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Revolução em Portugal, classe trabalhadora e auto-organização

Carlos Muro

Revolução em Portugal, classe trabalhadora e auto-organização

Carlos Muro

Em 25 de abril de 1974 iniciou-se o último processo revolucionário do “ocidente”. Inscrito no período de ascenso de 1968-1981, o Movimento das Forças Armadas de Portugal depõe o regime salazarista em decomposição e é saudado pelas massas nas ruas. O 1º de maio de 1974 em Portugal escancara a ebulição surgida depois de 50 anos de opressão fascista, milhares vão às ruas e iniciam um potente movimento de auto-organização dos trabalhadores, com retomada dos sindicatos, controle da produção e expropriação forçada. Por 19 meses Portugal passa pelos altos e baixos de um momento revolucionário, junto com a luta anti-colonial em África, fecham-se as portas ao colonialismo português com a independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e outros países.

Nos 50 anos da Revolução dos Cravos, o Ideias de Esquerda publica as principais conclusões do processo revolucionário português. Queremos destacar o papel protagonista da classe trabalhadora em um país imperialista da Europa e a importância daquela experiência para pensar a estratégia revolucionária nos dias de hoje.

Por outro lado, compreender o desvio contra-revolucionário “democrático”, baseado na ideia de “Constituição Cidadã” enquanto o processo revolucionário ainda estava em aberto, é fundamental. Portugal foi o laboratório da, hoje estereotipada, estratégia de “liberdade e democracia” que os EUA disseminam através das suas agências de inteligência e das Forças Armadas. Essa estratégia cumpriu forte papel nas restaurações capitalistas nos antigos países soviéticos, e tem cumprido forte papel de “desvio estratégico” em diversas correntes do trotskismo mundial. Tirar as lições da revolução portuguesa é um dos primeiros passos em direção a recuperarmos uma estratégia socialista para os tempos atuais.

Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

"Grândola, Vila Morena" tocou no dia 25 de abril.

A canção de José "Zeca" Afonso acabou se tornando uma das mais famosas do processo revolucionário português após o levante dos capitães em 25 de abril de 1974. Uma música cantada por milhares de trabalhadoras e trabalhadores, ressoando em várias rádios e televisores, e ouvida por uma nova geração de jovens trabalhadores portugueses, cuja experiência de vida havia sido de exploração e opressão pela ditadura de Salazar e Caetano, e cuja explosividade se fez notar imediatamente antes e depois do movimento dos capitães [1].

Laura Lif e Juan Chingo [2] explicam como a revolução proletária em Portugal deu lugar a uma situação semelhante à da Rússia em fevereiro de 1917. O regime bonapartista [3] de Caetano entrou em uma crise orgânica: com um Estado falido, incapaz de sustentar econômica e politicamente as guerras nas colônias de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, que viviam processos revolucionários, uma enorme crise nas Forças Armadas, a descrença das classes médias que viam como o Estado gastava milhões em um empreendimento militar condenado ao fracasso, com alistamento forçado que matou milhares [4] e um crescente aumento das lutas e greves operárias antes do 25 de abril.

As potências mundiais, como os EUA e a URSS, esperavam que fosse uma transição não revolucionária, e o General Spínola se preparava para ocupar, como um “democrata”, o antigo cargo de Bonaparte de Caetano. Mas a "longa noite" fascista, como descrevia Victor Serge, os 48 anos de ditadura, chegou ao fim e não seria um amanhecer tranquilo. A nova classe trabalhadora emergiu de forma explosiva após anos de ditadura e baixos salários, abrindo caminho para uma situação revolucionária de 25 de abril de 1974 a 25 de novembro de 1975. Atravessando várias etapas, durante 19 meses e com 6 governos provisórios [5] de tipo frente popular sucedendo-se no poder, cada um com menos autoridade que seus predecessores e incapazes de conter o crescimento do movimento operário. O entusiasmo operário ramificou nas empresas e nos bairros, e a geração de "Grândola, Vila Morena" quis impor suas reivindicações e romper com o antigo regime político e econômico.

