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Estudos sobre Brizola e o brizolismo: luta de classes e o governo do Rio Grande do Sul

Guilherme Kranz

Estudos sobre Brizola e o brizolismo: luta de classes e o governo do Rio Grande do Sul

Guilherme Kranz

Estudo sobre a luta de classes no Rio Grande do Sul no final da década de 1950 e início de 1960, o governo Brizola e o brizolismo.

Introdução

No final de 2022, a regional do Rio Grande do Sul do Movimento Revolucionário de Trabalhadores reuniu-se pela primeira vez para estudar e debater o brizolismo. O objetivo era compreender a fundo a história da região, suas figuras, sujeitos, lutas e tradições. Dispúnhamos de algumas linhas previamente traçadas pelas teses fundacionais da FT no Brasil, que orientaram o quadro geral da reflexão, e muita vontade de mergulhar na história do movimento operário e popular do sul. Ao longo desse estudo, nos deparamos com histórias surpreendentes, com um efervescente e extraordinário movimento operário que protagonizou inúmeras lutas ao longo dos anos que precederam o governo de Brizola e o episódio da Legalidade. Foi um genuíno processo de escovar a história a contrapelo, pois a realidade dos fatos e a riqueza do processo das lutas de classes revelam um processo histórico bastante alheio às mistificações que costumam rodear a figura do caudilho.

O exame crítico, sob as lentes do marxismo, compreende os indivíduos enredados em complexas cadeias de classes, grupos, movimentos, interesses, frações, disputas, lutas, direções – não sob alguma mistificação idealista. Esta última, no entanto, vem sendo a tônica no que tange às interpretações do legado de Brizola hoje. Não são poucos os que, com uma ou outra análise de discursos e um apanhado de feitos tomados de forma isolada, criam uma narrativa idealizada de Brizola. A disputa de seu legado é paradoxal e evidencia as ambiguidades políticas de suas bandeiras e feitos, bem como a confusão teórica de parte da esquerda brasileira. Esse legado teve o singular mérito de reunir a reivindicação de figuras que vão de Fernanda Melchionna a Eduardo Leite, de Jones Manoel a Rodrigo Maia, de Olívio Dutra a Ciro Gomes. Cada um a seu modo, com suas razões particulares, claro. Mas não deixa de ser um arco amplo e inusitado que unifica stalinistas e neoliberais, morenistas e burgueses, petistas e trabalhistas.

Nós queremos contribuir com uma visão diferente e crítica, arriscamos dizer nova em alguns aspectos, do significado do governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul e do fenômeno do brizolismo em seu conjunto. Leon Trótski nos deixou pistas para sua compreensão (mesmo sem nunca ter se detido pausadamente sobre a formação brasileira ou escrito algo sobre Brizola) em uma carta endereçada a um dirigente de uma central sindical mexicana, na qual elabora sobre a burguesia em países de desenvolvimento capitalista atrasado e o fenômeno do chamado bonapartismo sui generis. Com isso, ele aponta à necessidade da independência política do proletariado. Nesse sentido, esse estudo é também uma contribuição do trotskismo para a compreensão do brizolismo. Leonel Brizola representou uma das variáveis mais radicais da burguesia e esteve no centro do furacão de um dos momentos de maior crise política da história nacional, com o vazio de poder iniciado pela renúncia de Jânio Quadros, um ascenso operário e camponês e o início de uma etapa pré-revolucionária no Brasil. A definição, portanto, de que Brizola representa uma variante política burguesa, que ele visa aprimorar e humanizar o capitalismo e não combatê-lo, adquire significação crucial para a compreensão histórica e os objetivos deste trabalho. Uma análise marxista séria não deixa pedra sobre pedra sobre o caráter burguês do programa e da política de Leonel Brizola. O objetivo deste estudo é extrair algumas das principais lições estratégicas desse processo e contribuir para uma memória que sirva hoje à construção da revolução socialista, de um partido revolucionário, da emancipação do proletariado e da maioria da população.

Parte 1 - Ascensão meteórica e eleição da Frente Popular em 1958

Leonel de Moura Brizola teve uma carreira política de ascensão meteórica. Nasceu em 22 de janeiro de 1922, em Cruzinha (atual Carazinho), próximo a Passo Fundo, no noroeste do Rio Grande do Sul. Seu pai, pequeno fazendeiro, é assassinado por soldados ligados a Borges de Medeiros durante a revolução de 1923, levando o jovem Leonel a ser criado por sua mãe e seus outros quatro irmãos mais velhos. Aos 10 anos começa a trabalhar e aos 12 se muda sozinho para Porto Alegre, onde faz curso técnico rural e demonstra caráter resoluto e determinado desde criança. Vive uma rotina de jovem proletário virando-se sozinho na capital gaúcha, onde trabalha como engraxate, ascensorista e graxeiro em uma fábrica de Ildo Meneghetti, que depois viria a ser um importante adversário político. Ganha bolsa para estudar no tradicional colégio de elite, Rosário, e termina o ensino médio no também tradicional, mas popular, colégio Julio de Castilhos, o Julinho, onde funda o grêmio estudantil – símbolo até hoje do movimento secundarista porto-alegrense. Cursa engenharia na UFRGS, onde adere definitivamente ao trabalhismo e conhece a mulher que será sua esposa até sua morte em 1993, Neusa Goulart, irmã do líder petebista, João Goulart. Em 1950, com 28 anos, casa-se com Neusa, tendo ninguém menos que Getúlio Vargas o padrinho do casamento ocorrido na Fazenda de Iguariaçá, de propriedade dos Goulart, próximo a São Borja. Aqui há um dado importante que é deixado de lado pela maior parte dos historiadores. Ao se casar com Neusa e adentrar definitivamente na família Goulart, Brizola ascende de classe e passa a ser parte, por direito, do andar superior da sociedade de classes, mais especificamente ao setor ligado ao latifúndio agropecuário – Moniz Bandeira [1], em estudo sobre João Goulart, aponta como o ex-presidente trabalhista se transformou literalmente em um dos homens mais ricos e um dos maiores proprietários de terra do país durante os anos de 1940 e 1950 graças às invernadas e vendas de gados. Brizola possui, portanto, uma origem de pequeno-burgueses pobres do campo, uma trajetória proletária na juventude e uma ascensão burguesa ao longo de sua vida. Um homem que circulou por distintas esferas da sociedade, habilitando-o na capacidade de dialogar e navegar em universos variados, muitas vezes opostos. Importante ressaltar essa metamorfose social, escanteada por praticamente todos os historiadores sobre o assunto, pois ajuda a compreender o fenômeno do brizolismo em suas muitas dimensões.

Em 1945, com o fim do Estado Novo, o PTB é criado por Getúlio Vargas (seu plano inicial era congregar empresários e sindicalistas na mesma sigla, mas falha e o PSD, ora adversário, ora aliado, é criado como representação “legítima” do empresariado). Brizola logo se elege deputado estadual pela sigla trabalhista, em 1947, aos 23 anos de idade. Reeleito em 1950, vira líder do PTB na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, tenta a prefeitura de Porto Alegre em 1951, mas perde para Ildo Meneghetti, do PSD, por uma diferença de apenas mil votos. Essa é a primeira eleição que Brizola selará aliança com os integralistas do PRP, o fascismo brasileiro liderado por Plínio Salgado. O PCB, nessa eleição de 1951, chama voto em branco contra os representantes da burguesia (Ildo - PSD) e também contra Brizola (segundo o PC, Brizola representava o “velho fura-greve dos trabalhadores da Carris e da ferrovia, pretende enganar o povo com música e retratos coloridos, gastando dinheiro a rodo em festas” [2]). Em 1954, Brizola é eleito deputado federal mais votado do estado e, no ano seguinte, vence a prefeitura de Porto Alegre, cujo mandato seguirá de 1956 até 1958, quando então renuncia para se candidatar ao governo do estado. Ou seja, em apenas 12 anos, Brizola passou por três legislaturas, sendo duas estaduais e uma federal, a prefeitura da capital gaúcha, algumas secretarias municipais e estaduais e conquistou o governo do estado do Rio Grande do Sul com 36 anos. Evidentemente os louros dessa ascensão não se devem apenas ao mérito individual de Brizola – além do apadrinhamento varguista e janguista, inúmeros processos políticos, econômicos e sociais, que veremos em detalhe a seguir, corroboraram para essa trajetória. Sua carreira meteórica, portanto, assume contornos políticos difusos e paradoxais – Brizola sistematicamente acena aos grandes estancieiros, à burguesia industrial, a frações do exército e ao conservadorismo cristão ligado à Igreja Católica enquanto, ao mesmo tempo, logra atrair os mais pobres, pequenos agricultores e trabalhadores urbanos com uma oratória vigorosa, anti-comunista e nacionalista contra a miséria, a fome, a desigualdade, em defesa da educação, de água limpa para todos, etc. Brizola carregará essa dualidade insolúvel – que concretiza-se na utopia reacionária da harmonia entre capital e trabalho, síntese do trabalhismo, e teorizada mais tarde como “socialismo moreno” – até o fim de sua vida.

Antes de analisarmos o governo em detalhe, vale determo-nos em algumas particularidades da eleição ocorrida em 1958 em que o PTB de Brizola concorreu contra a Frente Democrática, liderada pelo PSD em aliança com a UDN e o PL. No pleito anterior, em 1954, o candidato petebista, Alberto Pasqualini, perdeu para Ildo Meneghetti, do PSD, que governou o estado durante a crise política aberta pelas conspirações golpistas e o suicídio de Vargas. Pasqualini era uma das principais figuras do PTB no estado e um dos mentores programáticos do trabalhismo. Para não repetir a derrota de 1954, Brizola se afastou da “esquerda” de variadas formas: fortaleceu um discurso anti-comunista e cristão e deixou de lado a retórica mais programática, que tanto caracterizou a campanha de Pasqualini. Misturou-o a uma linguagem jovem e de apelo popular, aprimorada durante os anos em que apresentava um programa de rádio todas as sextas-feiras. Conformou a chamada Frente Popular liderada pelo PTB em aliança com o PSP (partido burguês fundado por Adhemar de Barros) e o PRP (Partido de Representação Popular, partido fundado pelo integralista Plínio Salgado e que reuniu os principais nomes do fascismo brasileiro). Aos fascistas, Brizola ofereceu duas secretarias importantes dentro do governo - a Secretaria de Obras e a de Agricultura, que ficou com Alberto Hoffmann, uma das principais figuras integralistas no estado. Dessa forma, a Frente Popular [3] angariou os votos das camadas mais conservadoras de pequenos e médios agricultores das zonas de imigração alemã e italiana, bem como de parte da elite econômica do estado. O apelo à industrialização e modernização, tanto do aparato produtivo quanto da eficiência da máquina estatal, agradou os meios empresariais e alguns liberais de plantão. Sua retórica nacionalista e anti-comunista ganhava eco nos quartéis entre pracinhas, brigadianos (policiais militares do RS) e também no médio e alto oficialato. Brizola aproveitou a baixa de investimentos federais na região para criticar a administração do PSD e o isolamento do estado frente ao modelo de desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e ao esgotamento da economia gaúcha. A bem dizer, a proposta do PTB não era radicalmente diferente da do PSD – ambos buscavam um maior destaque do Rio Grande do Sul dentro do projeto de desenvolvimentismo em curso no país. A diferença principal estava na forma como essa inserção se daria, um com maior peso à indústria nacional e o outro com mais investimentos estrangeiros.

