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Lênin em Gaza: o que Vladimir poderia ter dito

Jean Baptiste Thomas

Lênin em Gaza: o que Vladimir poderia ter dito

Jean Baptiste Thomas

Lênin morreu há mais de 100 anos e nunca colocou os pés na Palestina. No entanto, podemos apostar que ele teria muitas coisas a dizer sobre a situação atual em Gaza e sobre a ação sionista em curso contra os territórios ocupados e o sul do Líbano.

Como recorda a iconografia soviética dos primeiros anos da revolução, assim como Marx, Engels, Luxemburgo e Liebknecht antes dele ou com ele, a ambição de Lênin era varrer a escória do planeta. A ideia? Livrar do mundo os vendedores de canhões, os monarcas-ditadores – aprendizes ou reais –, os generais e reacionários de todos os tipos. Um grande número de membros do gabinete de guerra de Israel, do Estado-Maior das FDI ou dos seus aliados imperialistas enquadram-se nestes perfis. Podemos imaginar que a situação na Palestina e a guerra em curso não teriam deixado Lênin indiferente. Cem anos depois, o que ele teria tuitado? É a este exercício de ficção-marxista que nos propomos responder à luz de alguns dos seus escritos e das posições que manteve, no que diz respeito a situações que são sem dúvida distintas, mas que não deixam de ter ressonância com o que vemos hoje na Palestina.

O Oriente Médio há um século

O mapa do Médio Oriente no tempo de Lênin era absolutamente diferente daquele que conhecemos hoje. Antes de 1914, a região estava sob domínio turco. Após a Primeira Guerra Mundial e a derrota do Império Otomano ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria, a região ficou sob o controle da França e da Grã-Bretanha. Paris e Londres concordaram em 1916 em partilhar entre si os restos do Império Otomano. Atropelam alegremente todos os seus compromissos passados ​​– traindo as promessas de autonomia ou de independência nacional que fizeram aos árabes, armênios ou curdos, sob a condição de que lutassem contra os turcos.

Ao mesmo tempo, a França apropriava-se dos atuais Líbano e Síria, enquanto a Grã-Bretanha controlava uma grande área que ia do atual Egito sob protetorado até a Mesopotâmia (atual Iraque) passando pela Palestina, que recebeu por mandato da Liga das Nações, mas que administra como mais uma colônia de seu Império. Nenhum vestígio de existência, portanto, de Israel. Nao sem razão: mesmo que a promessa de apoiar a criação de um “lar nacional judaico” tenha sido feita em 1917 pelos britânicos (uma promessa à qual Churchill voltaria mais tarde), a ideia de criar um Estado judeu pelas grandes potências não foi decidida até 1947. Além disso, a composição do Mandato Britânico da Palestina é completamente diferente do espaço atual em que repousam o Estado israelense e os territórios ocupados. De fato, os colonos sionistas que ali se estabeleceram desde as duas últimas décadas do século XIX eram uma minoria em comparação com a população autóctone, tanto árabe, muçulmana e cristã, mas também armênia e curda, em muito menor grau, assim como um pequeno número de judeus sefarditas orientais [1].

Em defesa da luta anticolonial

Mesmo se não houvesse conflito armado, Lênin teria sem hesitação colocado-se no campo palestino no cenário de assimetria colonial derivada do plano de partilha do Mandato Britânico da Palestina em 1947: um Estado Judeu, por um lado, e um Estado Árabe, por outro, que até agora nunca teve qualquer tipo de existência – e que foi abandonado pela ONU a partir de 1967. Apoio a uma causa nacional para o mais internacionalista dos socialistas?

Para o dirigente bolchevique, o horizonte é a revolução mundial e o internacionalismo, nomeadamente a confraternização dos proletários – confinados, apesar de tudo, dentro das fronteiras nacionais – com base nos seus interesses comuns. Mas essas palavras de ordem não podem ser simples abstração. Pelo contrário, estão estruturadas em torno de relações de poder muito específicas entre os Estados e entre as classes dentro deles. Esse princípio não pode, portanto, fazer-nos esquecer, segundo Lenin, que existe uma hierarquia entre países dominantes e países dominados, não somente quando estes últimos estão sob controle colonial direto. Neste contexto, qualquer ataque contra essa cadeia de dominação modifica a relação global entre as classes. Qualquer questionamento ao jugo colonial ou à dominação imperialista enfraquece os senhores do mundo em seus próprios países. Por outro lado, a burguesia dos países imperialistas utiliza sempre os seus avanços para consolidar a sua influência, fazer prosperar os seus negócios, mas também para estabelecer a sua dominação, inclusive "em casa", contra o "seu" proletariado local: seja integrando-o a seu projeto colonial ou chauvinista para fazê-lo desviar-se de seus objetivos, seja, se necessário, utilizando contra ele os mesmos instrumentos previamente testados contra os proletários das colônias.