As imagens e fotografias de operários votando em assembleias massivas, vizinhos percorrendo as ruas de seus bairros ou soldados com fuzis circularam pelo mundo inteiro. A visão despertou o fantasma da revolução e o medo da burguesia ao ver que, em um país capitalista "ocidental" (da periferia europeia com colônias na África), formavam-se Comissões de Trabalhadores (CT) nas empresas e Comissões de Moradores/Vizinhos (CM) nos bairros, e, no final do processo (como parte da crise do Movimento das Forças Armadas MFA), Comissões de Soldados nos quartéis. Segundo várias fontes, houve cerca de 4.000 CT em todo o país, tanto nas principais concentrações operárias quanto nos novos setores de serviços, comércio e hotelaria. Foi a expressão natural da frente única das organizações operárias e dos trabalhadores nas empresas, juntamente com centenas de comissões de moradores e vizinhos.

As tentativas de golpe de Estado de Spínola, em 29 de setembro de 1974 e 11 de março de 1975, foram a expressão do desespero da burguesia portuguesa para recuperar o controle perdido nas empresas e em nível nacional. Embora as tentativas do general tenham fracassado, seu objetivo acabou sendo alcançado: em 25 de novembro de 1975, o processo revolucionário foi encerrado por meio de um contragolpe. Tudo isso garantido pelas lideranças do Partido Comunista e do Partido Socialista, que não tinham a menor intenção de questionar a propriedade privada e o regime político da burguesia, algo que as mobilizações operárias e populares estavam efetivamente fazendo.

Assim foi que o PCP, em comunhão com um setor do MFA, tentou um golpe contra a ala moderada do MFA e do PSP, mas fracassou, permitindo a Mário Soares (secretário-geral do Partido Socialista de Portugal) dar um autogolpe e desmantelar o processo revolucionário. O PCP, sem querer impulsionar um processo revolucionário, tentou obter maiores quotas de poder de negociação no Estado burguês. Organizou um motim militar, que foi aproveitado pelos setores conservadores do exército para dar um golpe contra eles, e em poucas horas desmantelaram o setor de esquerda do MFA. Houve uma tentativa de mobilização popular a favor do golpe contra a direita, mas supostamente houve um acordo tácito entre a direção do PCP e a direita do MFA para encerrar o processo e manter o PCP legal dentro do marco constitucional que surgiria depois [6]. A burguesia conseguiu desviar a revolução e impor um regime democrático burguês com a cumplicidade do PS e do PCP.

Sobre isso, Trotsky, em uma análise brilhante, afirmou em 1931 que: “o fascismo não é absolutamente o único meio que a burguesia tem para lutar contra as massas revolucionárias. O regime que existe hoje na Espanha corresponde essencialmente ao conceito de kerenskismo, ou seja, o último (ou "penúltimo") governo "de esquerda" que a burguesia pode trazer à cena em sua luta contra a revolução. Um governo desse tipo não significa necessariamente fraqueza e prostração. Na ausência de um partido revolucionário potente do proletariado, a combinação de pseudorreformas, frases de esquerda, gestos ainda mais de esquerda e medidas de repressão pode servir mais efetivamente à burguesia do que o fascismo” [7]. As diversas concessões aprovadas pelos diferentes governos provisórios ("kerenskistas") foram uma demonstração da tentativa de desviar o ímpeto revolucionário e conter a revolução.

Após 19 meses de ascensão revolucionária, os eventos de 25 de novembro de 1975 representaram um duro golpe contra a revolução e marcaram o início do declínio das mobilizações. Os diferentes governos portugueses posteriores retomaram a abordagem iniciada pelo primeiro presidente, António Spínola, implementando um programa econômico “de acordo com as diretrizes e com o apoio técnico e econômico do Fundo Monetário Internacional.” [8] Um plano de ajuste, que durou cerca de 10 anos, com impacto negativo sobre as condições de trabalho e o bem-estar social das classes trabalhadoras.