Na medida em que o PTB figurava como o partido mais inserido nos sindicatos e agremiações operárias do estado, em particular em Porto Alegre, a Frente Popular conseguiu boa parte dos votos dos trabalhadores urbanos. Dessa forma, alçou-se como o símbolo da conciliação entre capital e trabalho e conquistou até mesmo o apoio do PCB, que também possuía peso na vanguarda operária da cidade, não obstante a clandestinidade e a hostilidade do próprio líder petebista em relação aos comunistas. Em 1958, o partido de Prestes lançava a famigerada “Declaração de Março”, que atualizava as clássicas teses etapistas do PCB nas quais a revolução brasileira seria inicialmente burguesa: “a primeira etapa em curso seria a da revolução nacional e democrática, de conteúdo antiimperialista e antifeudal. Após a vitória dela é que se passaria à segunda etapa – a da revolução socialista” [4], diz Jacob Gorender, do CC do PCB na época, em livro publicado em 1987. Um legítimo “menchevismo de segunda colheita”, para tomar emprestada a expressão que Trótski utiliza ao caracterizar a linha do stalinismo da década de 1930. Na prática, tratava-se de uma aliança entre “proletariado, camponeses, a pequena burguesia e a burguesia industrial” para construir o “caminho pacífico da revolução”. A novidade da orientação, em relação às teses da década de 1920 e 1930 do PCB, não era nem o etapismo nem a necessidade de aliança com a burguesia, mas sim a noção de que o capitalismo já estava se desenvolvendo no Brasil na década de 1950 (o crescimento do PIB na época de fato foi substancial, como veremos em detalhe mais à frente, alavancado especialmente pelo pós-guerra).

O apoio do PCB a Brizola e à Frente Ampla com burgueses e fascistas, portanto, por mais inusitado que isso pareça, se adequa perfeitamente à estratégia etapista do PCB materializada na Declaração de Março de 1958. O que une integralistas, trabalhistas e pecebistas era o viés nacionalista, supostamente não entreguista e anti-imperialista, corporificado na figura de Brizola - que por sua vez enxergava o Estado como um ente acima das classes, que iria dirigir a produção para o engrandecimento da nação e administrar tensões e conflitos entre trabalhadores e proprietários. Ou seja, uma visão burguesa de Estado, em que Brizola está mais próximo de um petit Bonaparte dos pampas do que de um jacobino tropical [5]. Prestes, principal liderança pecebista na época, justificava esse apoio da seguinte forma: “No Brasil existem dois tipos de políticos: os entreguistas e os nacionalistas. Para saber se um candidato era entreguista ou nacionalisa, bastava identificar sua posição em relação à Petrobrás: se fosse contra, era entreguista, portanto merecia o repúdio de todos; se fosse a favor, era nacionalista, neste caso deveria-se emprestar total apoio. Nesta lógica, o apoio a Leonel Brizola era algo automático” [6]. A lógica do PCB era dicotômica, pois não reconhecia a debilidade estrutural da burguesia nacional brasileira e sua necessidade de se associar ao imperialismo a fim de conter a classe trabalhadora e seguir explorando-a ao mesmo tempo em que buscava algum espaço em relação ao imperialismo, apoiando-se nas massas. A linha do PCB era, portanto, a de submeter os interesses dos trabalhadores e do povo pobre aos interesses da burguesia nacional. O apoio a Brizola expressava isso.

Ao cabo, a Frente Ampla triunfou com mais de 57% dos votos em apenas um turno, deixando a Frente Democrática do PSD, UDN e PL na oposição. A vitória obteve recordes em números nominais e também em percentuais, com mais de 670 mil votos para Brizola, contra 500 mil de Perrachi Barcellos, o candidato do PSD. Nas maiores cidades e com maior concentração operária, a vitória foi ainda mais acachapante: em Porto Alegre, 65%; Canoas, 75%; Esteio, 72%; Caxias do Sul, 52%.

O governo de Brizola será marcado por um enorme e agitado acirramento da luta de classes - a classe operária gaúcha, junto do movimento estudantil e associações populares, protagonizará lutas extraordinárias em defesa da estatização de empresas imperialistas, contra a sufocante carestia de vida e a ofensiva golpista da cúpula militar em 1961. A despeito de inúmeros mitos criados pela historiografia burguesa e por narrativas de esquerda, o governo de Brizola trabalhará para controlar essa intensa movimentação operária e popular, ora alentando-a com uma oratória radical, ora minando sua explosividade e seu potencial de auto-organização - tudo isso em função de contê-la, restringi-la ao quadro burguês do pacto nacional-desenvolvimentista-varguista e bloquear a emergência de uma política operária independente de seu governo que pudesse tomar um rumo revolucionário e de enfrentamento com as grandes elites econômicas e a propriedade privada. Nesse desenvolvimento, Brizola foi empurrado pelas massas a ir além do que pretendia, com a expropriação de duas empresas estadunidenses e das fazendas Sarandi e Banhado do Colégio, como forma também de se antecipar à mobilização das classes trabalhadoras rurais em sua luta histórica pela reforma agrária num momento em que as Ligas Camponesas, Brasil afora, gritavam a palavra de ordem “reforma agrária na lei ou na marra”. Mas antes de desenvolver esse rico processo, é fundamental compreendermos a situação econômica e social que gerou toda essa nova e convulsiva situação.

Parte 2 - A situação econômica e social do RS, a luta contra a carestia de vida e a encampação da CEERG

Durante muitas décadas o Rio Grande do Sul foi considerado o “grande celeiro” do Brasil, caracterizado pela produção de produtos primários para alimentar outras regiões mais industrializadas e populosas (sobretudo o eixo Rio-São Paulo), pela importação de manufaturados [7] e por uma industrialização relativa. Ao analisarmos a participação do RS no Produto Industrial do País, veremos como o estado foi se reprimarizando ao longo das décadas e perdendo peso relativo da indústria, apesar de ampliá-lo em números absolutos. Em 1907, o RS era responsável por 14,9% da participação industrial; 11% em 1920; 8,7% em 1939; até chegar em 6,7% em 1960 [8], no início do governo Brizola. A economia do estado sempre foi dependente da produção pastoril e agrícola, com substancial peso do latifúndio, não à toa as elites agrárias historicamente tiveram força decisória nos rumos do estado e da política regional. Nesse sentido, na década de 1950, a concentração fundiária do estado, a mecanização do campo e a total ausência de política de reforma agrária geraram um movimento duplo fundamental para a emergência de crises nas grandes cidades: por um lado, a expatriação de camponeses para SC, PR e outros países, impactando o crescimento demográfico e consumo médio no estado; e, por outro lado, a criação de um exército de desempregados e sub-empregados nas zonas urbanas, depreciando a média salarial da classe trabalhadora em seu conjunto e restringindo ainda mais o mercado consumidor da região [9]. O impacto desse processo é crítico.

Essa situação, decorrente do quadro estrutural em que o RS se inseria a nível nacional, se juntou à crise inflacionária que marcou o governo JK no final da década de 1950. Para se ter uma ideia, a inflação brasileira saltou de 7% ao ano em 1957 para 24,4% em 1958 e 39,4% em 1959. Ou seja, condições estruturais do estado (peso enorme do latifúndio, mecanização do campo e êxodo rural junto à ausência de reforma agrária, industrialização relativa e débil, baixos salários, desemprego e subemprego nos centros urbanos) ligou-se a uma crise inflacionária a nível nacional, que corroía o poder de compra da população e expropriava a massa salarial da classe trabalhadora. O resultado foi uma enorme crise social, com aumento da fome, dos preços dos alimentos e de uma indignação generalizada entre trabalhadores e pobres das cidades. A jovem e vigorosa classe trabalhadora gaúcha protagonizou, como veremos a seguir, greves e mobilizações extraordinárias contra essa situação, ao arrepio das classes dominantes e do poder político.

O governo de Juscelino Kubitschek, por um lado, deu continuidade ao desenvolvimentismo iniciado por Vargas, com altos índices de crescimento da indústria nacional e crescimento real de 7% ao ano entre 1957 e 1961 [10]. Uma das grandes diferenças foi o financiamento desse crescimento com vultuosos investimentos estrangeiros, explodindo a dívida externa brasileira em mais de U$ 3 bilhões em 1960 (dez anos antes, a dívida chegava a U$ 559 milhões). Acontece que esse crescimento se deu de maneira profundamente desigual, em diversos níveis. A produtividade industrial obteve crescimento de 33% entre 1955 e 1958, por exemplo, mas o aumento real dos salários na indústria foi de apenas 18% nesse mesmo período [11]. A distribuição regional dos crescimento também foi desigual, gerando grande insatisfação na região, como atesta matéria do Correio do Povo [12] da época: “Enquanto o Rio Grande do Sul contribui com mais de 10% para a formação do PIB brasileiro, recebe apenas 0,2% dos investimentos do plano de metas de JK” [13]. Ou seja, o bolo cresceu, mas apenas uma pequena fração da sociedade brasileira pôde saboreá-lo, e a classe trabalhadora certamente não estava nesse grupo seleto. A elite agrária gaúcha, portanto, se beneficia dessa localização subalterna do estado em relação ao centro financeiro e industrial do sudeste, ao passo em que a burguesia industrial depende do restrito mercado regional, impactado pelo êxodo rural, e é incapaz de conseguir competir com a hegemonia paulista e carioca.

Esse quadro gera um limite de expansão, crescimento e inovação – de certa forma perene até os dias de hoje – onde quem paga a maior parte do preço é a classe trabalhadora, com seus salários e direitos constantemente pressionados pelas oscilações da anarquia capitalista. Como dito anteriormente, tanto o projeto do PTB de Brizola quanto o do PSD não se contrapunham frontalmente ao modelo de nacional-desenvolvimentismo varguista, continuado por JK em certa medida, ambos desejavam aumentar o destaque do RS no modelo, mas de formas diferentes – um com maior protagonismo do Estado enquanto gestor e dinamizador da economia, outro com maior investimento estrangeiro. No curso dos acontecimentos, Brizola ora vai se enfrentar com as mobilizações operárias e populares que resistiam às consequências do modelo em crise do desenvolvimentismo-varguista, ora vai se apoiar no movimento de massas a fim de obter melhores margens de manobra para negociar com o governo federal, os militares e as demais forças políticas – ao mesmo tempo, em determinados momentos ele será empurrado a tomar algumas medidas mais radicais que certamente não planejava. Para entendermos isso tudo é necessário abordarmos o contexto do movimento operário e popular de então.

A dissertação de João Marcelo Pereira dos Santos [14] sobre as lutas dos trabalhadores porto-alegrenses entre 1958 e 1963 desenha um quadro efervescente e impressionante de uma classe renovada em busca de seus direitos mais básicos. Não conseguiremos reproduzi-lo em todas as suas dimensões, mas é importante trazer alguns elementos a fim de ilustrar a situação. Sem isso, é impossível compreender o que foi o governo Brizola, a estatização da CEERG e o movimento de Resistência Democrática que, conjugado ao processo de resistência nacional, barrou o golpe militar em 1961. Boa parte da narrativa que veremos a seguir se deu graças ao vivo resgate que Santos fez das lutas de classe desse período, com análise aguçada e crítica, pesquisa séria e entrevistas com alguns dos atores de todo esse processo. Três grandes movimentos precedem a resistência democrática e sacodem a capital gaúcha entre 1958 e 1961: a campanha contra a carestia de vida, a luta pela estatização da CEERG e a onda de greves operárias do estado e, sobretudo, da capital.

