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Napoleão: Um espetáculo guerreiro para uma época de guerras

Pedro Cheuiche

Cinema

Napoleão: Um espetáculo guerreiro para uma época de guerras

Pedro Cheuiche

Alerta de spoiler. Em tempos de conflitos na Ucrânia e na Palestina, a nova película do britânico Ridley Scott toma Napoleão Bonaparte para dar centro ao americano espetáculo da Guerra. Com personagens simplistas, não atinge o caráter de uma biografia e muito menos de filme histórico.

Os mais de US$ 200 milhões de dólares (aproximadamente R$ 1 bilhão de reais) gastos no longa-metragem dão tons épicos a algumas das principais batalhas travadas pelo general francês, como o Cerco de Toulon, Austerlitz, a Invasão de Moscou e Waterloo. Todos os recursos cinematográficos disponíveis retomam uma estética de exaltação guerreira que não chega a ser uma novidade no cinema americano, como os inúmeros retratos toscos da guerra do Vietnã, ou mais recentemente, Até o último homem, de 2016, que exalta uma suposta moral superior das tropas estado-unidenses.

A diferença em Napoleão está tanto no herói estrangeiro quanto no nível da intensidade das cenas que retratam o início das guerras modernas em seu esplendor carnívoro.

A pergunta que fica: como um filme assim consegue ganhar o público, sem se igualar a pecha de alguns dos piores filmes da indústria do cinema, que tem como único conteúdo apenas os tiros, as mortes e as perseguições? O segredo está na caracterização dos personagens, o estúpido espetáculo trás como seu protagonista, não um herói clássico, mas um imbecil, um ridículo, explorado através do humor de uma série qualquer do Netflix.

A carnificina sacralizada é complementar à busca por conexão com a subjetividade atual de ojeriza ao macho clássico. O Napoleão de Scott é um inseguro de si, que guerreia com o prazer de negar suas próprias fraquezas, uma espécie de Lobo de Wall Street do Século XVIII, astuto, poderoso e inconsequente. O talento de Joaquin Phoenix foi subaproveitado com esse personagem que tem muita pouca personalidade, além de sua tosca vontade de poder.

Talvez a indústria cultural tenha buscado captar, através do retrato problemático da relação entre homem-mulher, as sensibilidades críticas para aceitarem mais a carnificina apresentada na película. A simpatia do público está com a capacidade de encanto de Josefina, interpretada por Vanessa Kirby, a grande libertária do filme que coloca Napoleão, o conquistador, a seus joelhos. Incompreendida, apanha inúmeras vezes do marido, o trai com gosto e depois, ao não conseguir dar ao Imperador um herdeiro, sofre divórcio e exílio. O macho clássico e sua esposa libertária aproximam-se da subjetividade contemporânea, sem que, no entanto, esses personagens cheguem até alguma complexidade além de papéis sociais reconhecíveis ao olhar atual.

Obviamente, não há qualquer preocupação de retratar, nem mesmo aproximar-se, da complexidade da revolução francesa, das guerras napoleônicas ou questões de gênero no passado, afinal, em nenhum nível a fidelidade é uma preocupação do filme. Em sua arrogância tipicamente estadunidense, o diretor garante que tudo que retrata é a própria verdade: "Eles [historiadores] estavam lá pra saber como foi? Não, né? Então como garantem que estou errado".

Esse conjunto da guerra épica, um herói imbecil sem limites e uma dama incompreendida compõem uma estética muito pouco inserida em um contexto, das disputas, da guerra de classes da revolução francesa, da exportação de revoluções burguesas pelo mundo, pela época de paixões sociais aberta pela revolução francesa. Parece tão genérico quanto a sensação de que poderia-se estar falando de qualquer guerra, mudassem os figurinos e cenários (espetaculares, por sinal). Napoleão é simplesmente um macho que paira no ar como um pêndulo, como uma determinação inescapável, quase como se Donald Trump estivesse dentro de nós há muitos séculos. Uma ideia um tanto quanto absurda. Essa sátira do tosco herói guerreiro não deixa de ser em algum nível interessante, mas acaba afirmando nas entrelinhas a inevitabilidade das guerras, diante de grandes personalidades imparáveis que inevitavelmente se chocam em sua mesquinhez.

Para o filme, importa muito pouco as vítimas, os sujeitos, mas sim, somente a vontade de guerra dos imperadores, presidentes e seus generais. Explica assim, em linhas gerais, o conflito entre Alexandre III, czar da Rússia, e de Napoleão, Imperador da França, com alguns diálogos genéricos sobre economia e política do século XVIII, na busca de algum tom de realismo.

Ao identificar-se àqueles personagens, de alguma forma próximos da nossa época, o espectador vê-se na estranha posição de vibrar com a carnificina, como deseja a todo o momento os noticiários, mas de uma maneira muito menos eficaz. O horror da guerra acaba minimizado em nome do espetáculo, em grandes cenas épicas das batalhas em que o Cinema utiliza todos os seus recursos para eletrizar os espectadores de adrenalina. É impossível não perceber que todo esse sentido do filme acaba por alimentar o espírito guerreiro da época atual, que pululam conflitos armados na Ucrânia e na Palestina.

Sintomático do momento em que os Estados Unidos vêem-se encurralados, fornecendo armas à guerra de trincheiras sanguinária de Zelensky, alimentando o conflito com o reacionário Putin, apoiando o massacre de Israel contra os Palestinos, com a sombra da China cada vez mais próxima. A decadência do imperialismo norte-americano precisa urgentemente naturalizar os sentimentos hostis próprios das guerras nacionais.

É curioso que Napoleão seja retomado justamente motorizando os espíritos guerreiros, objetivo similar ao sentido do que ele mesmo elaborou, de guerras que contam essencialmente com contágio do povo, conforme nota Emilio Albamonte ao analisar a obra de Clausewitz:

“As Guerras Napoleónicas trouxeram à luz pela primeira vez o entusiasmo nacionalista do povo e, sobretudo, o elemento popular que a Revolução Francesa teve foi utilizado por Napoleão para conquistar a Europa”

Em uma época de crises, guerras e revoluções, Napoleão retorna como uma farsa.


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