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SEMANÁRIO

Lima Barreto, crítico visionário: um debate sobre saúde mental e racismo

Desirée Carvalho

Lima Barreto, crítico visionário: um debate sobre saúde mental e racismo

Desirée Carvalho

Esse texto tem o objetivo de debater o tema da relação entre saúde mental e racismo partir de uma perspectiva que conecta a literatura de Lima Barreto a alguns elementos sócio-históricos do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e as politicas de saúde mental.

Ontem, dia 13 de maio, completou 101 anos do nascimento do escritor Lima Barreto, autor de obras renomadas como “O triste fim de Policarpo Quaresma“ e “Clara dos anjos”. O escritor negro, nascido dia 13 de maio de 1881, sete anos antes da dita abolição da escravidão, trazia em suas obras, as contradições de um Brasil marcado pelo peso da escravidão e do racismo e de uma burguesia nacional que nasce esprimida entre a resistência e luta negra contra a escravidão e a subordição às burguesia dos paises imperialistas.

Mas o que pouca gente sabe é como a vida de Lima Barreto é marcada pela saúde mental, e as mudanças na políticas de tratamento das pessoas que sofriam algum adoecimento psíquico. Desde a adolescência quando o pai vai trabalhar (e morar) numa “colônia de alienados” na Ilha do Governador, depois o próprio adoecimento do mesmo e do cuidado que Lima teve com ele, e ligado a isso seu próprio adoecimento.

Em dois livros publicados após sua morte “Diário do hospício” e “Cemitério dos mortos” está presente na vida do escritor, que tinha um sonho de viver da sua escrita, mas que sofreu com o peso do racismo e do capitalismo na sua subjetividade, afetando seu trabalho, suas relações familiares, amorosas propiciando um uso abusivo de álcool que o levou a diversas internações. Vamos usar como paralelo a história e relato de Lima Barreto para abordar as políticas de saúde mental brasileiras e suas intrínsecas relações com o racismo.

1) Relação das Políticas de Saúde Mental e o racismo: contexto da abolição

Diversos autores tem se debruçado a pensar as implicações do racismo no adoecimento dos negros e negras ao longo da constituição do Brasil, mas também o efeito disso nas políticas públicas para aquelas que por ventura adoececem. Behring e Boschetti (2011) vão determinar que as

“políticas sociais e a formatação de padrões proteção social são desdobramentos até mesmo respostas e formas de enfrentamento - em geral setorializadas e fragmentadas - às expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontram nas relações de exploração do capital sobre o trabalho” (BEHRING, BOSCHETTI, Política Social fundamentos e história, 2011, p. 51).

As autoras definem como as políticas sociais no Brasil estão diretamente ligadas às relações de produção dos indivíduos. Contudo, cabe ao estado garantir “proteção” àqueles que por ventura não conseguem estar inseridos no processo de produção capitalista. Portanto, as políticas de saúde mental são uma resposta do capital ao adoecimento produzido pelas relações de produção e reprodução dos indivíduos enquanto força de trabalho (nesse caso aqui tanto livre quanto escravizada).

Foucault (1978) determina como ao longo da história e do desenvolvimento das sociedades, a loucura começa a ser tratada como uma doença que precisa ser retirada do convívio social para restabelecimento dos indivíduos adoecidos, ainda que o autor não defina essas as diferenças partindo do desenvolvimento do capitalismo, e em certa medida minimize a apropriação do racismo, sexismo, entre outros no desenvolvimento da sociedade de classes e no fortalecimento de uma política que segrega os setores da classe trabalhadora que adoecem. No contexto brasileiro, é perceptível que a política de saúde mental pautada na exclusão em hospitais psiquiátricos e depois nas grandes colônias de alienados tem como objetivo trancafiar todos os indesejáveis.

Na biografia de Lima Barreto escrita pela historiadora Lilia Schwarcz fica bastante evidente que grande parcela dos indesejáveis estão inserida nas massas negras recém libertas que não podiam mais trabalhar ou que fazem algum uso prejudicial às drogas, se pautando inclusive em teoria higienistas que sustentavam uma visão de inferioridade dos negros e negras.

No Brasil durante a 1ª República (1889-1930) foi estabelecida uma lei que “tipificava criminalmente a vadiagem” como forma de possibilitar uma higienização dos centros urbanos que tiveram um aumento populacional a partir do fim da escravidão (Paulino e Oliveira 2020). Nesse mesmo período se estabelece uma nova política de assistência medica a alienação mental com a inauguração em 1888 das colônias dos alienados” com o objetivo inicial de recuperar mendigos e indivíduos ociosos”, (SCHWARCZ 2017) no Rio de Janeiro que nesse período é capital do país e um dos estados que mais recebeu negros escravizados no país.

É nesse contexto que Lima Barreto é internado inúmeras vezes, onde o mesmo passa a registrar com riqueza de detalhes os horrores das internações, material esse que é resgatado pela sua irmã e transformado em dois livros e demonstram a relação intrínseca tanto com o peso do racismo para o adoecimento, mas também a política de exclusão pautada num pseudo tratamento dos negros e negras como forma de apaziguamento dos efeitos de uma abolição que não garantiu nenhum direito a esses setores da população e mostra o fio de continuidade que se perpetua ao longo da história brasileira e da constituição das politicas de saúde mental.