Terminada a eleição em outubro de 1958 e Brizola eleito, lideranças sindicais do estado se reuniram para debater a luta contra o aumento dos preços. A situação estava cada vez mais insuportável e os aumentos salariais, quando existiam, não davam conta de reverter o aumento do preço da comida, da tarifa do transporte, do custo de vida em geral. Em 28 de outubro foi publicado na imprensa um manifesto assinado por 21 sindicatos (metalúrgicos, alfaiates, eletricitário, gráfico, comerciário e outros) denunciando a “onda altista que ultimamente vem atingindo os gêneros essenciais à manutenção da vida humana” [15]. No início de novembro, diversos sindicalistas se reuniram para traçar um plano de luta e elegeram o Comando Sindical Contra a Alta do Custo de Vida, prometendo passeatas para denunciar a situação. Diversas assembleias passaram a ocorrer na base dos trabalhadores e em bairros. O Chefe de Polícia do Estado divulgou nota proibindo manifestações públicas contra o aumento do custo de vida, citando os fortes protestos que haviam ocorrido em São Paulo contra o aumento das passagens do transporte como exemplo do que não poderia ocorrer [16]. Mas a ameaça de repressão não surtiu o efeito que gostariam. Somam-se categorias à luta, com assembleias de base ocorrendo em categorias estratégicas, como aeroviários, ferroviários e até mesmo associações de bairros. Na assembleia do sindicato dos metalúrgicos para tratar da luta contra a carestia, por exemplo, participam comissões do bairro da Vila Cristo Redentor e da Sociedade dos Amigos do Passo da Cavalhada. Há mobilização dos Clubes de Mães da cidade, que levam seus filhos em direção à Assembleia Legislativa e à Câmara dos Vereadores para protestar contra os aumentos. A Sociedade dos Amigos da Bela Vista convoca os moradores do bairro a deixar de comprar carne nos açougues durante uma semana, bem como com qualquer outro artigo alimentício que sofra aumento, e chamam manifestações na rua. Passaram a circular “cartas correntes” anônimas nos jornais, inspiradas por correntes de oração, convocando a população a fazer “greve branca” e deixar de comprar “carne, pão ou outras mercadorias durante certos dias da semana, com isso espera-se que os açougues e padarias baixem os preços” [17]. Ou seja, a situação era sufocante e por todos os lados havia mobilização.

Duas linhas diferentes de dois grupos sindicais distintos estavam sendo disputadas neste momento. O Comando Sindical Contra a Carestia de Vida (CSCCV) era composto por novas lideranças que buscavam maior autonomia do movimento sindical em relação ao governo e ao Estado. As lideranças tradicionais, ligadas ao CTG (Congresso dos Trabalhadores Gaúchos), desejavam estreitar relações com o executivo “adotando a política de menor atrito” [18]. Ambas tinham relações com as lideranças sindicais do PTB e do PCB, mas o Comando Sindical reunia lideranças mais jovens e com maiores relações com as bases dos trabalhadores, ao passo em que o CTG era controlado pela tradicional burocracia sindical pelega. A passeata ocorreu sem repressões e Brizola, já uma raposa hábil em conduzir movimentos de massa, ao invés de repreender a movimentação, aproveitou-a para ecoar as críticas à situação e repreender o COAP (Comissão de Abastecimento e Preços do Rio Grande do Sul). Há registros de passeatas, assembleias e protestos em outras cidades do estado também, como Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Livramento, etc. Na metade de novembro, no mesmo dia em que o CSCCV havia organizado outra passeata pela cidade, o governo federal baixou um decreto com congelamento dos preços em todo o país em base à média do mês de outubro. Evidentemente o congelamento teve prazo de validade curto e em menos de quarenta dias JK já assinava portaria revendo os preços de alguns itens, como banha, feijão, ovos, etc. Afinal, o problema era estrutural. Mas o efeito imediato foi contundente, pois mostrou aos trabalhadores que a mobilização nas ruas poderia conquistar vitórias, ainda que momentâneas, parciais, etc. Um líder sindical dos marinheiros, Francisco Mercante, expressa a consciência de que o governo foi pressionado pelas ruas da seguinte forma: “Quero deixar bem clara a minha opinião que nada tem de pedante ou tutelar: Foram os trabalhadores, foi o povo que realizou a conquista do congelamento. Manifesto-me assim, porque isto é uma concepção de classe, da classe operária a que pertenço.” [19]

A patronal tentou transferir, portanto, as perdas do congelamento para o salário dos trabalhadores e recusou-se a pagar o reajuste salarial em janeiro de 1959. A reação foi categórica e os sindicatos de Porto Alegre divulgaram uma palavra de ordem que unificava distintas categorias: “não pagou, parou”. Passaram a defender também a participação dos trabalhadores na COAP, já que o órgão controlador dos preços era sistematicamente manipulado pelos empresários. Aqui é possível enxergar como o programa dos sindicatos, controlados pelo PTB e PCB, fundamentalmente, restringia-se à participações em instituições e órgãos do Estado burguês, não uma linha independente do Estado, apesar de haver diferenças entre os dois partidos em como conduzir o movimento sindical, em concepções políticas, etc. Enquanto isso, a política de Brizola era interceder fundamentalmente a favor dos proprietários do campo, em especial de rizicultores e vendedores de gados. O governador conseguiu empréstimo junto ao governo federal, graças à proximidade com o então eleito vice-presidente, Jango, a fim de subsidiar os rizicultores que estavam perdendo lucros com o tabelamento de preços. Em seguida, comerciantes do estado ameaçaram locaute no abastecimento de carnes da capital, no que Brizola cedeu e autorizou aumento de 25% e fim do controle de preços de alguns itens bovinos. Ou seja, enquanto trabalhadores e população mais pobre saía às ruas contra a carestia, o governo do estado viajava a Brasília e intervia nos preços a fim de favorecer grandes fazendeiros, comerciantes e pequena-burguesia do campo. Essa postura é conveniente com as concepções nacional-desenvolvimentistas de Brizola, na qual o progresso da nação se daria em consonância com as classes proprietárias. Em 17 de setembro de 1959, o Comando Sindical de Porto Alegre organizou manifestação que reuniu cerca de 20 mil pessoas contra a situação dos preços, percorreu as ruas do centro e finalizou o ato em frente ao Piratini para pressionar o governo do estado. Numa cidade de cerca de 500 mil pessoas, esse número equivalia a cerca de 5% da população, ou seja, um ato muito expressivo. Brizola deixou-os sob chuva esperando-o por mais de uma hora, até que discursou dizendo que poderiam ir descansados de volta para suas casas, que se não conseguisse mudar a situação, “deixaria o Piratini e se juntaria em praça pública com o povo, na luta contra os gananciosos e contra os inimigos de nossa pátria”. A sagacidade do líder trabalhista fica patente numa fala que busca se irmanar com os revoltosos e acalmá-los, apesar de na prática ele atuar junto aos fazendeiros para preservar os preços de alguns itens. A todo momento, ao longo de seu governo (e de sua vida política), Brizola opera esse jogo duplo de dizer uma coisa e fazer outra, bem como de se apoiar na mobilização de massas para angariar melhores acordos com a União, com os militares ou com adversários políticos.

Essas mobilizações contra a carestia de vida criaram um novo momento no sindicalismo porto-alegrense, permitiram a reorganização do Comando Sindical da capital e a redução do peso que o CTG e o velho sindicalismo pelego tinham nos sindicatos e confederações. A direção política do Comando Sindical não era revolucionária, tampouco defendia a independência de classe. Como vimos, o PCB, que era o setor mais à esquerda nesse momento com influência significativa na vanguarda da classe operária, carregava a estratégia de apoiar a burguesia nacional. A relação com o governo de Brizola não era de enfrentamento, nem de participação efetiva, mas de colaboração e conselheiro. A grande diferença desse novo momento é a proximidade de algumas das novas lideranças sindicais com a base de trabalhadores, que estava cada vez mais mobilizada, como veremos agora com o caso dos eletricitários.

Até hoje um dos maiores mitos que circundam a vida e o legado de Brizola é a encampação da Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense, tratando-a como se fosse uma ação anticapitalista ou mesmo comunista do líder trabalhista. Nada mais falso. A bem dizer, a encampação não teria ocorrido não fosse o longo e árduo trabalho dos eletricitários da CEERG, que durante anos batalharam e conseguiram convencer boa parte da população da necessidade de retirar das mãos dos imperialistas o fornecimento de luz. Os objetivos de Brizola com a encampação, por sua vez, vêm na esteira da orientação nacionalista burguesa, a fim de fortalecer o papel do Estado (e portanto da burguesia) na administração geral do território gaúcho e reduzir as tarifas de luz para a grande indústria poder prosperar. Ao mesmo tempo, oferecer concessões à classe trabalhadora, a fim de manter uma das mais importantes bases de sustentação de seu governo. Uma análise marxista do processo não só apontaria os interesses da burguesia nisso, como trataria as ações de Brizola com desconfiança cabal, já que ao cabo do processo tentou aniquilar o movimento sindical da empresa, verdadeiro protagonista da encampação, mexendo pauzinhos para colocar o sindicato na ilegalidade. Mas suas tentativas foram frustradas, como veremos a seguir.

A prefeitura de Porto Alegre selou a concessão com a American and Foreign Power (AMFORP) em 5 de maio de 1928, assumindo o controle de produção, distribuição e venda da energia elétrica da região. A subsidiária da AMFORP, a Bond and Share, controlou a energia elétrica de diversas cidades do RS até 1959, quando o governo Brizola assinou decreto de encampação. Tratava-se de uma gigante imperialista, que controlava o fornecimento de energia em boa parte das capitais do país, do Nordeste ao Sul, passando por MG, SP, etc. Entre as décadas de 1940 e 1960, a capital gaúcha praticamente duplicou de tamanho (313,9 mil habitantes em 1947 e 694,7 mil em 1962 [20]). No entanto, esse crescimento demográfico não foi acompanhado por um crescimento proporcional da capacidade produtiva da Bond and Share, levando rapidamente o modelo de concessão a uma crise catastrófica: “Porto Alegre, de 20 anos para cá mais parece uma cidade da campanha, porque é rara a via pública que não se encontra em trevas” [21], diz um legislador em 1957. A falta de luz afeta o conjunto da população, incluindo os negócios da indústria e do comércio, o que aumenta a pressão de diversos setores da sociedade sobre a CEERG e o poder público. O transporte público na época era organizado em grande medida via bondes elétricos, gerando crise também nessa área (a Carris teve que reduzir o circulamento usual de 115 bondes por dia para 80 bondes, gerando superlotação, atrasos, etc.). O racionamento de energia que a empresa impunha à população afetava toda a vida econômica da cidade e a encampação começou a ser uma reivindicação cada vez mais intensa.

A situação ganha novos contornos quando há uma mudança na direção do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Termo-Elétricas e da Produção de Gás de Porto Alegre, o sindicato dos eletricitários. A oposição sindical, dirigida por Jorge Alberto Campezatto [22] e Álvaro Ayala, desbancou a direção pelega e traidora de Nonoso Leal (ex-militante do PCB, quando assumiu a direção passou a auxiliar a direção da empresa e a polícia a perseguir os militantes comunistas de dentro da empresa) e deu início a um novo momento sindical, bem mais ligado às bases da categoria.

Em entrevista para Santos, Campezzatto conta: “O sindicato antes era oficialista, tinha boas relações com o patrão, seguia o padrão dos demais sindicatos da época. Não cortamos as relações com a empresa, mas o nosso procedimento mudou completamente. Eu, como presidente do sindicato, fazia a sede do sindicato nos locais de trabalho. Locomovia-me pela manhã para o local de trabalho, ficava conversando, fazia reuniões, visitava as diferentes seções. (…) Instituímos uma coisa que foi fundamental (…) que é o delegado de base. Em cada setor de trabalho nós colocamos a possibilidade dos integrantes daquele setor de trabalho eleger os seus representantes, o seu delegado sindical, eleger de forma direta e aberta. Então, os delegados eram eleitos diretamente. (…) Esses delegados no começo eram 58, eram a grande força de mobilização sindical, eram eles que levavam os assuntos para discussão nas suas bases. [23]” Com esse novo sindicalismo mais próximo da base, apesar de “não cortar as relações” com a patronal, a nova direção sindical passou a investigar a fundo os problemas da empresa, que ano após ano chantageava a categoria com aumento na tarifa da luz em caso de reajuste salarial alegando dificuldades financeiras.

Uma comissão especial foi formada na Câmara dos Vereadores para averiguar os problemas da CEERG e, junto do sindicato, conseguiram descobrir os crimes cometidos às custas da população. Com informações fornecidas pelos trabalhadores, a investigação revelou os lucros exorbitantes da empresa, a remessa de dinheiro ilegal ao exterior e tornou todos os dados públicos em setembro de 1957, o que gerou enorme discussão na imprensa e na vida da cidade. Ou seja, o debate acerca da necessidade de encampação já estava instalado na sociedade antes mesmo da eleição de 1958 na qual, diga-se de passagem, Brizola se recusou a defendê-la publicamente, mesmo quando questionado em sabatina pelos líderes sindicais dos eletricitários [24]. A mobilização na rua começa no início de 1958, quando o sindicato dos eletricitários, junto de outros sindicatos da cidade, passaram a organizar manifestações em defesa da estatização da CEERG. A concessão teve fim no início de junho daquele ano, mas nenhum dos candidatos se propôs a defender a estatização para não se prejudicar com os americanos e não amedrontar o eleitorado mais conservador.

