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Qual esquerda morreu? Um diálogo com Vladimir Safatle

Diana Assunção

Qual esquerda morreu? Um diálogo com Vladimir Safatle

Diana Assunção

Na última semana teve destaque nas redes um importante debate colocado mais uma vez pelo professor e filósofo da USP Vladimir Safatle sobre a esquerda brasileira e seus dilemas. Fazemos aqui um diálogo com suas considerações.

"Em uma situação como a nossa, mais importante do que tentar propor soluções é partilhar colisões. Achei que isso era o mais honesto a fazer", diz Vladimir Safatle ao fim de sua entrevista para a Folha de São Paulo. Buscando um “Alfabeto de colisões” Safatle aponta que o que sobrou da esquerda é na realidade uma “constelação de progressismos” reavivando uma afirmação que já faz há pelo menos 4 anos. Para ele o que se perdeu na esquerda foi a ambição por uma transformação estrutural da sociedade “que pressupunha um tipo de igualdade dentro dos processos de produção e alguma forma de democracia direta (...) hoje não se coloca nada parecido com isso”.

Ao mesmo tempo, segundo Safatle “A extrema direita é hoje a única força política real do país, porque é a força que tem capacidade de ruptura, tem estrutura e coesão ideológica”. Um dia após a publicação desta entrevista, vimos nas ruas uma medição de forças robusta do bolsonarismo que poderia ser uma imagem para esta afirmação de Safatle. Mas a afirmação de que o bolsonarismo “é a única força política no país” só é verdadeira em um sentido limitado. É verdade que, na disputa entre o bolsonarismo e a frente ampla liderada por Lula, somente o primeiro “tem capacidade de ruptura” e “coesão ideológica”, como diz Safatle. A frente ampla, por definição, não poderia ter coesão ideológica, inclui setores da direita, grande parte do capital, partidos inclusive da base bolsonarista. Assim, não aponta nem a uma “ruptura” pela esquerda, nem sequer a reformas ou à reversão do legado dos governos de Temer e Bolsonaro. Portanto - e isso é o que há de mais verdadeiro na afirmação de Safatle - não pode levar ao desenvolvimento de uma força política própria, e sim, de novo, ao fortalecimento da própria extrema direita.

Entretanto essa definição deixa de fora um aspecto fundamental da realidade brasileira, e por isso pode levar a uma conclusão unilateral. A recente demonstração de força de Bolsonaro na realidade só pode ser compreendida de forma mais adequada como parte de uma correlação de forças, de modo que, ao contrário de unilateralizar a força bolsonarista, vejamos também que o país está marcado por forças bonapartistas e autoritárias do judiciário, com cada vez mais protagonismo do STF, e um governo de Frente Ampla fortalecido. Que Bolsonaro peça anistia, e sem excessos, expressa o contrário de uma capacidade para atuar da forma rupturista e anti-sistêmica que sempre o caracterizou, e sim um momento político “frente-amplista” no país. A imensa ofensiva policial e judicial contra Bolsonaro atesta este momento político. A operação de busca e apreensão, que envolveu o seu entorno e diversos generais, é uma imagem da correlação de forças atual. Frente a especulações que chegam até à possibilidade de sua prisão, Bolsonaro convocou sua base social para tentar conter essa ofensiva. Sem essa análise, a impressão é que nada mudou desde que Bolsonaro saiu do poder.

Este processo se dá mediante a entrega de programas cada vez mais neoliberalizantes por parte do governo Lula-Alckmin, como vimos com o Arcabouço Fiscal. Já não bastasse um golpe institucional e uma prisão arbitrária de Lula para fazer avançar reformas anti-operárias contra a classe trabalhadora e o povo pobre, quando o governo Lula voltou ao poder não somente não anulou essas reformas, como também aplicou um Novo Teto de Gastos. Safatle criticamente aponta sobre isso dizendo que “Você precisa fortalecer o seu polo. Você precisa consolidar o seu polo como uma força de produção de alternativas. Não vai dar certo fazer o jogo de quem vai gerir melhor as crises do capitalismo, como não deu certo na Argentina [onde o ultraliberal Javier Milei derrotou o candidato da esquerda nas eleições presidenciais]. Isso fortalece o retorno da extrema direita”.