O fracasso da revolução portuguesa se transformou em um triunfo do imperialismo norte-americano e alemão, “corrigindo” a relação de forças a seu favor na Europa. Parafraseando Laura Lif e Juan Chingo, o sucesso do imperialismo não apenas permitiu sua disseminação, mas também influenciou decisivamente no sucesso da política de contrarrevolução democrática em resposta ao crescimento revolucionário no Estado espanhol após a morte de Franco em 20 de novembro de 1975, sob a influência de Portugal.

Classe operária, novos setores e posições estratégicas

Os protagonistas indiscutíveis da revolução foram as classes trabalhadoras. O crescimento econômico durante os anos da ditadura favoreceu o aumento e a diversificação dessa classe social, ao mesmo tempo que criou novos setores produtivos [9]. Do ponto de vista sociológico, por ser o processo revolucionário mais recente dos nossos tempos, a revolução em Portugal é a que melhor representa a realidade atual, e é por isso que se torna uma fonte extremamente valiosa para estudar as revoluções da nossa época.

Nas cidades mais importantes, a classe trabalhadora teve um aumento significativo: no Porto, passou de 53,3% em 1930 para 82,3% em 1970; em Lisboa, de 56,1% para 86,5%; e em Setúbal, de 52,7% para 87,3%. No caso da região de Beja – uma área de grandes latifúndios – o percentual de assalariados já representava 76,9% em 1970 [10].

Esse processo de proletarização da sociedade configurou verdadeiras concentrações e bastiões operários [11]. Os motoristas, os funcionários bancários e os trabalhadores do comércio tiveram um papel fundamental por sua posição estratégica, evidenciando a capacidade da classe operária para tentar fundar uma nova ordem social, em aliança com o povo pobre e os moradores das cidades. Um exemplo são os Estaleiros Navais da Lisnave (em Almada e Lisboa), a vanguarda operária da revolução, que foram um setor emblemático por excelência, fundado em 1966. Nesse complexo, que abrangia os dois lados do rio Tejo, estavam concentrados cerca de 8.000 trabalhadores, que estiveram à frente da luta contra as tentativas de golpe de estado de Spínola e fizeram parte da primeira coordenação operária chamada Interempresas, que não era controlada pelo PCP. Os estaleiros de Setenave, no bastião vermelho da cidade de Setúbal, tiveram um papel importante, mantendo uma estreita relação com as Comissões de Moradores (nos bairros). Outro setor com uma posição estratégica importante na economia foi a TAP (Transportes Aéreos Portugueses), uma grande empresa nacional estratégica com grande concentração operária e crucial para as colônias africanas; este foi outro setor de vanguarda na revolução. Sua greve em agosto de 1974 fez com que o segundo Governo Provisório militarizasse as instalações. Já os trabalhadores bancários, no dia 29 de abril de 1974, por meio do "Sindicato dos Trabalhadores Bancários", assumiram o controle da saída de capitais e montaram piquetes nas portas das sedes bancárias [12].

Por outro lado, novos setores produtivos da economia, como serviços, comércio, hotelaria, TV e rádio, ou alimentação, mostraram a nova diversificação social. As equipes das três cadeias de supermercados (Nutripol com 350 trabalhadores, Pão de Açúcar com 2.500 e AC Santos com 450) tentaram constituir um grande grupo autogerido no setor de distribuição. E na cadeia de hotéis Estoril-Sol, diante da "ausência" dos quatro administradores, a Comissão de Trabalhadores assumiu a gestão direta da empresa. Os trabalhadores da empresa de alimentos Martins & Rebelo ocuparam a empresa em junho de 1974, ao mesmo tempo em que estabeleceram dois postos de venda ao público para obter dinheiro para pagar seus salários; a empresa finalmente concordou em aumentar os salários com base nas conclusões de uma comissão composta por três técnicos. [13]