Com a campanha pela encampação de vento em popa instalada na sociedade, até mesmo figuras de peso do PTB passaram a defendê-la, como Wilson Vargas, uma das principais lideranças do partido no estado e secretário de energia do governo de Brizola, que fez questão de destacar o caráter religioso da medida, mais longe de Lenin do que de Jesus Cristo: “À reivindicação acima veiculada, não aditam os postulados da filosofia social do marxismo, senão os imperativos da soberania nacional e integral consonância, inclusive, com os princípios da filosofia social católica”. Esse é o mesmo Wilson Vargas que, meses depois, vai tentar desmantelar a organização sindical da empresa, atacando o direito de greve dos trabalhadores. Trabalhismo e brizolismo cruzavam-se constantemente a certo messianismo cristão, reiterado pela necessidade de se afastar do “comunismo ateu”.

O decreto de encampação foi publicado, portanto, no dia 11 de maio de 1959, no início do quarto mês de mandato do governo Brizola. O total fracasso do modelo de concessão que gerava apagões sistemáticos e mergulhava Porto Alegre nas trevas, o descontentamento generalizado de toda a população (dos mais pobres da periferia até a grande burguesia, passando pela imprensa e boa parte dos partidos) e a campanha pública que a nova direção sindical, mais ligada à base dos trabalhadores, foram os determinantes principais que empurraram o governo de Brizola a assinar o decreto de expropriação da empresa imperialista e passar a energia elétrica para as mãos do Estado. A estatização foi, acima de tudo, fruto da luta social dos trabalhadores, não das crenças nacionalistas de Brizola ou de um suposto radicalismo antiimperialista do caudilho. O governo indenizou os americanos com simbólicos 1 cruzeiro, o que gerou enorme indignação entre os imperialistas, apesar de terem se refestelado durante décadas com lucros e remessas criminosas.

É preciso ter em conta que a nacionalização da CEERG, a despeito de seu caráter progressista que merece todo o apoio e entusiasmo de qualquer organização que se pretenda revolucionária, enquadra-se dentro dos limites do Estado burguês. Ao mesmo tempo, seria um erro para uma organização revolucionária se contrapor à medida por essa razão. Uma linha correta passa por se aproveitar dessa situação para avançar em um programa de controle operário, em que os trabalhadores possam controlar a energia da região de acordo com os interesses da maioria da população, não dos lucros capitalistas ou da anarquia do mercado. Um programa operário para a situação, que pudesse hegemonizar outros setores e influenciar o conjunto da classe trabalhadora a erguer também um programa de independência de classe para a crise de carestia, dos preços, do desemprego, com a redução da jornada de trabalho e reajustes salariais indexados à inflação, da falta de moradia, através de uma reforma urbana radical, da falta de terra, através da reforma agrária sem indenizações, etc. Mas o programa da direção sindical, do PCB, se limitava à nacionalização da empresa e não se enfrentava, dessa forma, com o Estado capitalista. Pelo contrário, expressava a política de conciliação de classes do partido, norteada por sua estratégia etapista. Dessa forma, colaboravam com o embelezamento do governo de Brizola, cujos ecos vemos até hoje.

Narrativas mais exóticas, como a do jornalista Jefferson Barros, colocam Brizola à esquerda até mesmo da revolução cubana: “Até aquele dia, nem Fidel Castro, cuja revolução se tornava vitoriosa em Cuba no Réveillon de 1958, ainda havia encampado uma empresa norte-americana” [25]. Até hoje exaltam a medida, colocando o líder trabalhista como exemplo da coragem que enfrentou os ianques. O próprio Brizola, a despeito das variadas mitificações criadas sobre o assunto, fala do caso como se tivesse sido um resultado lógico da situação, uma decisão pragmática e administrativa frente a uma crise aberta: “No caso específico da Bond and Share não havia nenhuma escolha para um governo que desejasse realmente cumprir com o seu dever, senão retomar os serviços pessimamente explorados pelo truste internacional. O prazo de concessão já se havia esgotado, a companhia estrangeira já havia auferido lucros ilegais muito superiores ao capital que investia, o serviço que vinha prestando era deficiente, entremeados de constantes racionamentos, nada menos de 50% da energia fornecida pela empresa estrangeira vinha das usinas do Estado e as tarifas por ela cobradas eram escorchantes” [26].

A bem dizer, a encampação vinha na esteira de outras ocorridas no estado, anos antes, como a do Porto de Rio Grande, em 1919, a Via Férrea, em 1920, e a própria Cia. Carris, encampada [27] pela gestão do insuspeito Ildo Meneghetti, em 1953, que de comunista não tem nada. Ou seja, a medida de Brizola também não foi uma novidade total, tampouco expressão de um “nacionalismo radical” antiimperialista. Campezatto, presidente do sindicato dos eletricistas, narrou o processo da seguinte maneira: “Quando o Sr. Leonel Brizola assumiu o Estado, a encampação já estava definida, era só um ato finalizador, era um ato legal final. Precisava apenas chegar uma autoridade com independência suficiente e vontade política para fazer a encampação, porque, para a consciência popular, para a consciência pública, já estava claro que a empresa era podre e devia ser tirada daqui” [28].

Para finalizar, a gestão da CEEE, sob comando do governo Brizola, ao receber os funcionários da CEERG tentou enquadrá-los num regime jurídico onde o sindicato perderia a sua “qualidade legal para representar os interesses da classe”. Ou seja, tentaram literalmente acabar com o sindicato, uma linha alentada pelo governo Brizola, demonstrando caráter autoritário e intervencionista. Com ameaça de greve e mobilização forte por parte da categoria, conseguiram barrar esse ataque bonapartista. Para Brizola, o importante é a força do Estado burguês e sua capacidade de gerir a sociedade, administrar dissensos, liderar a nação, o progresso, a prosperidade a todos, etc., como se pairasse por cima das classes e seus interesses, mas favorecendo interesses burgueses. Eventualmente, se apoia nas massas para atingir seus objetivos, impulsionando mobilizações que sirvam aos seus interesses, mas sempre controlando e traçando limites. Na medida em que as autoridades não encontravam nenhuma saída para os problemas do país, as lutas sociais vão se acirrar e entrar em rota de colisão com os governos, incluindo o de Leonel Brizola.

Parte 3 - Greves e revoltas operárias em Porto Alegre e a luta contra o golpe em 1961

A vitória parcial da luta contra a carestia de vida, simbolizada pelo congelamento de preços a nível nacional, e a conquista da encampação da CEERG deram novo impulso à classe trabalhadora gaúcha, com destaque para Porto Alegre. Na primeira metade de 1960 ocorreram duas greves gerais no estado, com forte adesão de distintas categorias e uma coordenação intersetorial que fez o governo Brizola sentir na nuca o bafo das massas trabalhadoras prontas para lutar pelos seus direitos. Esse novo impulso não é exclusivo da região – como desenvolvido em uma das teses fundacionais da FT [29] no Brasil, a luta de classes nesse período inaugura um processo pré-revolucionário em todo o país, com lutas sociais de dimensões inauditas no campo, nas cidades e nos quartéis, abortadas pelo golpe em 1964 e desviadas pela orientação de conciliação de classes das direções do movimento de massas, em especial ligadas ao PCB. No continente, 1959 foi o primeiro ano da revolução cubana e, anos antes, a Bolívia viveu um processo revolucionário. Não vamos desenvolver todo esse contexto da luta de classes nacional e internacional, mas é importante ressaltar que as lutas do Rio Grande do Sul não ocorreram de forma isolada, elas se inseriram nesse amplo quadro de profunda convulsão social que marcou a passagem da década de 1950 para 1960 no Brasil e na América Latina.

Para termos uma dimensão da efervescência operária que precedeu a Resistência Democrática e a Legalidade em agosto de 1961, aqui vai a lista de categorias que cruzou os braços ao menos uma vez nos meses anteriores e participaram ativamente de alguma forma das greves gerais e dos movimentos reivindicatórios: eletricitários, ferroviários, tranviários (dos bondes da Carris), telefônicos, gráficos, trabalhadores da administração da CEEE (pela primeira vez), moleiros, trabalhadores de postos de gasolina, bancários, metalúrgicos, trabalhadores marítimos, estivadores, portuários, funcionários públicos do município e do estado, aeroviários, comerciários, trabalhadores da construção civil e mesmo o movimento estudantil se engajou nas lidas. Quando explode o movimento de resistência ao golpe, como veremos a seguir, artistas, intelectuais, secundaristas, movimentos de cultura, times de futebol e muitos outros setores da sociedade se somam. Mas antes é preciso compreender o caminho que a classe operária pavimentou até agosto de 1961.

Quando dispomos as categorias assim em lista, parece que estamos trabalhando com meras somas aritméticas, como se cada categoria apenas adicionasse um número a mais numa fria lista. Mas a luta de classes não é regida pela aritmética simples, há mais variáveis nas equações… a localização estratégica de cada categoria, por exemplo, e as direções dos sujeitos em ação são decisivas. Peguemos os eletricitários, tranviários e ferroviários como exemplo. A primeira greve geral sob o governo Brizola teve início em 12 de março de 1960, e a adesão não foi tão grande assim, numericamente, em todo o estado. Mas às 24 horas do dia 11, os bondes da Carris já estavam sendo paralisados. Na Usina do Gasômetro, os trabalhadores desligavam as chaves dos painéis de controle que mantinha a iluminação pública acesa, depois os bondes, e assim por diante, afetando quase todo o comércio e atividade industrial da cidade. Nos primeiros minutos do dia 12 a cidade estava parcialmente sem luz e sem transporte público, graças à força de duas categorias que possuem o potencial de abalar fortemente a economia. Santa Maria era conhecida como a ‘república dos ferroviários’, pois concentrava boa parte das linhas de trem que ligava o estado de uma ponta a outra. Antes do amanhecer, todas as estações do estado já estavam paralisadas. Ou seja, numericamente não houve uma adesão tão grande de categorias, mas o impacto foi forte devido à localização estratégica de cada uma. Essa greve de março só não foi mais forte pois as direções do CTG se recusaram a construí-la de fato. As reivindicações eram sobretudo ligadas à luta contra a carestia de vida, em defesa de direitos (como previdenciário, abono salarial, etc.) e contra as repressões que os sindicatos e trabalhadores vinham sofrendo (um dos principais exemplos era o dos eletricitários, que seguia sua luta contra a administração brizolista que desejava aniquilar a organização sindical). Ou seja, reivindicações em grande medida mais econômicas. Mas o saldo político foi importante, pois foi criada a Intersindical da CAPFESP, com peso dos ferroviários, telefônicos, eletricitários e tranviários da Carris, coordenação entre categorias que se alçou como alternativa à pelega CTG. Apesar de algumas reivindicações terem sido conquistadas, a situação seguia sufocante para os trabalhadores e as bases pressionavam as direções a se mobilizar [30].

A segunda greve geral teve ainda mais adesão e abrangeu todo o estado e foi coordenada pela Intersindical, o Comando Sindical de Porto Alegre e pela direção do CTG. As reivindicações específicas de cada categoria se uniam a demandas unificadas de todos os trabalhadores, como a luta contra a carestia, a defesa de uma lei da previdência social, contra a repressão aos sindicatos e em defesa do direito de greve que era sistematicamente desrespeitado pelo Estado, e outras. Ainda persistiam muitas ilusões no governo de Brizola, alentadas pelas direções, mas mesmo assim algumas categorias tinham mais consciência da importância de uma mobilização independente, como foi o caso dos gráficos. Em agosto de 1960, explicitando as razões da entrada na greve, o jornal do sindicato dizia que lutavam contra a “inépcia, inacapacidade, demagogia e traição dos governantes e legisladores às suas próprias promessas de candidato”, citaram o “governo municipal” e em seguida afirmaram: “Fizemos greve contra o governo do Estado, por ter se afastado totalmente da plataforma popular, democrática e nacionalista com que foi eleito” [31].