Lênin destaca, neste sentido, as palavras de Cecil Rhodes, um dos pilares do projeto colonialista britânico no sul da África no final do século XIX, frente à potencial ameaça de explosão do movimento operário e das classes populares: “(…) a solução do problema social, a saber: para salvar os quarenta milhões de habitantes do Reino Unido de uma guerra civil assassina, nós, os colonizadores, devemos conquistar novas terras para ali instalar o excedente da nossa população, para encontrar novas saídas para os produtos de nossas fábricas e minas. O Império, como eu sempre disse, é uma questão de estômago. Se quiser evitar a guerra civil, deve-se tornar imperialistas.”

Neste contexto, Lênin seguiu o método estabelecido por Marx e Engels cinquenta anos antes em relação à questão irlandesa, instando as organizações operárias da Inglaterra a dissociarem-se da orientação do governo de Londres em relação a sua política colonial [2]. Antes da Revolução de 1917, Lênin transpôs essa política para todo o espaço czarista e, de forma mais geral, para as suas análises da situação mundial do imperialismo e do equilíbrio instável entre as potências imperialistas. Frente à política da “Grande Rússia”, ao chauvinismo e à discriminação exercidos pela administração central sobre os povos do Império, os social-democratas russos devem defender os direitos inalienáveis ​​à autodeterminação destes povos. E o que era verdade no período pré-revolucionário continua a ser verdade após a derrubada do czarismo e a tomada do poder pelos sovietes. Em oposição a outros representantes da Segunda Internacional tão diversos como Rosa Luxemburgo ou certos bolcheviques como Bukharin para quem os “direitos dos povos” não podiam fazer esquecer o principal antagonismo, entre classes, ainda mais depois da vitória da revolução, Lênin defende o direito das nações à autodeterminação, ou mesmo à separação. Essa é uma das razões pelas quais entre os primeiros decretos do novo poder bolchevique estava o “direito dos povos da Rússia à livre autodeterminação, incluindo o direito à secessão e à formação de um Estado independente”. Lênin e os Bolcheviques teriam, portanto, ficado extremamente perturbados frente a mais de 75 anos de domínio colonial, apartheid e supremacismo sionista na Palestina ocupada.

Lutar contra o anti-semitismo e fazer oposição ao sionismo

Esse apoio leninista à causa palestina hoje também estaria correlacionado com as posições anti-sionistas de Lênin e com uma luta radical e intransigente contra o anti-semitismo, extremamente difundido no espaço russo antes e depois da revolução, incluindo por vezes nos setores menos avançados do movimento operário organizado onde alguns imbecis poderiam ver um sentido anticapitalista no anti-semitismo. Com o seu cortejo de discriminação diária e, por vezes, pogroms violentos sobretudo a partir de 1881 e da execução do czar Alexandre II, o anti-semitismo foi um dos instrumentos utilizados pelo poder russo para dividir as comunidades populares e designar, quando necessário, bodes expiatórios para desviar a atenção das verdadeiras origens dos problemas. Lênin e os seus amigos estavam na linha da frente contra este flagelo que afeta também o movimento operário. Os judeus são “a nação mais oprimida e mais caçada” do Império, Lênin não hesita em enfatizar em 1913. Como tal, o movimento consciente dos trabalhadores, que deve denunciar todas as injustiças que afetam a sociedade, deve opor-se a ele, assim como deve interligar todas as lutas contra o chauvinismo “Grão Russo” que atinge outros grupos nacionais ou culturais oprimidos, começando pelos muçulmanos.

