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O fogo inextinguível de Harun Farocki e as imagens da luta de classes: em memória de Aaron Bushnell

Luno P.

O fogo inextinguível de Harun Farocki e as imagens da luta de classes: em memória de Aaron Bushnell

Luno P.

Sempre digo pra mim mesmo que escrever um texto é antes de tudo se enfrentar com um dragão de ideias, face à face com contradições e imagens que precisam ser montadas como quebra-cabeça e expressas em forma. Hoje, escrevo esse texto ainda com a cena de Aaron Bushnell queimando enquanto grita “Palestina Livre”.

Qual a real força de uma imagem?

O filme é Fogo Inextinguível (Nicht Löschbares Feuer), de 1969, em meio a guerra do Vietnã. Em frente à câmera, o cineasta alemão Harun Farocki lê o depoimento do vietnamita Thai Bihn Dan, feito perante o Tribunal de Crimes de Guerra do Vietnã em Estocolmo, relatando detalhadamente os efeitos do napalm utilizados pelos Estados Unidos da Amèrica contra a aldeia onde Thai Bihn vivía. Após o relato, Farocki olha diretamente para as lentes da câmera, para quem assiste, e pergunta:

“Como podemos demonstrar os efeitos do napalm e mostrar os ferimentos por ele provocados?”

Este pergunta é, antes de tudo, um questionamento da relação dos terrores da guerra com o modo de veiculação das imagens. Farocki continua:

Se lhes mostrarmos imagens de queimaduras de napalm, vocês fecharão seus olhos. Primeiro fecharão seus olhos às imagens. Então, fecharão seus olhos à memória. Então, fecharão seus olhos aos fatos. Então, fecharão seus olhos a todo o contexto. Se lhes mostrarmos uma pessoa com queimaduras de napalm, feriremos seus sentimentos. Se ferirmos seus sentimentos, vocês se sentirão como se nós tivéssemos tentado usar napalm em vocês, às suas custas. Só podemos dar-lhes uma pequena ideia

Logo após, Farocki queima sua mão com um cigarro e diz:

Um cigarro queima a uma temperatura de cerca de quatrocentos graus. Napalm queima com um calor de três mil graus [...] Se os espectadores não quiserem ter nada a ver com os efeitos de napalm, então é importante determinar o que é que eles têm que ver com as razões do uso de napalm

Com essa ação física de queimar o braço com o cigarro, Farocki tenta distanciar (num sentido brechtiano) quem vê o ato, de forma que busca na estranheza da ação retirar o fato apresentado do lugar naturalizado que foi colocado. O cigarro, dolorido quando queima o braço, não chega a nem chega a nem 15% do calor do napalm, que se alastra pelo corpo todo, incinerando a carne, a pele, as casas e tudo à sua volta.

Esse efeito naturalizante da imagem, ao qual Farocki evita com ação de queimar o braço com o cigarro, diz respeito à repetição incessante da mídia burguesa que invade as telas da TV alternando com reality shows, programas de variedades e comerciais de sucrilhos. “Não é preciso olhar para o Vietnã, muito menos para Gaza, aqui não chega o napalm, a guerra é justa e estamos vencendo”

De certa forma, essa experimentação de Farocki vai ao encontro de algumas reflexões de Susan Sontag quando, lá em 1977, em sua obra “Sobre Fotografia”, analisa os efeitos que as fotos produziam sobre o público americano e, em especial, partindo de sua relação com a guerra do Vietnã, a autora percebe que “o que determina a possibilidade de ser moralmente afetado por fotos é a existência de uma consciência política apropriada” e que sem essa consciência,“as fotos do matadouro da história serão, muito provavelmente, experimentadas apenas como irreais ou como um choque emocional desorientador”. Ainda que a autora esteja analisando a potência da fotografia em contraposição às imagens móveis da televisão que, em seu fluxo contínuo, cancelam as imagens precedentes, ali se encontra uma importante concepção. É a relação entre o fato fotografado e determinado nível de consciência e movimentação das massas na luta de classes que permite entender a força que ganham as imagens da guerra.

A autora pega um exemplo muito forte:

Fotos como a que esteve na primeira página de muitos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm americano, correndo por uma estrada na direção da câmera, de braços abertos, gritando de dor — provavelmente contribuíram mais para aumentar o repúdio público contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televisão.

Mas a força da imagem de Kim Phuc (em 1972, na época com 9 anos) fugindo depois que uma bomba de napalm atingiu sua vila não se explica apenas pela forma (a fotografia), mas por se inserir num processo de luta de classes profundo, logo após o maio de 68 francês e as crescentes mobilizações contra a guerra no Vietnã. Além disso, tal imagem sucede outra marcante imagem: a autoimolação do monge budista Thích Quảng Ðức, no Vietnã do Sul, em 1963, resultando no ponto da virada da crise Budista Vietnamita que culminou na mudança no golpe militar e na morte do presidente anticomunista e capacho dos EUA Jean-Baptiste Ngô Đình Diệm.

Outro exemplo de imagens que impactaram a história, agora já com a potência de circulação de imagens pela internet, é o da autoimolação de Mohamed Bouazizi, em dezembro de 2010, um jovem tunisiano que ateou fogo ao próprio corpo como forma de manifestação contra as condições de vida no país que morava, sendo símbolo e estopim do processo de ondas revolucionárias que viria a ser chamado de Primavera Árabe.