Certamente, consolidar um polo como uma força de produção de alternativas programáticas e não fazer o jogo de “quem vai gerir melhor as crises do capitalismo” é uma questão decisiva. Do contrário, se fortalece o caminho para a extrema-direita, como aponta Safatle. No caso da Argentina vale ressaltar: Milei não derrotou “o candidato da esquerda” como aponta a Folha, e sim o candidato peronista/kirchnerista que era também o candidato do FMI, ou seja, o candidato dos planos de ajustes, aquele que buscava “gerir melhor as crises do capitalismo”, e foi derrotado pela desilusão que esta mesma política gerou nas massas populares na Argentina, com o governo de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner que deixou a Argentina com uma inflação bárbara sobre as costas da classe trabalhadora.

Essa busca de “gerir o capitalismo” é o que vimos no Brasil desde que o PT entrou no governo. O PT é classificado como “esquerda” pelo bolsonarismo que vocifera contra um partido de origem operária, por sua relação com os movimentos sociais, feministas e anti-racistas, mas apesar dessa origem, o PT é um partido da ordem. Nas últimas semanas vimos Lula abraçado com o bolsonarista Tarcísio de Freitas que está privatizando os bastiões dos serviços públicos em São Paulo, sendo que é o governo federal quem está financiando parte das obras ligadas a estas privatizações, com os investimentos do PAC. O mesmo Tarcísio que está colocando sua PM para matar brutalmente a população negra na Baixada Santista, incentivado pela lei orgânica das polícias sancionada pelo governo Lula. São inúmeras relações e pactos que expressam uma ligação orgânica com os mesmos interesses burgueses que sustentam o bolsonarismo na forma de governar desta Frente Ampla. Como não perceber que esta política fortalece o bolsonarismo quando Tarcísio de Freitas vai em seguida abraçado com Bolsonaro para a Avenida Paulista defender este crápula e seu projeto?

Com efeito, uma questão a apontar é que também as organizações políticas da esquerda que buscam atuar como força auxiliar do PT na tarefa de "melhor gerir as crises do capitalismo" consideram como leitmotiv a ideia de que o bolsonarismo é a única força política no país hoje. Para elas, esse superdimensionamento da extrema direita serve ao propósito de subordinar tudo - abrindo mão de qualquer programa de ruptura com os ajustes capitalistas, que reordene o tabuleiro político em termos de luta entre classes - ao objetivo de "derrotar a extrema-direita". Esse objetivo se alcançaria através da Frente Ampla, aquela que proíbe qualquer política anticapitalista regeneradora da esquerda. Esse círculo vicioso precisa ser superado. A correta proporção na avaliação da força do bolsonarismo contribui para uma visão menos unilateral que enxerga o verdadeiro peso do regime de Frente Ampla e suas instituições, sua atuação contra a classe trabalhadora e os oprimidos, e a necessidade de apresentar uma proposta político-programática que não sirva para fortalecer nossos inimigos e possa retomar os problemas estruturais do país, como apontou Safatle.

Por isso, se estamos falando de colisões, como aponta Safatle, não deveria haver mais espaço para o discurso do “mal menor”. O que sustenta essa conciliação? É também a chantagem de que o questionamento à ordem frente-amplista supostamente abriria espaço à extrema-direita, quando na realidade, em frente dos nossos olhos, é a própria Frente Ampla que estende o tapete vermelho para os bolsonaristas: “Se bobear Lula traz até o Tarcísio para a Frente Ampla”-, disse Boulos, que comemora ter como vice Marta Suplicy, uma das articuladoras da reforma trabalhista, até pouco secretária de Relações Internacionais do bolsonarista Ricardo Nunes. Por que os trabalhadores que hoje sofrem com as consequências da reforma trabalhista devem apoiar esta política? Quando Safatle aponta que estamos em um país cindido e clivado e portanto “não há espaço para certos pactos que antes se realizavam”, é preciso dizer que na realidade já “antes” esses pactos serviram para fortalecer a direita, não preservaram os interesses da nossa classe, e abriram caminho ao golpe institucional e a duros ataques. E é na toada destes pactos hoje que a esquerda que antes se apresentava como alternativa ao PT, como o PSOL, se institucionaliza e então perde seu sentido de existência como tal. Mas segue viva na defesa deste projeto político de conciliação de classes. Cumpre o papel de encobrir pela esquerda esta tentativa de gerir melhor as crises do capitalismo.

Pensando ainda em termos de colisões, não é possível chegar a soluções sem ver a força do governo de Frente Ampla e do regime político, com peso do poder judiciário e também dos militares, como explicação da localização da esquerda hoje. Estas duas forças anteriores fagocitam a esquerda. Subestimar a força da extrema-direita seria um erro primário. Superestimar a força da extrema-direita parece ser um erro que termina servindo justamente àqueles que mantêm o status quo do “mal menor” que, como apontou Safatle, é apenas “ganhar tempo”. É preciso então tirar conclusões deste processo para compreender a força e coesão, ainda que temporária e não “ideológica”, também destes inimigos que querem nos impor tamanhos ataques, como estamos vendo na questão ambiental, para citar uma.

