comunismo #18
  •  Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). A partilha da Palestina. nov/dez 1947. Esquerda Diário.
  •  Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Contra a Corrente. Kol Ham’amad, maio de 1948. Esquerda Diário.
  •  Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Contra a Partilha! - Declaração da Liga Comunista Revolucionária. Kol Ham’amad, setembro de 1947. Esquerda Diário.
  •  Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Teses da RCLP. Haifa, janeiro de 1948. Esquerda Diário.
  •  RUCKER, Laurent. Moscow’s Surprise: The Soviet-Israeli Alliance of 1947-1949. Marxists.org.
  •  The Anti-imperialist Struggle in Palestine: Resolution of the IX Congress of the Communist Party of Palestine. Sep, 1945. Marxists.org.
  •  TROTSKY, Leon. On the Jewish Problem. 1940. Marxists.org.
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    FOOTNOTES

    [1KANAFANI, Ghassan. A Revolta de 1936-39 na Palestina. São Paulo, Editora Sundermann, 2022. pp. 33

    [2idem.

    [3Fourth International. Zionism and the Jewish Question in the Near East. Oct 1946.

    [4pp. 83

    [5pp. 75

    [6KANAFANI, Ghassan. A Revolta de 1936-39 na Palestina. São Paulo, Editora Sundermann, 2022. pp. 13-15

    [7pp. 18

    [8pp. 95

    [9The Anti-imperialist Struggle in Palestine: Resolution of the IX Congress of the Communist Party of Palestine. Sep, 1945. pp. 286. Tradução nossa

    [10RUCKER, Laurent. Moscow’s Surprise: The Soviet-Israeli Alliance of 1947-1949. pp. 20. Tradução nossa

    [11pp. 25. Tradução nossa

    [12Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Contra a Corrente. Kol Ham’amad, maio de 1948

    [13FLAKIN, Wladek. “Arbeiter und Soldat”. Martin Monath - Ein Berliner Jude unter Wehrmachssoldaten “trabalhador e soldado”. Martin Monath - Um judeu de Berlim entre os soldados da Wehrmach. Poland, schmetterling verlag, 2018. pp. 62. Tradução nossa

    [14TROTSKY, Leon. On the Jewish Problem. 1940. Tradução nossa

    [15Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Contra a Corrente. Kol Ham’amad, maio de 1948.

    [16CLIFF, Tony. Palestine Strike: Arabs and Jews Unite. Socialist Appeal, May 1946. Tradução nossa

    [17Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Contra a Partilha! - Declaração da Liga Comunista Revolucionária. Kol Ham’amad, setembro de 1947.

    [18Revolutionary Communist League (Mandatory Palestine). Teses da RCLP. Haifa, janeiro de 1948
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    Noah Brandsch

    Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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