Ou seja, as lutas em curso e os embates com as patronais e o governo ajudavam a gerar avanços na consciência de determinados setores da classe, apesar das direções do PTB e do PCB. Brizola chegou a ser vaiado em uma assembleia de eletricitários, pois as relações com a empresa, cuja administração era de responsabilidade do governo estadual, iam de mal a pior, com inúmeras tentativas de tentar aniquilar o movimento de base dos trabalhadores e dividir os ex-funcionários da CEERG e os antigos da CEEE. Wilson Vargas, um dos principais nomes do PTB, atacou a proposta de greve dos eletricitários, o que motivou a categoria a aprovar moção que, segundo Santos, “simboliza o rompimento com o governo trabalhista” [32]. Nesse ínterim, não eram poucos os servidores do estado descontentes com a gestão de Brizola, já que o governo ficou três meses atrasando o salário dos funcionalismo público. A verdade é que, com a efervescência operária na cidade, as greves gerais, uma renovada liderança sindical mais ligada às bases dos trabalhadores, direções tradicionais sendo contestadas, o governo Brizola não podia mais fazer o que o trabalhismo sempre fez: chamar as burocracias sindicais, falar o que tinha que falar, ouvir o que tinha que ouvir, e chegar em acordos simples que não mexiam nos interesses dos grandes proprietários e tampouco resolviam os problemas de fundo dos trabalhadores. Os conflitos entre a classe operária e o governo Brizola cresciam. Com as duas greves gerais, o movimento operário estava moralizado e fortalecido. O clima de luta contagiou outras categorias, que fizeram greve posteriormente, como é o caso dos moleiros que chegaram a afastar o presidente do sindicato do comando de greve em uma greve “selvagem” [33], uma vez que estava mancomunado com a patronal.

A última greve antes da renúncia de Jânio Quadros foi a histórica greve da Carris que parou a cidade por 8 dias, conquistou parte de suas reivindicações e sacudiu a cidade a ponto de o Comando Sindical de Porto Alegre aprovar, em assembleia ocorrida em 1º de agosto dentro do refeitório estudantil da UFRGS, uma greve geral em solidariedade à Carris. A motivação principal era reajuste salarial, mas rapidamente adquiriu motivações políticas em defesa da organização sindical e do direito de greve na medida em que a prefeitura atacava o movimento, e também da defesa do patrimônio público, já que cresciam os boatos da prefeitura de Loureiro da Silva querer privatizar a empresa. A fim de ganhar a população ao seu lado, os grevistas montaram, junto de suas famílias, um quartel general da greve no Parque da Redenção e batizaram-no de Sierra Maestra [34], em homenagem à cordilheira cubana que simbolizava a revolução. Isso tudo ocorreu às portas de um dos maiores movimentos operários e populares da história do Rio Grande do Sul e, diga-se de passagem, do país. Ou seja, é impossível descolar o que foi a Resistência Democrática e a campanha da Legalidade desses anos de convulsão social em que a classe operária gaúcha deu incontáveis mostras de sua força e potencial disruptivo. O gigante proletário arregaçava suas mangas.

Parte 4 - Batalhões operários, comitês populares, a praça da Matriz e o Palácio Piratini - a resistência contra o golpe de 1961

Os mitos envoltos na figura de Brizola adquirem grau de intensidade máxima quando se trata do episódio da Legalidade. “O governo representou a última revolução brasileira” [35], “Brizola tinha mais de 100 mil pessoas armadas”, “foi líder do maior levante popular armado dos últimos 80 anos da nossa história” [36], apenas para ficar com algumas das definições mais exaltadas. Além dessas, a narrativa quase consensual é a de que Brizola deu início ao movimento de resistência e liderou-o bravamente do começo ao fim. Veremos como a história não é bem assim. Uma análise detida sobre os fatos, com atenção à luta de classes e ao processo em seu desenvolvimento complexo e repleto de contradições, revela como na verdade foi a classe trabalhadora porto-alegrense que deu início ao movimento que veio a ser chamado de Resistência Democrática, como Brizola foi empurrado pelas massas que se levantaram antes de qualquer chamado do governador, como Brizola fez de tudo para impedir que a vanguarda de trabalhadores pudesse dirigir o processo e bloqueou as tentativas de greve geral que alguns setores do movimento operário tentaram erguer. Com o golpe institucional consolidado (o parlamentarismo foi aprovado e o presidente passou a dividir o poder com um primeiro-ministro), Brizola trabalhou para desmobilizar as tentativas de seguir o movimento. As armas nunca chegaram, de fato, ao povo e aos trabalhadores – elas ficaram restritas ao corpo militar, assessores próximos e pessoas de estrita confiança. Os trabalhadores ficaram a ver navios.

Ao mesmo tempo, não devemos reduzir o papel de Brizola nesse episódio. Foi um líder inconteste que, se não armou de fato a população, cumpriu papel importante em cindir as forças armadas e arrebanhar, para o lado da posse de Jango, o maior exército do país naquele momento, o IIIº Exército. Em poucos dias, atuou para transformar a praça da Matriz, no centro de Porto Alegre, no quartel general da resistência. Brizola atuou como verdadeiro caudilho do processo, apoiado em setores das forças armadas, da Brigada Militar e também nas massas trabalhadoras e populares a fim de, por um lado, barrar o golpe e fortalecer a aliança nacional-desenvolvimentista contra o bloco udenista liberal no cenário político nacional e, por outro, impedir a emergência de uma força operária e popular independente que pudesse superar a conciliação de classes que o trabalhismo e o pecebismo propunham e apontar um outro caminho para as lutas sociais que se multiplicavam no país. Um líder burguês como o país ainda não tinha visto.

Leituras rasas e superficiais o colocam como a grande liderança das luzes contra as trevas, do povo contra as oligarquias, e fantasias do tipo. Uma análise marxista do processo enxerga as classes em luta e os sujeitos disputando linhas de acordo com seus interesses políticos próprios e das classes as quais representam ou buscam representar. Nesse sentido, Brizola representou fielmente, talvez de forma mais radical do que qualquer outro representante na história recente, uma política burguesa em defesa do regime político burguês e da continuidade do projeto nacional-desenvolvimentista que o PTB representava e o PCB apoiava. Brizola representava uma variante singular do que podemos chamar de bonapartismo sui generis, fenômeno que Trótski descreve ao falar de lideranças/governos burgueses de países de desenvolvimento capitalista atrasado que podem “governar ou bem converter-se em instrumento do capital estrangeiro e submeter o proletariado com as cadeias de uma ditadura militar, ou bem manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões” [37]. Brizola filia-se a essa segunda variante do bonapartismo sui generis, o que manobra com o proletariado, fazendo-lhe concessões, utilizando-o de massa de manobra para angariar melhores margens de negociação com o imperialismo, “oscilando entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado” [38].

A estatização da CEERG e a expropriação da fazenda Sarandi e Banhado do Colégio se inserem no bojo dessas "concessões". Trótski separa essas linhas para se referir ao México de Lázaro Cárdenas, mas as semelhanças são cristalinas e a comparação cabe como uma luva. Os pressupostos teóricos são o desenvolvimento desigual e combinado e a teoria da revolução permanente, em que as classes dominantes de países de desenvolvimento capitalista atrasado, como o México e o Brasil, não são capazes de levar tarefas democráticas até o final graças a essa condição esmagada entre o imperialismo e o proletariado. Por isso, para governar, a burguesia nacional oscila entre a tirania e a concessão, entre as armas e as palavras, entre a ditadura sanguinária dos militares e as promessas de Jango e Brizola. Mas, como diz Lênin, não devemos acreditar em palavras. Brizola está mais próximo de um Bonaparte dos pampas do que de um Robespierre tropical que a conciliação de classes tanto procurou, e ainda procura, na história nacional. Daí a necessidade de se construir uma ferramenta política própria do proletariado, um partido independente de qualquer variante burguesa.

A crise estoura com a renúncia do presidente Jânio Quadros, presidente que havia sido eleito pelo bloco direitista do PTN/PDC/UDN/PR/PL. Ele toma posse em 31 de janeiro de 1961 e, nos sete meses em que governou o Brasil, operou um jogo duplo em que tentou agradar os setores petebistas e pecebistas com uma política externa com traços de independência do imperialismo norte-americano (comprometeu-se com o restabelecimento de relações diplomáticas com a URSS e China, se negou a apoiar bloqueio econômico dos EUA a Cuba, homenageou Che Guevara com a Ordem Cruzeiro do Sul, etc.) e ao mesmo tempo implementou plano de estabilização ortodoxo exigido pelo FMI, desvalorizou a moeda para facilitar exportações e investimentos estrangeiros e liberalizou o regime cambial [39]. Ou seja, um jogo duplo com medidas liberais e traços de independência externa a fim de tentar se colocar por cima dos conflitos que não cessavam no país e agradar gregos e troianos. Suas medidas foram infrutíferas e a situação seguiu uma polarização sem soluções fáceis. Jânio renuncia via pitoresco bilhete enviado ao Congresso Nacional alegando que “forças terríveis levantam-se contra” ele. Um pastiche da carta de suicídio de Vargas. Seu vice, João Goulart, cunhado de Brizola, estava em viagem à China e só voltaria dias depois, o que acelerou as movimentações golpistas. A cúpula militar anunciava à boca miúda que não aceitariam um presidente que abraça Mao Tse-tung. A intenção de Jânio Quadros, apesar de nunca ter revelado expressamente isso, era de que seria recebido em São Paulo por massas eufóricas que o levariam de volta ao poder, a exemplo da convulsão de massas que ocorreu quando Vargas se suicidou [40], a fim de governar apoiado nas massas e legitimado por Forças Armadas que não queriam Jango. Mas isso nunca ocorreu, os militares não defenderam seu retorno e as massas se levantaram não para ampará-lo, mas para resistir às conspirações da caserna e do Congresso Nacional. O Rio Grande do Sul foi o centro dessa resistência.

Brizola chegava ao terceiro ano de governo com enormes dificuldades, queixando-se de uma “onda de reclamatórias” e comentando como “todos os apelos de paciência realizados aos trabalhadores do setor privado caíam no vazio”, e os funcionários públicos “não compreendiam e sabotavam os esforços do governo para a racionalização da máquina pública”. [41] Seu plano de industrialização do estado e desenvolvimentismo fracassaram e, nesse momento, entrava em rota de colisão com a base social que o elegeu. Esse desgaste ocorria na medida em que a crise social no país e sua consequente polarização diminuíam cada vez mais as margens de manobra da conciliação, reduziam a capacidade dos governos em ofertar certas concessões aos trabalhadores e ao mesmo tempo manter os lucros capitalistas. Os limites do projeto nacional-desenvolvimentismo estavam se esgarçando e a polarização crescia. A opção política de Brizola, portanto, foi se aproximar do governo de Jânio Quadros, dirigido pelo bloco udenista, a fim de obter financiamentos federais [42]. Nesse processo de aproximação, o governador convida Jânio Quadros para transferir, durante uma semana, o governo federal para a capital gaúcha. Preparam um grenal [43] para Jânio assistir, vinho do porto todas as noites em seu quarto, higienização da cidade, avenidas pintadas de branco, providências mil para atender ao presidente. Ele chegaria no 25 de agosto e todos os preparativos estavam feitos. Ao mesmo tempo, a vinda de Jânio Quadros e todo o clima de luta na cidade também gerou movimentação do outro lado. O Comando Sindical de Porto Alegre planejou convocar uma assembleia popular para entregar reivindicações a Jânio, Francisco Julião, advogado que se tornou uma das principais lideranças das Ligas Camponesas [44], estava em Porto Alegre a convite de estudantes da UFRGS na ocasião do 8º Congresso Nacional de Agronomia. Isso tudo na cidade que havia protagonizado incansáveis lutas operárias e populares nos últimos meses. Quando Jânio Quadros renunciou, Brizola encontrava-se numa solenidade do dia Dia do Soldado, no Parque da Redenção, ao lado do chefe do IIIº Exército, o general José Machado Lopes.