Outro setor da nova indústria moderna é o setor jornalístico e das artes gráficas em geral. Houve conflitos como o do jornal O Diário de Notícias, N’O Século, Rádio Renascença ou nos serviços da Sociedade Nacional de Tipografia. Na indústria farmacêutica, os trabalhadores das multinacionais Sandoz, Wander, Ciba-Geigy Portuguesa e dos Laboratórios Beecham Bencard entraram em luta. Em maio de 1974, fizeram uma greve com ocupação das instalações fabris, dando um prazo para as respectivas administrações responderem às demandas socioeconômicas apresentadas. Finalmente, o quadro de funcionários assumiu o controle do fornecimento, vendendo medicamentos à população a baixo custo.

Comissões operárias, luta anticapitalista e embriões de duplo poder nas empresas.

As ilusões de "ruptura" com a ditadura, uma demanda democrática fundamental, transformaram-se, nas mãos dessa nova geração de trabalhadores, em uma reivindicação poderosa. A psicologia de milhares de assalariados era a de que, assim como os militares — que haviam dado um golpe contra a ditadura —, eles também queriam tomar em suas mãos a "ruptura" com a ditadura e implementá-la em suas empresas, enfrentando as injustiças de seus próprios patrões e seu papel colaboracionista com a ditadura.

Dessa forma, as primeiras medidas tomadas nas empresas pelos funcionários foram a realização de assembleias e a eleição de delegados para a formação de Comissões de Trabalhadores (CT). Surgiram centenas de CT, sendo a expressão natural da frente única nas empresas, organismos que adquiriram quotas consideráveis de controle e gestão frente aos proprietários. A formação das CT, sua origem e forma variavam de acordo com o setor e as empresas. Os trabalhadores em luta, reunidos em assembleia, elegiam delegações para uma comissão com um número determinado de membros. Para Miguel Pérez, “nenhum partido lança a consigna de eleição de comissões nas empresas” e, na maioria dos casos, elas se formavam de maneira espontânea pelos trabalhadores que queriam avançar com suas “cartilhas reivindicativas” (lista de reivindicações aprovadas pelas assembleias). Um dos esforços mais importantes para a coordenação entre as comissões operárias foi a Interempresas, que contava com 30 CTs da região de Lisboa, como TAP, Efacec CT-Inel, Setenave, Cergal ou Lisnave, entre as mais significativas. Participaram dela correntes maoístas e stalinistas, além de pequenos grupos guerrilheiros e trotskistas, em sua maioria setores à esquerda do PCP.

Uma das medidas mais generalizadas foi a luta pelo direito à revogabilidade dos cargos (ou "saneamentos", como eram chamados) em empresas e instituições. Buscava-se a expulsão ou remoção dos antigos cargos da ditadura em empresas privadas ou públicas, instituições ou sindicatos. Nas empresas, os funcionários exigiam a expulsão de quadros administrativos, diretores de empresas ou proprietários. Estima-se, em termos gerais, que desde o golpe militar até fevereiro de 1975, 12.000 pessoas foram suspensas de suas antigas funções, e de março de 1975 a novembro daquele ano, 8.000 pessoas. Na maioria dos casos, essas ações foram conduzidas pelas CTs. No setor privado, calcula-se que cerca de 1.000 patrões e membros da alta administração foram "saneados" [14].

A "ruptura democrática", imposta pelo método da luta de classes, fez com que a reivindicação pela revogabilidade avançasse do mero "saneamento" das equipes diretivas das empresas para um questionamento direto da propriedade das empresas, resultando na gestão direta da empresa ou, em menor grau, no "controle" de parte do processo produtivo.

