Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Mito e realidade da “identidade trotskista”

Matías Maiello

Juan Dal Maso

Mito e realidade da “identidade trotskista”

Matías Maiello

Juan Dal Maso

A respeito do artigo “os irredutíveis trotskistas argentinos”, de Pablo Stefanoni.

Pablo Stefanoni publicou na revista Nueva Sociedad um artigo que retoma em um novo contexto algumas questões que já havia abordado há alguns anos em “O voto trosko, explicado a um finlandês”.

Em um contexto internacional em que a maioria do movimento trotskista atravessa uma crise importante, a definição de “irredutíveis” parece especialmente elogiosa, assim como o reconhecimento do autor da presença da FIT-U na militância sindical, nos movimentos sociais, no movimento de mulheres, na juventude e no parlamento através da lógica de “parlamentarismo revolucionário”.

Neste artigo, queremos ressaltar alguns elementos de debate com a leitura de Stefanoni, que se opõe em certos aspectos centrais de seu ponto de vista, mas que podem servir para aprofundar as respostas à pergunta que o autor faz sobre nossa resiliência.

Peronismo, esquerda e luta de classes

Uma primeira questão a ser considerada é que se por um lado Stefanoni reconhece que a esquerda está presente na militância de base, por outro sua análise da persistência da FIT-U está focada especialmente na questão dos espaços políticos-eleitorais e na capacidade de atualização na era das redes sociais. Stefanoni explica que a FIT-U é a única coalizão de esquerda que se manteve independente em relação ao “pan-peronismo” (que teve um longo ciclo no qual teve um discurso de centro-esquerda, fagocitando as diversas variantes stalinistas - além de muitos ex-autonomistas - hoje integradas ao oficialismo). Stefanoni associa isso ao fato de que a FIT-U se transformou em um refúgio para aqueles que não querem voltar ao peronismo. Mas nesta análise fica de fora algo que ele reconhece parcialmente e de maneira lateral quando menciona certas inserções em setores operários e populares ou a participação em determinadas lutas: a relação direta entre as correntes que compõem a Frente de Esquerda e o ciclo de luta de classes que ocorreu depois de 2001, especialmente sob os governos kirchneristas. O papel da esquerda (particularmente do PTS) no processo de expropriação de fábricas (com um exemplo como a Cerâmica Zanon) seu protagonismo durante os anos de "sindicalismo de base", particularmente nos conflitos de fábrica na zona norte de Buenos Aires e nos de Kraft-Terrabusi, Pepsico, Donnelley (atual Madygraf) e Lear, sua participação de destaque em várias greves da educação ou da saúde em várias províncias e no metrô de Buenos Aires, são experiências sem as quais não se pode compreender o ascenso da esquerda como uma minoria significativa no campo eleitoral, trazendo ao campo político o questionamento que uma parcela da classe trabalhadora elaborou no campo social em resposta ao kirchnerismo [1]. Para conhecer uma parte desta experiência, recomendamos o ensaio de Fernando Rosso "A la izquierda de la pared" [2].

Esta história teve uma continuidade durante o macrismo. Enquanto boa parte da extinta Frente de Todos - começando por Massa - sustentava o governo dos CEO, a esquerda seguiu atuando nas ruas. Um exemplo foram as jornadas de dezembro de 2017, que se distinguiram pelo seu caráter combativo (e não meramente de protesto) e acabou impondo um freio à agenda de reformas estruturais de Macri. Enquanto a CGT reforçava o chamado para a paralisação e Moyano se ausentava sem explicações, a esquerda esteve na linha de frente junto com milhares de pessoas que se mobilizavam em blocos de diferentes sindicatos - que se mobilizaram apesar da CGT - e de movimentos de trabalhadores informais e desempregados. Este trauma do macrismo segue hoje em dia na ideia do “tudo ou nada” como um lembrete de que a relação de forças vai além dos resultados eleitorais, a prova atual é o caso de Jujuy. A persistência da esquerda não se separa disso, assim como não se pode separar a grande maré verde que inundou as ruas e que encontro na Frente de Esquerda a única força política que lutou sem titubear pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito - uma luta que havia começado muito antes e que enfrentou 12 anos de resistência por parte dos governos kirchneristas. Já durante o governo de Alberto e Cristina, quando o kirchnerismo não abria a boca para se diferenciar, ocorreram ocupações de terras em 2020 principalmente em Guernica. Mais uma vez a esquerda estava lá, mesmo que fosse diante dos tratores de Berni e Kicillof, os desdobramentos foram conflitos duros, em muitos casos, fruto de verdadeiras rebeliões antiburocráticas - um exemplo claro foi o da luta da saúde em Neuquén, em 2021 - além da proliferação de movimentos “autoconvocados”, lutas ignoradas pela burocracia sindical que é a outra cara do peronismo realmente existente. Do social ao político, a resiliência da esquerda acompanha os avanços e retrocessos, vitórias e derrotas da luta de classes.