O movimento de resistência durou poucos dias, na verdade. Jânio Quadros renuncia no dia 25 de agosto e Jango é empossado no dia 7 de setembro, mas já no dia 1º de setembro ele havia pousado em Porto Alegre e deixado claro que sua intenção não era resistir ao golpe, e sim negociar a transição parlamentarista. O auge da mobilização, portanto, durou cerca de uma semana, mas foi o suficiente para transformar a capital gaúcha em uma panela de pressão.

A renúncia havia ocorrido pela parte da manhã do dia 25, mas só foi confirmada pelo Congresso Nacional, com a cerimônia de posse do deputado federal Ranieri Mazzilli na presidência da república, às 16h45. Nesse ínterim, a alta cúpula militar já mexia os pauzinhos para impedir que, quando Jango voltasse da China, pudesse ser empossado como presidente. Os ministros militares, almirante Sílvio Heck (Marinha), brigadeiro Gabriel Grun Moss (Aeronáutica) e general Odylio Denys (Exército), se aliaram ao bloco udenista do Congresso para desferir o golpe e contavam com o apoio de parte do oficialato, mas não inteiro. Brizola conta que conversou com o general comandante do IIIº exército, José Machado Lopes, que confirmou ao governador que estaria com o alto comando das forças armadas contra o retorno de João Goulart: “Bom, bom governador, eu sou soldado e fico com exército” [45], teria dito Lopes. A ordem de Denys a Machado Lopes era a de prender Goulart assim que pisasse em solo brasileiro. Brizola então tenta costurar apoio entre outros setores do exército.

Enquanto isso, em Porto Alegre, o PCB promovia uma reunião emergencial e decidiram organizar um ato na própria tarde do dia 25 e chamar uma greve geral para o dia seguinte [46]. No final da tarde, mais de 5 mil trabalhadores e estudantes ocuparam o Largo da Prefeitura, selaram compromisso de constituir uma “unidade operária estudantil” e marcharam ao Piratini. Na Assembleia Legislativa foi aprovado apoio unânime à Constituição Federal, que previa a legalidade da posse de João Goulart no caso de renúncia do presidente. Às 23 horas, Brizola se depara com uma multidão em frente ao Palácio Piratini e declara que “o Rio Grande do Sul não pactuará com qualquer golpe contra as instituições e a liberdade pública”.

Sobre esse início de mobilização, vale trazer o relato de Jorge Alberto Campezatto, que foi presidente do sindicato dos eletricitários e do partido comunista na época, feito a João Marcelo Santos: “Dizer que o Sr. Leonel Brizola fez a Legalidade não foi assim. Como começou? Nós tomamos conhecimento, o movimento sindical gaúcho e o movimento estudantil que era muito forte no estado, a federação dos estudantes universitários, os diretórios acadêmicos, mais os sindicatos, as entidades sindicais horizontais, a Intersindical que eu presidia, o Comando Sindical de Porto Alegre, os sindicatos mais fortes, que faziam parte destas entidades, quando tomaram conhecimento que o golpe estava escancarado, de imediato nos mobilizamos. Na avenida Borges de Medeiros, com a esquina da Andrade Neves, bem na desembocadura da Av. Salgado Filho, tinha o que eles chamavam de Mata-borrão, era um pavilhão de exposições, nós nos adornamos do Mata-borrão e estabelecemos ali o Movimento da Resistência Democrática. Partimos para pressionar o governo do Estado. Passamos a fazer concentração no Palácio Piratini, para que o governo se decidisse, tomasse uma decisão. Houve até um incidente, o companheiro Fúlvio Petrarco, companheiro do Partido Socialista, e mais outro oficial reformado do exército, Pery Cunha, foram para a frente do Palácio, subiram em cima de um caminhão e com um alto falante passaram a pedir para que o governo do Estado se manifestasse, tomasse posição a favor do respeito à Constituição, pela legalidade democrática. Foi aí, já no segundo dia, que o Sr. Leonel Brizola primeiro falou que o Estado estava à disposição do Sr. Jânio Quadros, que ele viesse para cá, depois é que veio instituir a famosa Cadeia da Legalidade, dirigida pela Rádio Guaíba. Tanto que, há dois anos, fui procurado por um pesquisador que estava escrevendo sobre a legalidade democrática. Eu respondi: “Bom, você veio procurar a pessoa errada; sobre o movimento da legalidade eu sou a pessoa errada; eu sou anterior, sou do movimento da Resistência Democrática, que popularmente começou pelos sindicatos, os trabalhadores, os estudantes e o povo em geral, pois foram eles que começaram a luta aí, foi aí, no Mata-borrão, era um mar de gente em volta dele, sempre tinha em torno de 500 a 600 pessoas”. Essas são questões que, até hoje, discuto junto com meus companheiros. [47]

Um outro líder sindical da época, Ony Nogueira, dirigente do Sindicato dos Consertadores de Carga e Descarga e militante do PTB, disse algo semelhante: “De uma certa forma, Leonel Brizola foi forçado a tomar aquela decisão, ou ficaria para trás, ficaria no vagão de trás.” [48] Brizola aproveitou a situação para se alçar como liderança do processo e deixar todo o desgaste de seu governo para segundo plano, ao mesmo tempo catapultar sua figura no plano da política nacional. Como uma sábia raposa, não deixou nada sair de seu controle e controlou o movimento do começo ao fim, com enorme auxílio das direções sindicais e estudantis ligadas ao PCB que em nenhum momento se propuseram a disputar a direção do processo com uma política alternativa. Pelo contrário, apesar de ter defendido o início de uma greve geral uma vez na primeira reunião com a burocracia sindical, a direção do PCB subordinou a luta em seu conjunto à direção burguesa de Leonel Brizola e do PTB.

Em menos de três dias, a situação escalou muito rapidamente. Em reunião fechada com algumas lideranças sindicais, no dia 26, o PCB propôs uma greve geral no país a ser iniciada pelo Rio Grande do Sul, mas a proposta foi derrotada e decidiram criar o Comando Sindical Unificado e comitês de resistência democrática. O prédio do Mata-borrão, na Borges de Medeiros com a Salgado Filho (onde hoje se encontra o Tudo Fácil), virou o quartel general dos comitês de Resistência Democrática, como foram nomeados. Em apenas dois dias, o comitê já tinha mais de 30 mil pessoas alistadas. Os nomes ligados ao PCB eram os setores mais dinâmicos da construção do comitê (João Amazonas, um dos principais dirigentes do PCB nacionalmente e que, no ano seguinte, formaria o racha que deu origem ao PCdoB, no momento encontrava-se no estado e era um dos principais organizadores dos comitês).

Nenhuma arma foi entregue pelo governo de Brizola aos líderes dos comitês que se organizavam no Mata-borrão, mas eles chegaram a produzir coquetéis molotov, outros levaram armas que possuíam em casa. A Praça da Matriz, a duas quadras do Mata-borrão, era o ponto de vigília permanente e onde o Palácio do Piratini foi se transformando, pouco a pouco, em cidadela guarnecida por arames farpados, armamentos da Brigada Militar, metralhadoras antiaéreas colocadas sobre os edifícios vizinhos e na torre da catedral e barricadas espalhadas com sacos de areia. Os civis do palácio do Piratini, como assessores próximos e pessoas de confiança do governador, receberam revólveres 38 da Taurus, mas a população e os membros dos comitês não. A Brigada Militar distribuiu mosquetões e submetralhadoras aos soldados e cabos, carabinas 30 aos sargentos e oficiais com pistolas Colt 45. A Brigada Militar do Rio Grande do Sul, diferentemente da maior parte das polícias do país, estava estruturada como unidade de combate militar. Cabe lembrar que a Brigada entrou em peso na guerra em 1932 contra a oligarquia paulista e, “mesmo diminuída em seu poder desde o golpe getulista de 1937, a BM mantinha ainda seu perfil de força militar”. [49] O marechal Henrique Teixeira Lott, que havia disputado as eleições de 1960 pelo bloco PTB/PSD contra Jânio Quadros, pousou em Porto Alegre, indicando que uma ala do exército iria aderir ao movimento em defesa de Jango.

As escolas e bancos tiveram as atividades interrompidas, os hospitais entraram em alerta e, em poucos dias, mais da metade da cidade esteve mobilizada de alguma forma, direta ou indiretamente, com o movimento. Para se ter uma ideia da dimensão da escalada, no dia 28 de agosto, no Comitê Central da Resistência Democrática, as listas chegaram a 100 mil nomes inscritos. A adesão era ampla e ia de estudantes da UFRGS e sindicalistas comunistas até membros dos Centros de Tradição Gaúcha e os times de futebol Grêmio e Internacional, passando por artistas, intelectuais, secundaristas, jornalistas, cúria do estado e associações variadas. Foi criado o Hino da Legalidade, foram distribuídos jornais da resistência produzidos pelos próprios comitês, pululavam comitês pelos bairros, categorias, associações, etc. Mas a classe operária claramente possuía um destaque no processo, apesar das direções sindicais terem barrado a proposta de greve geral desde o início.

Enquanto a Cadeira da Legalidade [50] ia sendo instalada, os batalhões operários iam desfilando pela Praça da Matriz, exibindo toda a força moral acumulada das lutas dos anos anteriores. Santos descreve da seguinte forma: “Os tranviários foram os primeiros: em colunas e com o seu fardamento parecido com os de soldados, marchavam e faziam exercício de ordem unida, estimulando, nos que assistiam, a coragem para resistir. Logo depois desfilaram os portuários, com o Batalhão Praiano, portando o estandarte da União da Orla Marítima e comandado pelo estivador Her Agapito da Luz, líder sindical que já havia feito uma pequena carreira militar. Já o batalhão dos eletricitários, com a adesão de todos os associados, faziam o trajeto da Praça da Matriz à Usina do Gasômetro. Em desfile e com uma enorme faixa onde se lia “TRABALHADORES DA ENERGIA LUTAM PELA DEMOCRACIA”. O desfile seguia para a Usina do Gasômetro, lugar considerado estratégico, para não prejudicar o esquema de vigilância. Durante a noite, a atenção aumentava pois, a qualquer momento, os eletricitários poderiam receber ordens para desligar as luzes da cidade, caso o Palácio Piratini fosse bombardeado. Os artistas e intelectuais, mobilizados em torno do Teatro de Equipe, engajaram-se imediatamente impulsionando a criação de comitês de resistência nas principais cidades. Os estudantes, em greve geral decretada pela UNE, que havia transferido sua sede nacional para Porto Alegre, transformaram o Restaurante Universitário da Federação dos Estudantes da UFRGS no abrigo do recém-criado Comando Geral da Frente Estudantil Pró-Legalidade e, juntamente com os líderes sindicais, artistas e intelectuais, passaram a organizar os batalhões estudantis [51].

Do dia 25 ao dia 27, portanto, a mobilização passou de cerca de 5 mil para mais de 100 mil em toda a cidade, com destaque para os batalhões operários auto organizados. Brizola comandava a Brigada Militar e tinha a seu lado alguns oficiais do exército. O auge da crise se deu no dia 28, quando o alto comando militar deu ordens para atacar o Piratini. O general Orlando Geisel, irmão de Ernesto Geisel que anos depois viria a ser presidente na ditadura, ordenou ao general comandante do IIIº Exército, Machado Lopes, de bombardear o Piratini e acabar com a revolta em Porto Alegre.