A partir de janeiro de 1975, começou uma nova onda de radicalização operária. O aumento dos preços e o fechamento de empresas levaram à multiplicação das mobilizações de trabalhadores e moradores, com ocupações, controle e gestões operárias. Estima-se que, no último trimestre de 1974, foram registradas 24 ocupações de empresas, e nos três primeiros trimestres de 1975 houve 83, 55 e 14 casos, respectivamente. No total, entre 25 de abril de 1974 e o final de 1975, 227 empresas foram nacionalizadas, com cerca de 157.000 trabalhadores aproximadamente, enquanto outras 261, com 154.000 trabalhadores, foram intervencionadas. Entre 1974 e 1978, havia cerca de 626 empresas autogeridas e 319 cooperativas. E acredita-se que, em 1975, havia um registro de 300 empresas intervencionadas.

Após o fracasso do golpe de Spínola em 11 de março de 1975, poderia-se dizer que palavras de ordem como controle e gestão operária e nacionalização da produção começaram a se generalizar. Com relação ao controle operário, há exemplos que podem nos ajudar a explicar o processo. Sobre o controle da contabilidade, a equipe dos supermercados "Pão de Açúcar" tornou públicos, para o conhecimento dos consumidores, os índices de lucro sobre os produtos básicos do proprietário. Os trabalhadores da Costa Cardosa obtiveram o controle legal sobre os cheques que a empresa assinava ou não. Após sua nacionalização, os sindicatos bancários abriram os livros de contabilidade e divulgaram, em uma conferência de imprensa, os resultados de suas investigações. Quanto ao controle do estoque, a CT das leiterias Martins & Rebelo – que representava 75% da produção de leite de Portugal – descobriu um suposto ato de sabotagem do dono, até então desconhecido. Outro exemplo é o controle sobre a contratação, como no caso dos trabalhadores da Transal (transportes), que, após o "saneamento" de seus quatro gerentes, estabeleceram novas contratações e exigiram da empresa novos ônibus. Estes são apenas alguns exemplos entre a vasta quantidade de casos que existiram [15].

Urbanização, comissões de bairros e aliados.

As mudanças na população urbana portuguesa, desde os anos 60, afetaram os movimentos sociais durante o processo revolucionário. A população trabalhadora das cidades tornou-se o setor social majoritário em relação à população rural, mas evidentemente não era o único setor.

Em termos gerais, esse movimento urbano abrigou diferentes classes e grupos sociais, ou seja, tinha um caráter multiclassista. Para Charles Downs:

"Este movimento era muito maior do que poderia ter sido organizado apenas através do local de trabalho, e incluía homens e mulheres desempregados, jovens, empregados e trabalhadores de fábricas pequenas e grandes, profissionais e donos de pequenas lojas (...) No entanto, a composição concreta do movimento urbano era multiclassista e variava de um lugar para outro. No Porto e em Lisboa, era composto basicamente por pessoas pobres, incluindo especialmente trabalhadores qualificados e não qualificados mal remunerados, empregados, vendedores ambulantes e pequenos proprietários. Somente em Setúbal houve a inclusão de um grande número de trabalhadores das indústrias modernas e dos serviços, bem como de profissionais empregados da nova pequena burguesia." [16]

Com o início do processo revolucionário, os primeiros a formar comissões (de moradores, de ocupação, de habitação, de controle de preços, de cultura...) foram os bairros pobres e as áreas de favelas, com uma tradição de luta contra a ditadura nos primeiros e maiores necessidades de moradia nos segundos. As assembleias dos bairros elegiam a comissão de moradores, com um mandato de um ano, e alguns membros eram substituídos por diferentes razões, como a própria renúncia, substituição direta pela população ou término do período de exercício do cargo.