Se nos últimos anos não se ouviu “a esquerda” falar sobre a ideia de “autogestão da classe trabalhadora” ou “auto-organização da classe trabalhadora” é porque o nome de esquerda está atribuído às organizações que hoje assumiram esta localização do petismo, ou estão subordinada a ele com função acessória ao governo, e se preparando para governar uma capital da envergadura de São Paulo, depois do desastre em Belém. Querem repetir a tragédia grega do Syriza. Em uma São Paulo onde, buscando juntar-se com empresários e até sionistas, não haverá absolutamente nenhum protagonismo dos trabalhadores, em que pese qualquer trajetória nos movimentos sociais. Isso para não falar da coalizão parlamentar anunciada pelo PSOL em Pernambuco, não apenas junto ao partido do prefeito João Campos, o PSB, mas também junto ao Republicanos, de Tarcísio, Damares Alves e do general Mourão.

Ao mesmo tempo, é notório que a força real capaz de derrotar todos os planos de ataques existe, mas na maior parte das vezes está contida pelas mediações burocráticas dirigidas pelos mesmos partidos que estão hoje no governo e que controlam os sindicatos. 2023 foi um ano atípico em São Paulo onde os metroviários foram uma força política de vanguarda junto aos sabespianos e aos trabalhadores da CPTM em greves de novo tipo, articuladas de forma conjunta, em diálogo com a população para enfrentar o plano privatizador dos bastiões dos serviços públicos paulistas. Esta força mostra um caminho de resistência muito potente, porém contido pelas direções que se articularam justamente com o objetivo de controlá-la. A partir disso é que se pode colocar devidamente a questão: qual esquerda morreu? Se estivermos falando do PT e do PSOL, é verdade que essa esquerda “morreu como esquerda”, ou seja, não representa nenhuma alternativa, pois está levando adiante uma política que só pode fortalecer a própria direita.

Mas, diante destes dilemas, é possível e necessário insistir em uma alternativa, que passa por uma batalha política e programática contra toda a miséria de uma esquerda institucional que fala de socialismo em dias de festa. E o exemplo do que ocorre na Argentina, levantado por Safatle, não mostra somente como a política de conciliação de classes abriu caminho para Milei. Mostra também a potência do caminho da luta de classes para enfrentá-lo. E uma esquerda que, a partir de forte inserção na classe trabalhadora, impulsiona essa luta a partir dos locais de trabalho e de um parlamentarismo revolucionário, sem nenhuma conciliação.

Precisamos, além de nos preparar para os combate da luta de classes, tomando esse exemplo, também reconstruir o imaginário socialista no que tange aos elementos mais constitutivos do que diz respeito à luta por uma sociedade socialista, para dizer em palavras que transcendam a ideia de “igualdade”, que nos parece curta para os tempos atuais. Retomar as perspectivas de democracia soviética ou pensar a planificação da economia em consonância com o desenvolvimento da tecnologia do século XXI seriam desafios a serviço de “reconstruir nossa gramática”, mas sobretudo que se colocariam, neste âmbito de uma luta de ideias, contra todo ceticismo.

Esforços a serviço de apontar um projeto de futuro, dentro do qual possa se desenvolver uma nova individualidade nos marcos da coletividade, da autogestão da vida coletiva, com um tipo diferente de tensão de vontades, desinteressada e na qual o indivíduo se concebe em uma riqueza de possibilidades oferecidas pelos outros indivíduos e pela sociedade; algo contraposto ao individualismo burguês da luta aberta de cada indivíduo contra todos os demais, que Safatle já identificou como a ideia força com a qual o bolsonarismo ganhou peso, inclusive em setores populares.

É fundamental reconstruir esse imaginário no momento em que uma esquerda se entregou ao projeto de conciliação de classes e à administração do capitalismo, ou que o socialismo se vê identificado com a degeneração stalinista. Reconstituir essas experiências à luz dos últimos ciclos da luta de classes, também tirando as lições sobre os processos e suas direções, permitiria um debate programático e de estratégias fundamental para uma esquerda revolucionária que segue viva e que quer unir a classe trabalhadora em um caminho de independência de classe para superar o caminho da conciliação que fortalece a extrema-direita. A isso uma intelectualidade crítica pode dar uma enorme contribuição.


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São Paulo | @dianaassuncaoED
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