O ataque não foi sucedido graças à rebelião de sargentos e suboficiais da Base Aérea de Canoas [52]. O então suboficial da Aeronáutica, Caetano Angelo Vasto, conta em um relato feito décadas depois, sobre como desde o dia 25 de agosto a Base Aérea foi colocada em alerta. No dia 27, a seção de armamentos já começou a municiar os aviões Gloster Meteor F8, caça destinado ao combate e utilizado na segunda guerra mundial pelos aliados: “cada avião recebeu duas bombas de 500 libras e em seus quatro canhões Hispano Suiza foram introduzidos cartuchos de munição traçante, perfurante e explosiva de 20 milímetros.” [53] Após perceberem o que estava ocorrendo, Caetano reuniu outros cinco suboficiais e mais de uma dezena de sargentos e decidiram se rebelar contra a ordem do alto comando. Eles rapidamente desativaram o sistema elétrico dos canhões e os detonadores, travaram os cabides e sabotaram o plano que poderia iniciar uma guerra civil no país. A decisão foi unânime. Jornais na tarde do dia 29 estampavam: “Os sargentos da FAB impediram ontem o bombardeamento do palácio Piratini!”. Na praça da Matriz e nos arredores a situação era de mobilização permanente e enorme apreensão. No Mata-borrão foi organizado o plantão de socorro, com médicos, enfermeiros e voluntários, onde eram realizados exames para atestar se estavam aptos para o combate. Matéria do Correio do Povo na época mostrava um grupo de mães, carregando seus filhos, prostradas em frente ao palácio dizendo vamos ver se “têm coragem de bombardear nossos filhinhos”. [54]

Os batalhões operários carregavam faixas, cartazes e bandeiras de seus sindicatos. Mães na frente dos quartéis se despediam de seus filhos. Tudo isso com o palácio sitiado. Os tranviários da Carris colocaram a frota de bondes para bloquear o acesso dos tanques à Praça da Matriz. No próprio dia 28, a situação ainda tensa, Machado Lopes vai até o centro de Porto Alegre durante a tarde, caminha então até o palácio, se reúne com Brizola e saem os dois juntos na sacada deixando claro que o IIIº Exército, o mais forte e mais equipado do país, não havia aderido aos comandos de bombardeio e ataque ao Piratini e em defesa da posse de Goulart. É sabido também o papel que o comandante da 3ª Divisão de Infantaria, de Santa Maria, Peri Bevilacqua [55], e Oromar Osório, o comandante da Divisão de Cavalaria, de Santiago, cumpriram ao ajudar a convencer Machado Lopes a cindir as forças armadas.

No resto do país a mobilização se espalhou como rastilho de pólvora. "No Rio de Janeiro, São Paulo e outros estados, unidades militares rebelaram-se e subjugaram oficiais. O governador Mauro Borges, de Goiás, arregimentou civis e militares para a luta. Greves irromperam nas principais cidades brasileiras (…) e a maioria do Congresso não acolheu o pedido dos ministros militares para que votassem o impedimento de Goulart.” [56]" No Rio de Janeiro e na Bahia rapidamente se consolida uma greve geral; No Rio, chama atenção o forte grau de espontaneidade, já que Carlos Lacerda deflagrou repressão sobre o movimento de massas. O país estava em polvorosa e as classes dominantes tiveram que buscar uma outra solução, que não a da força. Ao menos não nesse momento…

Um outro elemento, também decisivo para determinar o recuo do golpismo naquele momento, está relacionado com a situação internacional e o peso do imperialismo norte-americano. Esse elemento é historicamente secundarizado pela historiografia burguesa e narrativas em geral, mas de fundamental importância para a compreensão dos fatos. No calor dos acontecimentos, o imperialismo norte-americano ficou dividido entre uma posição a favor do golpe de Estado contra Goulart, defendida pelo Pentágono e pela CIA, e uma posição contrária a um golpe de força que pudesse forçar uma guerra civil e dissolver instituições brasileiras, como a que veio a ocorrer em 1964. O almirante Sílvio Heck, um dos três comandantes das Forças Armadas que conspiraram contra Goulart, contou a Moniz Bandeira em entrevista que os ministros militares receberam um informe dos EUA dizendo que o presidente John F. Kennedy “suspenderia o apoio financeiro ao Brasil caso houvesse ruptura da legalidade”. O pretexto era a decisão da Conferência de Punta del Este, na qual os EUA não forneceriam auxílio financeiro a regimes políticos ditatoriais, sem Poder Legislativo ou eleições periódicas. A intenção evidentemente era atingir Cuba, mas caso os militares tomassem o poder, ela atingiria o Brasil também. Diante da enorme mobilização operária e popular, da cisão nas forças armadas e da ameaça de suspensão do apoio por parte do imperialismo norte-americano, os ministros militares e as classes proprietárias do país tiveram que recuar naquele momento. Goulart, ao invés de se apoiar nas massas para seguir o enfrentamento com os militares e a direita, preferiu firmar acordo com o golpismo e deu as costas para a mobilização. Apesar de ser contra essa linha, Brizola o seguiu. Assim como as direções dos movimentos de massas, como o PTB e o próprio PCB. As massas, dispostas em seguir a luta contra o golpe, estavam à esquerda de suas direções.

Quatro dias depois, no 1º de setembro, João Goulart pisava em solo brasileiro já decidido em aceitar a “solução parlamentarista”, que na verdade consistia em golpe institucional a fim de reduzir os poderes do presidente e ampliar os do Congresso. Antes de chegar ao Brasil, Goulart parou em Montevidéu, onde o acordo já estava em curso, de onde se dirigiu ao Brasil. Pousou em Porto Alegre, dirigiu-se à Praça da Matriz e foi recebido por dezenas de milhares de pessoas em polvorosa. A euforia havia de se transformar rapidamente em amarga decepção. O escritor Alcy Cheuiche narra da seguinte forma a chegada de Goulart: “Jango abanou para o povo e foi uma ovação. Um delírio de aplausos. E ficamos todos à espera do discurso. Mas ele nada disse. Virou as costas ao povo e sumiu dentro do Palácio. São coisas que a gente até nem gosta de lembrar. O homem tão esperado não voltou mais à sacada. E o povo foi-se dispersando. Já muitos falando no conchavo, na sujeira que fora tramada em Montevidéu. [57]

No porão da Legalidade, os jornalistas fizeram um corredor polonês e ficaram de costas para o presidente. Os dias subsequentes foram de desencanto. A maior parte da população nutria enormes ilusões em Goulart e em Brizola, em grande medida alimentadas pelas direções do PCB que em nenhum momento se propôs a semear desconfiança nas lideranças burguesas e apresentar um caminho alternativo, apesar das inúmeras demonstrações de luta de uma classe trabalhadora que avançava de consciência. Santos conta como a multidão não queria desmobilizar e passou a exigir rumos para o movimento. Ou seja, a base da mobilização queria seguir a luta contra o golpismo, mas as direções já estavam capitulando, em especial Goulart, a quem Brizola, o PTB e o PCB se subordinavam. Foi erguida uma enorme faixa na Praça da Matriz com os dizeres: “Exigimos a definição do Sr. João Goulart”. E Santos continua: “à medida que as horas iam passando confirma-se a suspeita: a resistência havia sido traída. Os mais exaltados começaram a retirar os cartazes, as faixas e tudo o que simbolizasse apoio a Jango. Em uma única voz a população gritava Jango! Jango! Jango! Silêncio. A sacada do Palácio Piratini permaneceu vazia. Ouve-se uma voz: vamos queimar os cartazes! Imediatamente inicia-se a queima de cartazes, de faixas e de tudo que encontrava-se na Praça da Matriz que representasse apoio a João Goulart.”

Jango deixa a capital gaúcha no 4 de setembro junto de Brizola, que não teve acordo com a saída parlamentarista e propôs ao cunhado que marchasse à capital federal com o IIIº Exército, fechasse o Congresso Nacional e convocasse uma Constituinte em 60 dias [58]. Segundo Jango, em entrevista para Bandeira, ele reconhecia as reais condições para tomar o governo como “chefe de uma revolução. Dispunha de exército, milícias estaduais e o povo estava ao seu lado. Mas, ao contrário de Quadros, não quis a ditadura” [59].

A solução de força de Brizola, a bem dizer, se limitou a quatro paredes e não propunha avançar em um caminho revolucionário de enfrentamento às classes proprietárias, ao latifúndio, ao Estado ou mesmo ao imperialismo - e sim de reformular o regime político e de estabilizá-lo sob o signo do respeito à Constituição. Estrategicamente apresentava-se, assim, suas convicções nacionalistas de aliança com a burguesia nacional em prol do progresso capitalista e desenvolvimentismo. Aqui cabe vermos como a postura de Brizola, ao longo das duas semanas de mobilização em Porto Alegre, sempre foi a de um caudilho que controlava o movimento de cima. A transmissão radiofônica se transformou na mesa onde Brizola despachava as orientações do movimento e a sacada do Piratini, o púlpito de onde o caudilho se dirigia às massas. Brizola nunca permitiu que um trabalhador, alguma liderança sindical ou mesmo algum estudante pudesse falar na sacada. Essa era reservada aos generais, alguns poucos políticos e aos jornalistas.

Como Santos descreve, “a primeira [forma de controlar os rumos do movimento], e talvez mais eficaz tentativa, foi circunscrever o máximo possível a participação dos trabalhadores ao papel de “platéia” (…). Na visão do Palácio Piratini, era preciso impedir que o movimento operário extrapolasse além do permitido. Isso foi possível através das lideranças sindicais petebistas que, obedecendo ordens, inviabilizaram, permanentemente, a eclosão de uma greve geral no Estado. Uma greve geral nos dias da Resistência Democrática - proposta das lideranças sindicais comunistas -, certamente colocaria o palácio e a praça em equivalência”. Apesar do PCB ter feito a proposta de greve geral no início do movimento, durante a reunião entre lideranças sindicais, depois disso não ergueu mais essa bandeira e não travou combate decidido para erguer uma voz alternativa. No final das contas, o PCB seguiu sua orientação etapista, de aliança com a burguesia nacional (cuja fração tinha em Goulart e em Brizola suas representações), e não se indispôs com o governo do estado. O movimento minguou dias depois, com bastante ajuda do próprio Brizola. No dia 6 de setembro foi organizada uma reunião com as lideranças sindicais para realizar enorme mobilização no dia 7, com desfile dos batalhões operários, não desmobilizar os comitês, tornar o Mata-borrão o quartel general do Comando Sindical Unificado e outras medidas. No próprio dia 7, antes do ato, Brizola visitou o Mata-borrão junto do general Machado Lopes e dissuadiu-os de seguir a mobilização naquele dia e jogá-la para o longínquo dia 20 de setembro, data da Farroupilha e longe o suficiente para destravar os ânimos. Foi uma jogada de mestre, que corroborou para tirar do movimento sindical o controle da continuidade do movimento. Chegado o dia 20, o movimento já havia sido estrangulado.

Desde o início o programa principal do movimento de resistência democrática continha um conteúdo ambíguo. Por um lado era contra o bonapartismo golpista da direita e da caserna, por outro lado era a favor da posse de Jango, que representava os interesses de uma fração burguesa. Uma política independente nesse processo, como apontamos em uma das teses da sessão brasileira da FT, passava por: “como meio de desmascarar frente às massas os setores supostamente “nacionalistas e democráticos” da burguesia e das Forças Armadas ligados a Jango e Brizola, era necessário exigir destes que fornecessem armas para a organização das milícias populares que deveriam resistir ao golpe. Entretanto, o PCB fez exatamente o contrário. Consequente com sua linha, desde 1954, de compor uma aliança estratégica com o trabalhismo, apoiou o governo de JK e assumiu cada vez mais orgânica o programa das “reformas de base” e a estratégia de implementá-las pela via eleitoral, conquistando cada vez mais espaços no Estado burguês; além de ter atuado como “conselheiro de esquerda” do governo Jango”. E complementamos: também como conselheiro de esquerda do governo Brizola, que cumpriu o eficaz papel de governo burguês de desmobilizar as massas sublevadas no Rio Grande do Sul. Ambos, no final das contas, desviaram a energia combativa das massas para uma política de pressão “pela esquerda” ao novo governo. Com a renúncia de Jânio e certo vazio de poder no país, estavam colocadas as condições e a necessidade de “lutar por um governo provisório das organizações operárias (intersindicais combativas, CGG) e camponesas (Ligas Camponesas, Ultab) em luta”, como afirmamos em nossas teses [60]. Na situação concreta e imediata da resistência contra o golpe, estava colocado na ordem do dia a defesa de uma greve geral que pudesse alçar as organizações de classe como direção política do movimento, disputando com o Piratini, e arrastando o conjunto da população fortemente mobilizada, a fim de se enfrentar decididamente com o golpismo. A evolução de um cenário como esse poderia gerar elementos de duplo poder na região, o que apontaria um caminho distinto para as lutas sociais que se proliferavam no resto do país.