O salto na organização dos moradores ocorreu a partir do "verão quente" de 1975, quando houve uma forte polarização política, crise nos governos provisórios e no interior do MFA. Nesse contexto, foram formadas duas coordenações de comissões nas cidades do Porto e de Setúbal: o Conselho Revolucionário de Moradores do Porto (CRMP) e o Comitê de Luta de Setúbal. Para Raquel Varela, as comissões de moradores eram "órgãos locais de decisão" que "surgiram quase imediatamente como uma estrutura local de tomada de decisões, atuando como um poder paralelo em relação às câmaras municipais", mas com uma "articulação quase direta com o poder central e o MFA". Ao mesmo tempo, as câmaras municipais serviam "mais como fonte de pessoal e financiamento para os principais partidos", para o PS e o PCP. [Muro, C. “La Revolución de los claveles es una de las más importantes del siglo XX”. https://www.laizquierdadiario.com/La-Revolucion-de-los-claveles-es-una-de-las-mas-importantes-del-siglo-XX-131712]]

A urbanização capitalista transferiu, em grande parte, a questão da terra para as cidades e, portanto, fez com que, com o aumento das lutas, os movimentos de moradores exigissem reivindicações como o direito à moradia, aluguéis mais baratos e infraestrutura nos bairros. Essa dinâmica de luta pelo direito a condições mínimas de vida inevitavelmente entrou em conflito com a propriedade privada da terra. Esse conflito permanente fez com que, por exemplo, o Comitê de Luta de Setúbal aprovasse, em 1º de setembro de 1975, a nacionalização e municipalização dos terrenos urbanos com a socialização das grandes e médias empresas de construção civil, nacionalizações sem qualquer tipo de indenização, eliminação total de novas licenças para construções de luxo, elaboração imediata de projetos de construção social e socialização imediata das moradias, exceto as casas próprias. [17]

O processo de urbanização e o fortalecimento social da classe trabalhadora geraram um duplo processo. Ao mesmo tempo em que os movimentos urbanos se tornavam protagonistas, surgiram novos setores produtivos (como serviços, comércio ou hotelaria) em estreita relação com as populações. Isso permitiu, de certa forma, não apenas que o movimento operário ocupasse posições-chave, mas também que setores, devido à sua posição, pudessem ganhar ou articular novos aliados entre a população (que em sua maioria era assalariada).

Como já mencionamos, a equipe do Pão de Açúcar publicou para os vizinhos a contabilidade da empresa e as margens de lucro que o empresário obtinha ao aumentar injustamente os preços. Houve casos em que uma multidão de moradoras se manifestava (como em Labradio, distrito de Setúbal) em frente aos comerciantes, exigindo a limitação dos preços, organizando-se em comitês de controle de preços para fiscalizá-los. Isso evidenciava como os bairros também estavam permeados pela luta de classes, e os assalariados, organizados em comissões de moradores, avançavam com a imposição das demandas populares.

Os trabalhadores do Hotel Francfort, em Lisboa, ocuparam o local e o transformaram em um centro cultural público disponível para todos os moradores. O motel Do Muxito foi ocupado pela população e transformado em um centro de descanso e repouso para os idosos do bairro. Uma infinidade de edifícios abandonados, públicos ou empresariais, foram ocupados diretamente por seus trabalhadores ou pela própria população.

Em outro plano, houve convergências de diferentes tipos que demonstravam a importância política dos funcionários públicos na luta para desarticular as forças e bases materiais do Estado burguês. Como no Porto, onde os trabalhadores municipais de coleta de lixo entraram em greve em maio de 1975, com o apoio dos moradores, por melhores condições e pelo "saneamento" do presidente da câmara municipal. Ou quando as comissões de trabalhadores das companhias de Água, Gás e Eletricidade apoiaram as comissões de moradores, realizando as conexões às redes de distribuição, burlando o procedimento burocrático legal de apresentar um contrato de aluguel ou um título de propriedade. [Palacios Cerezales, P. D. “Crisis de Estado y acciones colectivas en la revolución portuguesa. 1974-1975”, p. 65.]]

O entrelaçamento ou a confluência entre a classe trabalhadora, os moradores e os "novos" movimentos sociais ocorreram de forma mais natural e desempenharam um papel interessante para pensar a hegemonia operária e como articular as alianças entre os principais setores do movimento operário, as "populações" e os movimentos sociais.