Mas, qual a força de uma imagem?

Já não falamos apenas dos exemplos do Vietnã, nem da Primavera Árabe. Hoje, desde outubro de 2023, viemos sendo bombardeados com as mais aterrorizantes imagens dos ataques imperialistas de Israel na Palestina e em outros países do Oriente Médio, conflito esse que já dura décadas, e que hoje traz a cena novamente a grandes conflitos armados entre potências e contra povos oprimidos, colocando por terra o discurso do neoliberalismo de um capitalismo triunfante e harmônico. Vimos crianças brutalmente assassinadas, corpos desmembrados, cidades inteiras destruídas, etc, contrastando com os felizes rostos de militares israelenses posando frente aos seus crimes de guerra, sob a conivência dos EUA e da ONU.

Ao passo que estas imagens expoem o apodrecimento deste sistema capitalista de fome e miséria, que busca na guerra a ampliação e a acentuação da opressão das nações e o fincar de posições em regiões estratégicas frente a disputa entre potências imperialistas, é inegável o forte empreendimento de setores da mídia burguesa nacional (aqui no Brasil com a Folha e o grupo Globo) e internacional, assim como setores da indústria cultural, em transformar tais imagens em simples consequências das ações do Hamas, buscando desumanizar os palestinos reduzindo-os a nada. Isso fica claro até mesmo nos termos usados como “escudos humanos” e “prisioneiros” para os palestinos e “refèns” e “vítimas” para os israelenses.

Mas, na história, como as fotografias de Kim Phuc, Thích Quảng Ðức e as imagens de Mohamed Bouazizi, é quase lei que a luta de classes e algumas de suas imagens escapem das mãos desses agentes, justamente por expressarem um determinado nível de consciência das massas em seus movimentos frente à barbárie capitalista. Nisso, as imagens de Aaron Bushnell sendo consumidos pelas chamas que ele mesmo ateou em seu corpo, ganham holofotes especiais. Já não são “apenas” as imagens de um verdadeiro genocídio de Israel na Palestina, cujo todos os dias o imperialismo dos EUA e de Israel busca responder ora negando ora buscando confundir tais ações com uma suposta luta contra o “terrorismo” e pelo direito de Israel se “defender”.

Entra em cena agora um jovem militar de 25 anos caminhando até a embaixada de Israel em Washington D.C. dizendo que o ato de protesto extremo que estava prestes a fazer não se igualava em nada com tudo o que vivem os palestinos. A imagem do fogo consumindo o seu corpo enquanto Aaron grita “Palestina Livre!” e os cães de guarda do Estado apontam armas contra o corpo em chamas são parte de expressam, mesmo que de maneira trágica e contraditória, os movimentos de massas que hoje se opõem aos bombardeios na Palestina.

Leia mais em: Aaron Bushnell e o potencial de dissidência nas tropas americanas

Movimentos esses que também se expressam nos bloqueios de fábricas de armas usadas por Israel no Reino Unido, na Itália, na Índia, no Canadá e em vários outros lugares do mundo, somado a diversas ações de solidariedade internacional ao povo palestino que, inclusive no Carnaval brasileiro, pintaram as ruas com as cores da bandeira Palestina.

É justamente deste encontro que vêm o temor dos jornais e programas de televisão estadunidenses que hoje disputam a memória de Aaron Bushnell, buscando apagar o ato de seu conteúdo político, o pintando como uma pessoa “doente”, “perturbado”, um “anarquista extremista” apoiador do Hamas, tudo para que não se torne símbolo de revolta, como hoje já se expressa com militares veteranos em ato queimando suas fardas em memória de Aaron Bushnell e exigindo o cessar fogo.

Leia mais em: Um retrato da Psicologia a serviço da burguesia

Que temam mais! Que temam todos os dias no levante da luta de classes internacional em defesa da Palestina e de todos os povos oprimidos! Que temam que o fogo inextínguivel já não seja mais do napalm e de seus crimes de guerra, mas o da marcha revolucionária dos trabalhadores bloqueando os portos e ocupando suas fábricas, com os artistas usando toda sua potência artística a serviço do povo palestino, das armas se virando não mais contra os oprimidos, mas contra os exploradores, a burguesia!

No mais, ainda sobre o Fogo Inextinguível de Farocki:

"Sou trabalhador e trabalho numa fábrica de aspiradores. A minha mulher precisa de um aspirador. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-lo, mas não consigo e acaba sempre por se transformar numa pistola-metralhadora". A cena, então repete-se: "Sou estudante e neste momento trabalho numa fábrica de aspiradores. Mas acho que a fábrica produz pistolas-metralhadoras para Portugal. Mas nós precisamos mesmo é de uma prova. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-la, mas não consigo, e acaba sempre por se transformar em um aspirador". A terceira e última vez que a cena se repete: "Sou engenheiro e trabalho numa empresa de eletrodomésticos. Os trabalhadores pensam que produzimos aspiradores. Os estudantes pensam que produzimos metralhadoras. Este aspirador pode tornar-se numa arma útil. Esta metralhadora pode tornar-se num eletrodoméstico. O que produzimos depende dos trabalhadores, estudantes e engenheiros"


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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