Isto não impedia que Lênin fosse radicalmente anti-sionista, embora o apoio ao movimento sionista fosse minoritário entre os judeus da Europa Oriental no final do século XIX e início do século XX. Aí, o sionismo só começou a consolidar-se, sobretudo nos meios populares, a partir da década de 1920 e, sobretudo, com a chegada do nazismo ao poder. Antes deste período, Lênin lutou contra o sionismo em vários aspectos. Seguindo Kautsky, a quem irá se opor brutalmente depois de 1914, Lênin defendeu a ideia de que a emancipação dos judeus só poderia ser alcançada através da revolução nos seus países de residência, “não na Palestina, mas na Europa Oriental”. Além disso, e mesmo antes de esta ser a posição do líder da Segunda Internacional, esta posição é a do movimento organizado dos trabalhadores judeus da Europa de Leste, ou seja, o Bund - a União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia. O Partido Social Democrata Russo (POSDR), do qual Lênin é um dos fundadores, é tributário do Bund que auxilia o POSDR em diversas ocasiões na realização dos seus congressos, nos quais participa e os quais influencia. As diferentes frações dentro do POSDR são, para além de seus debates sobre a questão da “autonomia cultural nacional” judaica na Europa Oriental, absolutamente anti-sionistas, como o Bund [3]. Finalmente, Lênin, tal como Kautsky, nesse ponto, antecipa a forma como o sionismo só poderia existir na sombra e sob a proteção das potências imperialistas, na época Grã-Bretanha e França que partilhavam o Oriente Médio. Para Lênin, a onda de choque da revolução mundial preparava o seu fim iminente. Nesse último ponto, ele estava errado, mas não pelo fato do sionismo ser inseparável dos seus patrocinadores imperialistas, sendo o principal hoje os Estados Unidos. Nenhuma emancipação judaica é possível, portanto, em detrimento de outro povo – os palestinos – e menos ainda sendo um peão da política regional das grandes potências.

A guerra e o imperialismo

A última agressão contra Gaza já dura quase três meses e meio. Esse é o engajamento militar mais significativo do Estado de Israel em décadas, sem dúvida comparável à invasão do Líbano em 1982. Diante de uma explosão dessa dimensão e das suas repercussões internacionais, na tradição do marxismo desde a segunda metade do século XIX, Lênin também não teria permanecido em silêncio. A questão, bem como os temas relativos à “guerra” enquanto tal, ocupam grande parte da sua produção escrita. Isso deve-se em grande parte ao horror visceral de Lênin à guerra, cujas primeiras vítimas são precisamente aqueles que são chamados a fazer a revolução, raramente os generais e os comerciantes de canhões. Mas a aversão da guerra por parte de Lênin não conduz a um pacifismo de boa fé. A guerra, para ele, não é apenas consubstancial ao capitalismo que a carrega como uma nuvem carrega uma tempestade, como defendeu Jaurès. A guerra, para Lênin, é inseparável da época em que vivemos, a do “imperialismo, fase suprema do capitalismo” e caracterizada pela trindade “guerras, crises e revoluções” ou, ao menos, pela possibilidade de revolução.

Cabe ao proletariado, portanto, ser capaz de parar a guerra primeiro para defender a sua pele, mas também para transformá-la numa revolução ou numa porta de entrada para a mudança. Isso não implica de forma alguma que não existam guerras de diferentes tipos. Mais uma vez, na esteira de Marx ou Engels, Lênin aprofunda as distinções entre conflitos: por um lado, aqueles em que o proletariado e os seus aliados não podem tomar outro partido senão opor-se a todos os beligerantes presentes, mas sobretudo a “seu” próprio governo, como durante a Primeira Carnificina Imperialista de 1914-1918; por outro lado, “guerras ‘justas’, ‘defensivas’, independente de quem começar a guerra, e cada socialista apelaria à vitória dos Estados oprimidos, dependentes, injustiçados nos seus direitos, sobre as ‘grandes’ potências opressoras, escravagistas, espoliadoras”. Como destacávamos no início, qualquer golpe na solidez do edifício imperialista é um possível avanço no caminho para a revolução. Gaza é hoje palco de um conflito desse tipo, juntamente com uma operação genocida em grande escala.