Institucionalização e burocratização das comissões

Aqui não podemos abordar todo o conjunto de golpes que a contrarrevolução democrática em Portugal representou, o papel das lideranças trabalhistas e políticas, as concessões da burguesia para não perder completamente o controle, o papel desempenhado por uma Assembleia Constituinte totalmente antidemocrática, ou a batalha do controle da produção, entre outros. Mas podemos mencionar alguns problemas, como a institucionalização e a burocratização do movimento operário por diferentes vias.

Os sindicatos da ditadura chegaram ao 25 de abril bastante desacreditados para uma geração operária jovem e cansada. A Intersindical [18], criada por católicos progressistas e pelo PCP em 1970, não tinha um controle absoluto do movimento operário já em andamento. A fraqueza relativa da estrutura burocrática sindical do PCP facilitou a expansão da auto-organização em muitas empresas.

A Intersindical, comenta Raquel Varela, foi se estabelecendo como a "estrutura dirigente do movimento operário organizado" [19] por meio de uma política de "pão e chicote", ou seja, de cooptação e ataques às comissões de trabalhadores. Durante a revolução, o PCP acabará se tornando um grande aparato político e sindical. Como partido, ele passou de cerca de 2.000 a 3.000 militantes para 100 mil militantes um ano depois, e a Intersindical chegou a 2 milhões de afiliados em 1976. No caso do PS, com apenas 200 militantes no início, um ano depois acabou tendo 80 mil militantes, ganhando peso militante e superestrutural, graças ao apoio econômico e político do SPD alemão. Este será o partido "favorito" da contrarrevolução democrática das grandes potências mundiais.

Após o golpe de Estado de novembro de 1975, houve uma desaceleração das mobilizações, iniciando-se um processo de institucionalização de todos os organismos. Em outras palavras, um processo de integração e subordinação, direta ou indiretamente, ao Estado. Esse será um dos principais mecanismos das elites políticas e econômicas de Portugal, ampliando as áreas de influência do Estado e, dessa forma, dominando e controlando os organismos que surgiram durante a revolução, tanto as comissões de trabalhadores quanto as de moradores. No caso das primeiras, a institucionalização ocorreu tanto por meio da integração nos sindicatos quanto pela transformação em comitês de representação dos trabalhadores nas empresas. No caso das comissões de moradores, acabaram sendo dissolvidas ou se transformaram em meras associações de moradores ou em cooperativas de residentes.

A geração de "Grândola, Vila Morena" mostrou o potencial da classe trabalhadora, tanto por suas posições estratégicas para interromper a produção quanto para tentar criar uma nova ordem social em aliança com os pobres urbanos (produção, transporte, logística, distribuição, etc.). As ilusões de ruptura com a ditadura levaram a busca por empresas e bairros que representassem diretamente essa geração, além de simpatia pelo controle operário, autogestão e nacionalização da economia.

Assim como a queda do franquismo na Espanha foi interpretada pelos comunistas espanhóis em uma chave reacionária, negando à classe trabalhadora, com seus próprios métodos de luta e auto-organização, o papel de conduzir a ruptura com a ditadura franquista. O papel desempenhado por seu homólogo português e pelo PS evidenciou o grande problema estratégico da revolução portuguesa, a ausência de um partido revolucionário combativo da vanguarda operária que defendesse a mais absoluta independência política em relação à política contrarrevolucionária desses dois partidos. A esquerda, e em particular os grupos trotskistas, também não apresentaram uma linha independente desses partidos. A revolução em Portugal mostrou que era (e ainda é) possível ver processos de transformação radical em um país capitalista moderno "ocidental", mas que a vitória continua sendo uma tarefa consciente que requer a construção de uma liderança revolucionária alternativa à das direções reformistas.


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FOOTNOTES

[1No início, foi chamado de "Movimento dos Capitães", que organizava setores do Exército. Após 25 de abril, abrangeu os três ramos das Forças Armadas e passou a se chamar Movimento das Forças Armadas.