2) Relação entre as primeiras experiências da Política de Saúde Mental e as Políticas de álcool e drogas hoje

Retomar a história da política de saúde mental brasileira é importante para se definir o fio de continuidade que se mantém ainda nos dias de hoje nas formas de exclusão e repressão apresentadas como tratamento. Após a morte de Lima Barreto, a política de “Colônias de alienados” se ampliou pelo país, com centenas de negros e negras, mulheres, LGBTQiA+ e até presos políticos isolados sem qualquer doença, e com muitas mortes pelas condições desumanas que seus internos eram tratados. Não à toa que as colônias e os manicômios brasileiros foram caracterizados como o “holocausto brasileiro” (Arbex, 2013) ou Navio Negreiro (PASSOS, 2018), pois se pareciam com os horrores presentes nos campos de concentração e dos navios que traziam os negros e negras escravizados da áfrica para o país.

Mesmo com o advento da Reforma Psiquiátrica [1] que possibilitou uma mudança paradigmática do cuidado em Saúde Mental, instituindo que o tratamento não ocorreria mais nos manicômios, mas sim em serviços de base territorial como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), as drogas seguem sendo um ponto de inflexão que demonstra as disputas colocadas tanto no campo institucional (das políticas), mas também ideológico para a classe trabalhadora e juventude.

Nesse contexto, os CAPS , que são dispositivos estratégicos e ordenador do cuidado para pessoas acometidas com sofrimento mental grave, ganham protagonismo nos investimentos públicos, que antes eram utilizados
para financiar os leitos dos hospitais psiquiátricos.

A lei 10.216/01 estabelece que os financiamentos públicos destinados aos leitos de hospitais psiquiátricos fossem revertidos para abertura dos serviços pautados no novo modelo assistencial a usuários de saúde mental com a tentativa de responder a demanda dos militantes da Reforma Psiquiátrica que defendiam o fim dos manicômios, mas de uma forma “lenta e gradual”.

Entretanto, essa legislação não garantiu (nem garante) a homogeneidade de uma visão em torno das drogas e o cuidado daqueles que fazem o uso prejudicial (ou não) de alguma substância psicoativa. O Estado brasileiro se pauta na política racista baseada em três âmbitos: coibição do uso, controle dos agravos devido ao uso prejudicial e a repressão ao tráfico de drogas pautada por agenda internacional motorizando a ”guerra às drogas” no Brasil como parte de “referência legal para todos os países signatários da ONU” (UNODC, 2022).

E vemos nesse debate das drogas, apoiado nas visões morais e religiosas, a perpetuação de políticas de exclusão e repressão que coloca novamente em voga instituições asilares com diversas denúncias de violação dos direitos humanos nos investimentos públicos: as Comunidades Terapêuticas.

Essas mudanças se iniciam nos governos do PT, com o Decreto n 7.179/2010, do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, se transformando depois no “Programa Crack, é possível vencer”, e a Portaria n 131/2012 (BRASIL, 2012), que reconhece as comunidades terapêuticas (CTs) como um dos dispositivos da Raps. Elas se aprofundam no Governo Bolsonaro, onde em 2017, com a implementação da nova política de álcool e outras drogas e da nova RAPS instituída pela Portaria No 3.588/17, que vai estabelecer o retorno dos hospitais psiquiátricos, hospitais dias e a criação dos CAPSad IV (BRASIL, 2017). E em alguma medida se mantém no governo Lula com a inclusão de um departamento das comunidades terapêuticas na Secretaria de Assistência Social. Os movimentos sociais vinculados à luta antimanicomial tem questionado o investimento a essas instituições em detrimentos aos CAPSad [2], e tem denunciado que isso é um retorno aos manicômios.

3) Contestação do negro dócil: história do Lima e da classe trabalhadora negra

A partir de sua contribuição literária podemos apreender as nuances mais latentes e sutis do cotidiano dos hospícios no Brasil, o papel segregado e disciplinador dos “indesejáveis” que como podemos observar pelos relatos de Barreto eram em sua maioria as parcelas mais pauperizadas da sociedade e em sua maioria negros:

“Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral. Das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida; são copeiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos, marceneiros etc. (BARRETO, Diário de um Hospício, 2019, p. 78)

O peso do racismo e do estigma social, também se apresentam na sua obra. Quando aborda o processo de manicomialização dos sujeitos, se apropriando do estigma, para trancafiá-los, em uma sociedade pós escravistas, recém proclamada a república procurando formas de apaziguar todas as crises presentes. E fica marcada em sua escrita o peso de tantos negros presentes nos hospícios: “o negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento” (BARRETO, Diário de um Hospício, 2019, p.80).

É evidente a partir desses recortes que a loucura pode ser tratada como uma resposta dos indivíduos às mais diversas situações de exploração e humilhações que sofrem no cotidiano de suas vidas, marcada por uma sociedade, que determina seu valor pelas condições físicas e psíquicas que você tem para oferecer. E no marco do desenvolvimento capitalista as diferenças dos indivíduos, e seus adoecimentos, são mais uma das formas de dividir os indivíduos entre produtivos ou improdutivos para garantir algum nível de cidadania.