Textos consagrados ou duas estratégias

Stefanoni afirma que esta irredutibilidade vem acompanhada de certas limitações teóricas. O trotskismo seria neste caso uma corrente que mantém textos consagrados e busca na Revolução Russa a resposta para todos os problemas do presente. Disso decorre a contradição estratégica de um crescimento eleitoral que não é acompanhado de uma radicalização, circunstância que cria a possibilidade de um “duplo poder” (expressão que sintetiza o que Stefanoni acredita que seja nossa generalização da experiência russa).

Devemos reconhecer que, no caso do PTS, se antes nos chamava de pré-gramscianos, agora o autor reconhece que temos “algumas leituras de Gramsci,” assim como recuperamos o tema do “parlamentarismo revolucionário” da III Internacional.

No entanto, várias das suas afirmações falam mais das debilidades de Stefanoni do que de nós mesmos. Em primeiro lugar, é possível afirmar que desde a Revolução Russa, a ideia de tomá-la como um modelo de aplicação universal já era fortemente questionada. Basta ler os escritos militares de Trotsky ou os debates dos quatro primeiros congressos da III Internacional sobre o problema da revolução na Europa Ocidental (nos quais Gramsci se inspirou para pensar os problemas da “guerra de posições”), além disso, nós temos uma produção escrita profusa, dedicada precisamente aos problema da atualidade da revolução e suas dificuldades atuais. Hoje poderíamos sintetizar este ponto em três questões principais: a reflexão sobre a atualidade do problema estratégico do marxismo; o tema da hegemonia e sua relação com a “revolução permanente” e a importância da articulação político-programática para pensar a relação entre revolta e revolução. Isso para apontar os temas “ortodoxos”, mas podemos falar também das elaborações sobre feminismo socialista e sobre ecologia e marxismo ou sobre os estudos a respeito da realidade da classe trabalhadora atual, deixando de fora muitas outras questões por um critério de espaço. No site das [Edições IPS], e neste mesmo semanário, Stefanoni pode encontrar informações sobre estes temas.

Stefanoni tem razão quando diz que o crescimento eleitoral (superestrutural no geral) em condições de baixa luta de classes acarreta em grandes desafios. O ponto principal tem a ver com a necessidade de combater certa tendência de época na política sem militância, mas uma experiência como a de Jujuy, cuja a qual ele menciona só de passagem, mostra o potencial de uma esquerda com peso político vinculada à luta de classes de maneira direta. Neste sentido, consideramos que a falta de radicalização é uma circunstância e não uma sentença. É muito provável que - no calor da luta de classes do próximo período - a esquerda possa vir a ganhar um peso político e social maior frente à crise do peronismo.