[2Lif, L. Chingo, J. “Transiciones a la democracia”, (2000), http://www.ft.org.ar/estrategia/ei16/ei16transiciones.htm

[3Raquel Varela define, com precisão, a ditadura portuguesa como: “Um regime bonapartista clássico - uma ditadura - para disciplinar a força de trabalho, arbitrar a concentração da propriedade em favor de alguns poucos grupos econômicos, limitar a concorrência (protegida das lutas fracionais entre eles e com o movimento operário) pelo Estado e iniciar um processo agora intensivo de exploração colonial, com traços típicos de acumulação primitiva, como mencionado na questão do trabalho forçado.” História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75, p. 26.

[4O jornal português Diário de Notícias coloca cifras de mortos em 100 mil africanos e 10 mil portugueses, a mobilização do exército alcançou 90% da população adulta masculina e criou um dos maiores movimentos de fuga de um país da Europa Ocidental

[5Composto, dependendo do momento, pelas alas de esquerda ou moderadas do Movimento das Forças Armadas, pelo Partido Socialista de Portugal, pelo Partido Comunista de Portugal, pelo Movimento Democrático Português e pela burguesia liberal do Partido Popular Democrático.

[6Dal Maso, J. “La Revolución Portuguesa: "El 25 de noviembre de 1975 es el fin de la crisis revolucionaria”

[7Trotsky, L. “Alemania, la clave de la situación internacional” (1931). https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1931/noviembre/26.htm.

[8Durán Muñoz, R. Contención y Transgresión. Las movilizaciones sociales y el Estado en las transiciones española y portuguesa, p. 42

[9O setor primário passou, em 1958-59, de 26,4% para 12,9%; em 1972-73, o setor secundário (indústria de transformação e construção) passou de 34,6% para 48,5% no mesmo período (de 28,0% para 39,15% para o primeiro, e de 4,5% para 6,1% para o segundo); e o setor terciário passou de 39,0% para 38,6% no mesmo período.

[10Bensaid, D. Rossi, C. Udry, C-A. Lecciones de Abril, p. 31.

[11Como estaleiros navais, siderurgia, grandes indústrias, aeroportos, componentes eletrônicos, transportes, comércio ou comunicações.

[12Esse exemplo, além dos anteriores demonstra o quão impotente e reacionário é ter uma política neo-reformista. Atualmente, o exemplo foi com o governo do Syriza na Grécia, que acabou aceitando os cortes da troika depois que a população grega votou "não" no referendo. Somente um partido inserido em posições estratégicas, como o setor bancário, para impedir a sangria de capitais que os capitalistas estavam promovendo caso os cortes não fossem aceitos.

[13Durán Muñoz, R. Contención y Transgresión. Las movilizaciones sociales y el Estado en las transiciones española y portuguesa, p. 121.

[14Varela, R. História do Povo op. cit., p.70.

[15Bensaid, D. Rossi, C. Udry, C-A. Lecciones de Abril, p. 10.

[16Downs, C. “Comissoes de Moradores and urban struggles in revolutionary Portugal”. Urban praxis (1980), p. 26

[17O fato de que os bairros estivessem atravessados pela luta de classes e de que os moradores adotassem um programa que acabava questionando a propriedade privada, que foi interrompido pela burocratização e institucionalização, bem como pelo papel reacionário das câmaras municipais, evidencia todas as novas teorias do municipalismo social, libertário (como Murray Bookchin, entre outros) que reivindicam a necessidade de salvar o último reduto do Estado burguês por meio das câmaras municipais.

[18Sua influência, conforme conta Raquel Varela em seu livro "História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-75", começou com 12 sindicatos, 172.000 trabalhadores e, em 1971, 190.000. Em 1973 - coincidindo com a crise econômica mundial - eram 130.000, em maio de 1974 já havia 54 sindicatos, e no ano seguinte, segundo dados do PCP, chegaram a dois milhões de filiados.

[19Muro, C. “La Revolución de los claveles es una de las más importantes del siglo XX”.
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