De Kazan a Gaza

As posições de Lênin antes e depois da Revolução, ou seja, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, da guerra civil e das revoltas revolucionárias na Europa e nas colônias, giram em torno de um arsenal teórico e estratégico certamente muito mais complexo do que aquele que aqui delineamos em termos gerais. Estas características gerais colocam em evidência, no entanto, constâncias e lutas que refletem na atual situação na Palestina. Se no ano do centenário da sua morte Lênin ainda tivesse dezessete anos (a idade que ele tinha no momento da sua primeira detenção em Kazan, em Dezembro de 1887) em meio a um movimento [na França] de protesto contra a arbitrariedade nas escolas do ensino médio e a repressão policial, podemos seriamente imaginar que ele teria um keffiyeh no pescoço. E que ao longo da sua vida, à luz das suas lutas contra o colonialismo, o racismo, o anti-semitismo, o imperialismo e as suas guerras e pela revolução socialista, também teria gritado, em manifestação: “Palestina viverá, Palestina vencerá!".


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FOOTNOTES

[1Os primeiros nacionalistas árabes, oposicionistas à dominação turca, consideravam totalmente natural que os judeus sefarditas que falavam árabe das províncias do Império Otomano da Síria e da Palestina de antes de 1914 deveriam ser cidadãos da nova nação árabe que eles defendiam, assim como os mulçumanos e cristãos

[2Marx e Engels nem sempre foram tão radicalmente anticolonialistas. Dito de forma esquemática, foi apenas a partir do final da década de 1850 – pensaremos nas posições relativas à revolta dos cipaios na Índia – que os dois teóricos do socialismo começaram a conceber uma ligação inseparável entre a luta de classes e a libertação nacional em contato, em particular, com a questão irlandesa. A ilha esteve de fato sob a influência da coroa inglesa durante muitos séculos, com um fortalecimento da penetração inglesa a partir da segunda metade do século XVIII (conquista cromweliana de 1649 e depois Batalha de Boyne de 1690) antes de ser formalmente anexada à Coroa em 1801. O capital inglês exerceu sobre a Irlanda um duplo movimento de pressão/expropriação de terras e extração de mão de obra destinada a atender às necessidades das manufaturas e fábricas da Inglaterra e da Escócia. “Todos os centros industriais e comerciais de Inglaterra têm agora uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis (…)”, escreveram Marx e Engels em 1869. “O trabalhador inglês médio odeia o trabalhador irlandês em quem vê um concorrente que degrada o seu nível de vida. Em relação ao trabalhador irlandês, ele se sente membro da nação dominante (…) Ele nutre preconceitos religiosos, sociais e nacionais contra os trabalhadores irlandeses (…) O irlandês vê no trabalhador inglês tanto um cúmplice como um instrumento estúpido da dominação inglesa na Irlanda (…) Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar da sua organização.”

[3O Bund e os seus dirigentes têm uma relação ambivalente com o POSDR e as suas duas principais frações, Menchevique e Bolchevique. Eles se revezarão na participação em seus trabalhos, conferências e atividades, e às vezes recuperarão sua total autonomia. Foi só depois da tomada do poder pelos sovietes, em novembro de 1917, que nos territórios controlados pela revolução, bem como na Rússia Branca, os bundistas decidiram, na sua grande maioria, juntar-se aos apoiantes de Lênin. Isto foi ratificado em março de 1921, quando quase todo o Bund aderiu ao PC russo, após abandonar notavelmente a antiga posição da organização sobre a "autonomia cultural nacional". Isto já não faz sentido nas condições da revolução socialista. O “sionismo de esquerda”, cujo peso é agora redimensionado devido à prevalência da direita e da extrema direita sionista na sociedade israelense, tem-se por vezes proclamado herdeiro das tradições bundistas. O “sionismo de esquerda” é na realidade a negação desta herança e, inversamente, a expressão do fim da dinâmica revolucionária vinda de Outubro de 1917, na Europa Oriental, após a consolidação do stalinismo e do terror nazi. Como referimos acima, foi sobretudo a partir do final da década de 1920, depois dos primeiros reveses da revolução na Europa e com a consolidação dos regimes reacionários na Europa Oriental, depois com a ascensão do nazismo e a chegada de Hitler ao poder, que a imigração "trabalhista" e a Aliá (imigração) sionista de esquerda para a Palestina decolaram, até certo ponto, para além dos círculos sionistas religiosos ou burgueses como expressão da redução da perspectiva revolucionária
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