Partimos da conclusão que a burguesia se apropria das diversas formas de opressão e exploração para se manter como classe dominante nas disputas presentes na sociedade de classes. O processo produtivo do capitalismo, e todos os mecanismos criados e revisados para manter a “máquina” em funcionamento trazem efeitos, como vimos até aqui, que afetam as condições materiais dos trabalhadores e daqueles que estão fora do processo produtivo de viverem dignamente. Mas é preciso remarcar os efeitos subjetivos que todo esse esquema produtivo produz e as marcas que eles vão deixando na individualidade dos
indivíduos.

A loucura pode ser caracterizada como um desses efeitos subjetivos oriundos do sistema capitalista e de uma sociedade baseada em classes. E ainda que não se descarte as origens biológicas presentes no adoecimento psíquico, este está cada vez mais atrelado às estruturas de uma sociedade doente que não aceita e exclui o diferente.

Em grande medida a forma que as políticas públicas são construídas tem como objetivo apaziguar e em muitos casos medicalizar nossa revolta. O que faz todo sentido, no marco de uma sociedade pautada numa desigualdade irremediável, e ainda que o cotidiano dos serviços de saúde mental atualmente tenha diferenças profundas do período retratado por Lima, ainda há um fio de continuidade que segue em disputa, que tem como objetivo reforçar o estigma social, o racismo, o preconceito em geral, e em última medida individualiza o adoecimento colocando a responsabilidade nos próprios indivíduos.
Visão essa que em alguma medida também se atrela a Lima Barreto, quando Schwarz escolheu para título da biografia as características “triste e visionário”. Mas o que fica evidente em sua obra, é que Lima era um grande questionador. Ele não questionava somente o estado das coisas, da política, da economia, mas como a própria origem do seu adoecimento..

“Todas essas explicações da origem da loucura me parecem pueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, ou a explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. [...] essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda a gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor, desde o mais baixo, o mais carnal, até sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que - pergunto eu - não é o fator de loucura também? Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também causa da loucura? Por que as posições, os títulos, coisas também que o ensino quase tem por mérito obter, não é a causa de loucura?” (BARRETO, Diário de um Hospício, 2017, p.55-56).

Com o aumento exponencial dos adoecimentos psíquicos, principalmente pós pandemia, cresce uma certa visão que o máximo que está colocado para nós é resistir e se manter vivo. Contudo, a obra de Lima Barreto, dentre outras histórias de negros e negras desse país, demonstram exatamente o contrário, o que está latente desde as primeiras lutas negras nesse país pela liberdade, e se apresentam em escala mundial na luta por melhores condições de trabalho e vida, é que o desejo visionário e insurreito de ter uma outra vida segue muito vivo, tal como o próprio Lima deixou expresso em seus escritos durante suas internações.

Referências
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica Parte I. Éditions Gallimard,
1972.
SCHWARCZ, L. M. Lima Barreto: triste visionário / Lilia Moritz Schwarcz – 1° Ed- São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.

PRUDÊNCIO, J. D. L.; SENNA, M.C.M. Política de atenção integral aos usuários de
álcool e outras drogas: retrocessos nas concepções, desenho e financiamento. EM
PAUTA, Rio de Janeiro, 2022 - n. 49, v. 20, p. 159 – 173

BRASIL, M. S. NOTA TÉCNICA No 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Assunto:
Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas
Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Coordenação-Geral de Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas - CGMAD Esplanada dos Ministérios, Bloco G - Bairro Zona
Cívico-Administrativa, Brasília/DF. Disponível em https://pbpd.org.br/wp-
content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf acessado em maio de 2023.

BRASIL, Ministério da Saúde. Lei no 10.216. Dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental. Brasília, abr. 2001.


. Ministério da Saúde. Portaria/GM n o 3.088. Institui a Rede de atenção
Psicossocial-RAPS, no âmbito do SUS para pessoas com sofrimento ou transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas,
ampliando e promovendo o acesso da população, de forma a garantir a articulação e
integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o
cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às
urgências. Brasília, dez. 2011.


. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids.
A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras
drogas. Brasília, 2003.

BEHRING, E. R. BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história- 9° edição –
São Paulo, 2011.

Barreto, L. Diário de um Hospício; Cemitério dos Vivos. 1° Edição - São Paulo; Companhia das Letras, 2017.


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FOOTNOTES

[1Importante salientar o papel imprescindível que os trabalhadores dos serviços junto a usuários e familiares tiveram na efetivação dessas mudanças como políticas públicas, ocorrendo no calor da luta contra a ditadura e ligada às discussões da saúde como um direitos de todos (Reforma Sanitária).

[2Serviço de base territorial e comunitário que garante cuidado em saúde mental para pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas pautada no cuidado em liberdade e na reconstrução da autonomia desses sujeitos.
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Desirée Carvalho

Assistente Social, especialista em Saúde Mental - UERJ
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