Mas para pensar a persistência do trotskismo na Argentina é interessante contrastar com a experiência de outros países. Olhamos no mapa e vemos o fiasco da esquerda institucional (neo) reformista. Podemos no Estado Espanhol se encontra praticamente extinto depois de colaborar com a recomposição do sistema político pós 15M. Syriza, na Grécia, depois de ter feito o trabalho sujo da Troika, está na mesma. Em Portugal, o Bloco de Esquerda acabou retrocedendo depois de apoiar “de fora” um governo do Partido Socialista (social-liberal). Mas a comparação com a qual se corresponde a FIT-U não é com essas coalizões, e sim com as correntes trotskistas - porque além de nomes, existem estratégias - que se submeteram a estes projetos e sofreram o mesmo azar. Outras insistem em seguir este caminho seja no PSOL brasileiro absorvido pelo lulismo ou no NPA na França seguindo NUPES de Mélenchon. De conjunto, em todos estes casos, o apoio dentro ou fora de supostas frentes antineoliberais que cultuam o reformismo sem reformas frente a um capitalismo cada vez mais destrutivo, termina em adaptação ao regime burguês, no melhor dos casos.

Há uma espécie de “trauma epistemológico” para pensar a esquerda que vai mais além dos marcos dos respectivos regimes políticos capitalistas, mas existe outra estratégia, ou melhor, outra hipótese estratégica, que tem a ver com aquele “duplo poder” que Stefanoni menciona, ainda que não nos termos colocados por ele, como se fosse uma generalização ingênua da experiência da Revolução Russa.

Não podemos tratar aqui em detalhes do problema da dualidade de poderes em formações estatais “ocidentais” ou “ocidentalizadas”, porque é um tema que extrapola muito o espaço deste texto, mas podemos afirmar que, em contextos de estatização dos sindicatos e organizações sociais, o desenvolvimento da luta de classes para além dos limites impostos pelo Estado requer a construção de instituições próprias de auto-organização e autodeterminação das massas que quebram o círculo entre mobilização, desmobilização e institucionalização. A ausência de determinada estratégia é um dos grandes problemas enfrentados nos últimos anos em processos de revolta que ocorreram em vários lugares.

Esta luta é colocada como uma tarefa concomitante com a exigência pela construção de uma frente única das organizações de massas do movimento operário e dos movimentos organizados em outros tipos de grupos sociais. É uma “guerra de posições” na qual se enfrentam as tendências à autonomia e ao transformismo e, em resumo, duas estratégias: uma esquerda institucional mais ou menos alheia à luta de classes e coligada com a burocracia sindical ou uma esquerda revolucionária, com uma política de independência de classes, auto-organização, hegemonia operária e um programa de ruptura com o capitalismo.

Socialismo

Stefanoni diz que temos grandes dificuldades para explicar o tipo de sociedade pela qual lutamos, está claro que a instalação em um nível massivo da ideia de um socialismo revolucionário a partir das bases, baseado na democracia dos produtores não é uma tarefa simples e não negamos que seja necessário melhorar as formas de alcançá-lo.

Entretanto, estamos distantes de falar somente em termos genéricos de um “governo dos trabalhadores” e nada mais. É neste sentido que buscamos popularizar consignas como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho a seis horas, cinco dias na semana e a divisão das horas de trabalho entre os empregados e desempregados sem afetar os salários (ou seja, às custas dos capitalistas). Trata-se de enfrentar a divisão crescente da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, implementar traços de um novo tipo de sociedade. O tempo de trabalho como única medida da riqueza não é mais que uma imposição miserável que se mantém pela persistência da dominação capitalista. Não há nada de “inevitável” na apropriação do tempo disponível pelo capital sob a forma da mais-valia, assim como não há´nada de natural na produção de uma população excedente que oferece tempo de trabalho disponível como uma alavanca para assegurar uma oferta e demanda de força de trabalho favorável ao capital.

A alternativa a isso, como dizia Marx, passa pela apropriação da trabalho excedente pela própria massa de trabalhadores, que converta em ’tempo livre”, em tempo de ócio, uma palavra que por razões óbvias a “ética” do capitalismo sempre tentou demonizar mas que inclui - e de fato é o único que faz ser possível - entre outras coisas, o desenvolvimento da cultura, da ciência e da arte, além do próprio exercício democrático da política para os trabalhadores. Nunca esteve tão na ordem do dia, a nível global, do ponto de vista do estado da ciência, da tecnologia e do desenvolvimento do “general intellect”, do intelecto ou conhecimento social geral. Estes avanços, arrancados das mãos do regime capitalista, permitiriam a utilização cada vez menor de energias para produzir o necessário para sobreviver, até que a quantidade de tempo que um indivíduo dedica obrigatoriamente ao trabalho represente uma porção insignificante, e assim possa se desenvolver verdadeiramente todas as capacidades humanas.

Falta somente um pouco de imaginação histórica para projetar uma ideia aproximada da potencialidade de liberação das capacidades criadoras do ser humano e para conquistar uma relação mais harmônica com a natureza, que teria esta outra forma de mediar a riqueza, pelo tempo de ócio e não pelo tempo de trabalho, com o estado atual da ciência, da tecnologia e das forças produtivas. Deste ângulo está colocada uma batalha que é na verdade contra a miséria do possível e do suposto “realismo político” de alternativas que só ambicionam administrar “pela esquerda” o capitalismo e que repetidamente assistimos fracassar.

Pensar o trotskismo hoje

A figura dos irredutíveis coincide com algo que Ariel Petruccelli disse uma vez (ainda que de um ponto de vista oposto ao de Stefanoni). O trotskismo, com todas as críticas que se possa fazer, de dentro e de fora da tradição, manteve correntes militantes que resistiram bem ou mal aos anos de fortalecimento do stalinismo, ao reformismo da segunda pós-guerra e às décadas de ofensiva neoliberal (com momentos de renascimento da luta de classes, como o período de 1968-1981), em comparação com outras tendências anti-stalinistas. Por exemplo, não há correntes “consejistas” ou “luxemburguistas” como há as trotskistas. Falando de passagem, Stefanoni fala da crise do trotskismo na França, mas não menciona o surgimento da nossa organização irmã Révolution Permanente, fato reconhecido até mesmo pela imprensa direitista do país. Em um contexto de crise capitalista, agravada pela questão ecológica, está colocado pensar para além da resiliência e indagar em que medida o trotskismo pode ser o componente principal de um renascimento do marxismo (dialogando com os problemas abordados por outras tradições), não somente no plano teórico mas também como força militante. Isso implica tanto abordar os “novos problemas” como também pensar as características da etapa atual do capitalismo e dos processos de luta de classes.

Voltando ao contexto argentino, marcado pela crise das principais coalizões burguesas além do próprio peronismo, a partir de muitos pontos de vista (novo giro neoliberal aplicando o programa do FMI, debilitamento da suas base social histórica em setores importantes da PBA e outras grandes concentrações urbanas), o desafio para a esquerda só aumenta.

Não se trata, pelo menos neste caso, de uma apelação ingênua a que “a rebeldia” só pode ser de esquerda, não há garantias, existe uma luta em todos os terrenos (sindical, social, político, ideológico) para conseguir que emerja uma esquerda classista e socialista como alternativa política. Os esforços feitos para emplacar variantes mais de direita, incluindo os chamados “libertários” (seja como espantalho ou como alternativa), nos diz algo sobre o medo do establishment capitalista de que se fortaleça uma esquerda antisistema. Muito teria que ser dito “pela esquerda” sobre a postulação de Juan Grabois no interior da União pela Pátria. Se Jujuy nos ensina algo sobre o futuro, se o que está por vir é uma variante do plano do FMI em um mundo cada vez mais barbarizado, então o questionamento sobre o futuro da esquerda ganha outra urgência e novos parâmetros que acreditamos que supere a projeção evolutiva do passado recente.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1Convém remarcar que durante o conflito entre o kirchnerismo e as entidades rurais, mantivemos uma posição independente, defendendo o monopólio estatal do comércio exterior sob o controle dos trabalhadores, entre outras medidas

[2Publicado em: Paula Abal Medina, Ana Natalucci e Fernando Rosso, ¿Existe la clase obrera?, Buenos Aires, Capital Intelectual, 2017
CATEGORÍAS

[FIT-U]   /   [Argentina]   /   [Política]   /   [Internacional]

Matías Maiello

Buenos Aires

Juan Dal Maso

Comentários