Algumas conclusões

O governo de Brizola seguiu por mais um ano e, antes do golpe em 1964, tentou nacionalizar sua figura ao se eleger deputado federal pelo estado da Guanabara. Sua trajetória teve muitas mudanças daí em diante. Tentou emplacar os “grupos dos onze” no pré-golpe, mas não foram bem sucedidos. Exilado no Uruguai, ajudou a organizar a primeira guerrilha do país no início da ditadura, a de Caparaó, no Pico da Bandeira na divisa entre MG e ES, mas fracassou. Transformou-se em um dos homens mais vigiados pela CIA em toda a América Latina enquanto estava no exílio. Conheceu a Europa e os países governados pela social-democracia na década de 1970, no que voltou ao Brasil social-democrata convicto. Seu retorno foi um transtorno à ditadura, mas conseguiu e acabou fundando o PDT após perder a sigla do PTB para a sobrinha de Vargas em uma disputa no STF. Governou o estado do Rio de Janeiro sem nunca romper com as classes dominantes. Defendeu Collor em meio ao escândalo e à crise política aberta. Foi vice de Lula na eleição de 1998, em que FHC venceu no primeiro turno, e faleceu em 2004, no Rio de Janeiro. Seus familiares e discípulos disputam seu legado a torto e à direito até hoje, da direita tradicional ao trotskismo morenista, passando pelo stalinismo, pelo trabalhismo e pelo reformismo clássico - dado que por si só escancara a ambiguidade de sua política, bem como a confusão teórica de parte das organizações de esquerda.

Sua história é ampla e com incontáveis mudanças ao longo das décadas, ora mais à direita, ora mais à esquerda, com tons mais vermelhos como em seus discursos inflamados contra a Rede Globo e as oligarquias. Mas Brizola sempre foi um representante da burguesia, de uma fração da burguesia. Mais radical, denunciando as mazelas do capitalismo e a corrupção de diversas frações das classes dominantes, com uma oratória singular capaz de incomodar muita gente do andar de cima, mas com uma política e um programa sempre restritos ao quadro da propriedade privada e do regime político democrático burguês. Mesmo a tímida, porém inédita, reforma agrária que teve início em seu governo, com as expropriações das fazendas Sarandi e Banhado do Colégio, encontram-se nesse quadro de uma política de não enfrentamento com os grandes proprietários do país (válido lembrar que Sarandi era propriedade de empresários uruguaios e não gerou tanto rebuliço no regime. A fazenda já havia sido ocupada por centenas de agricultores, já havia sido discutida antes no parlamento e o governo assinou o decreto). Ao mesmo tempo, antecipou-se a conflitos que poderiam escalar ainda mais num campo que começava a gritar “reforma agrária na lei ou na marra” Brasil afora. As expropriações das empresas estadunidenses serviam às concessões que o governo necessitava fazer a fim de manobrar com o proletariado, já que “em um país semi-colonial, o capitalismo de Estado se dá sob grande pressão do capital privado estrangeiro e de seus governos, e não pode se manter sem o apoio ativo dos trabalhadores”, como bem afirma Trótski em referência ao fenômeno do bonapartismo sui generis [61].

Cabe nos perguntarmos por que a burguesia aceitou um representante tão radical… em certos momentos da história, quando as cordas esticam e a situação polariza, as classes dominantes precisam de figuras assim a fim de conter massas que estão à esquerda de suas direções tradicionais, de massas cujas burocracias sindicais não conseguem controlar. Uma concessão tática, por parte da burguesia, visando o avanço estratégico de bloquear o caminho da revolução. O episódio da Legalidade expressa bem isso, onde o caudilho cumpriu papel basilar de impulsionar o movimento de resistência e ao mesmo tempo controlá-lo por cima, minando seu potencial de auto-organização.

O germe da conciliação de classes e a utopia da harmonia entre capital e trabalho estiveram presentes desde o início de sua carreira política. Durante o governo do RS, trabalhou para preservar boas relações com as classes possuidoras e a Igreja Católica. Sua relação com o movimento operário, como vimos, foi de tensões crescentes - primeiro com o movimento dos eletricitários, que após conquistarem a encampação da CEERG, foram atacados pela administração governamental, depois com funcionários públicos que tiveram salários atrasados e com o conjunto dos trabalhadores que iam perdendo a paciência com a crescente carestia de vida e as promessas trabalhistas caindo em descrença. A saída encontrada por Brizola foi, diante do vácuo de poder momentâneo onde nem o bloco udenista e militares nem o trabalhismo/PCB conseguiam governar, se apoiar nas massas operárias e populares para, junto de uma fração do exército e da Brigada Militar, se enfrentar contra o golpe.

Brizola conseguiu isso esmagando e sufocando qualquer possibilidade de surgir uma alternativa do próprio proletariado no movimento - o fez de forma hábil, amparado pela burocracia sindical petebista que enterrou a possibilidade de greve geral desde o início, auxiliado pelo PCB que seguiu a subordinação ao governo estadual e realçado por sua pujante e radiofônica voz da Legalidade que ecoou pelos quatro cantos do país incentivando o povo brasileiro a resistir. Como dito algumas vezes ao longo desse estudo, Brizola está mais próximo de um Bonaparte dos pampas, manobrando com o proletariado e conciliando com os donos do poder, do que com um jacobino dos trópicos, que lideraria uma revolução burguesa que o Brasil nunca teve.

A superação do brizolismo e todos os seus limites não se dará através da reivindicação de seu legado político e programático (como hoje faz organizações stalinistas, como o PCB ou Jones Manoel, ou mesmo organizações ditas trotskistas, como faz o MES/PSOL, de tradição morenista). É preciso fazer exame crítico de sua política e estratégia, compreender os limites de um programa radical burguês possui em um país de capitalismo semi-colonial, como é o Brasil, em que a burguesia não consegue levar a frente demandas democráticas da maioria da população e desenvolver um programa que de fato supere o brizolismo. Parte dele passa por, por exemplo, aproveitar a estatização de empresas imperialistas e de expropriação das fazendas para lutar por um programa de controle operário das empresas estratégicas e de avançar numa reforma agrária radical sem indenização do latifúndio. Que esse programa (que não deve se confundir com participar do governo trabalhista, tampouco virar seu conselheiro), como disse Trótski, “leve ao ataque contra todas as forças do capital e do Estado burguês”.

O episódio da Legalidade escancarou os limites do brizolismo. Enquanto as direções do movimento operária, como o PCB, buscavam se aliar a Brizola, este se aliava à ala dita nacionalista do exército, ao bispado do estado e apostava suas fichas em Goulart. Enquanto isso, Goulart negociava a saída parlamentarista com a direita tradicional e a cúpula militar, atores que já preparavam uma saída de força e três anos depois desfeririam o fatídico golpe em aliança com a Casa Branca, a CIA, a grande imprensa nacional e as classes dominantes desse país. Trata-se de uma intrincada corrente de alianças, conchavos e subordinações a qual, do ponto de vista estratégico, equivale a ceder terreno ao inimigo no campo de batalha. Do PCB à Casa Branca, essa corrente nunca se quebrou. Era preciso rompê-la e trazer o proletariado, o campesinato e a pequena-burguesia progressista para o outro lado. Um partido operário e revolucionário poderia fazer isso, ou ao menos lutar em defesa dessa linha. A necessidade de uma política de independência de classes, portanto, não é capricho ou letra morta, é, parafraseando Trótski, uma tarefa estratégica [62], indispensável para a vitória.

Era urgente naquele momento uma direção do proletariado que semeasse desconfiança no projeto desenvolvimentista, seja de fisionomia mais moderada (Jango), seja de expressão mais radical (Brizola), a fim de que o proletariado entrasse como sujeito independente. Nesse processo era preciso um partido operário e revolucionário que erguesse um programa de governo provisório das organizações operárias e camponesas com o objetivo de avançar num programa de ruptura com o capitalismo [63] e, assim, pavimentar o caminho para o triunfo da revolução socialista. Não é possível fazer o balanço de uma história que não ocorreu, mas é possível dizer que, existisse um grupo com essas ideias atuando nesses processos de luta, certamente uma vanguarda do proletariado estaria em melhores condições para construir um caminho revolucionário nos anos que seguiram. Essa escrita da história a contrapelo busca contribuir na construção desse caminho no presente.


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FOOTNOTES

[1Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil 1961-1964. Ed. Unesp, 2010.

[2Aperj, Fundo Estados. Pasta 19E. Boletim no 46, Porto Alegre, outubro de 1951. Fls. 31-37

[3“Frente Popular” foi o nome dado para a coligação entre PTB, PSP e PRP – não é exatamente a mesma “frente popular” que ocorreu em alguns países da Europa na década de 1930, mas possui semelhanças, como o aspecto de conciliação de classes. Para saber mais sobre o assunto, ver: O Programa de Transição, A Revolução Espanhola ou Aonde vai a França – três obras de Leon Trótski. Nelas, o revolucionário russo mostra como as frentes populares, com significativo peso de organizações stalinistas, social-democratas e das burocracias sindicais, serviram à burguesia para conter e/ou desviar processos revolucionários.

[4Gorender, Jacob. O combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Ed. Ática S.A. 1987. pg. 30.

[5Jones Manoel utiliza essa formulação para reivindicar o legado de Brizola e esquerdizá-lo sob a ideia de que Brizola representaria a revolução burguesa que nunca ocorreu no Brasil e que, portanto, é preciso defender o seu programa e sua política, “superando-os” e concluindo com a exótica afirmação de que “ser brizolista hoje é ser comunista”.

[6Síntese elaborada a partir da matéria publicada na Revista “O Cruzeiro”, 05 abr. 1958. In: Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp. 2022.

[7Maestri, Mario. Breve História do Rio Grande do Sul. Ed. FCM, 2ª edição, 2021. Pg. 262.

[8Ibidem. Pg. 265.

[9Ibidem

[10Skidmore, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 204.

[11Maestri, Mario. Revolução e Contra-Revolução no Brasil [1530-2018]. Porto Alegre, RS, 2019. p. 152.

[12O Correio do Povo era o principal jornal da época, e que sempre buscou representar os interesses das classes dominantes do estado. Em 1961, defendeu que Goulart não tomasse posse e em 1964 apoiou o golpe. Essa afirmação, portanto, indica como o jornal estava preocupado com os interesses da burguesia industrial rio-grandense.

[13Correio do Povo, Porto Alegre, 12 de novembro de 1958. In: Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 35.

[14Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022.

[15Correio do Povo, Porto Alegre, 28 de out. 1958.

[16Não é casual que, ao estudar a história da luta social urbana no Brasil, protestos contra o aumento das passagens do transporte coletivo são constantes. Desde o século XIX, no Rio de Janeiro, a juventude e os pobres das cidades protestam contra essa situação, já que a restrição do transporte coletivo é uma restrição ao direito à cidade. Junho de 2013 foi uma explosão aguda de uma problema crônico que persiste há décadas nos centros urbanos do capitalismo.

[17A hora, Porto Alegre, 10 nov. 1958

[18Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 80.

[19Jornal Fôlha Metalúrgica, set. 1959. In Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 94.

[20Dados do IBGE. In: Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 100.

[21Anais da Câmara Municipal de Porto Alegre. 08/08/1957. Ibidem

[22Foi militante do PCB, vereador pelo PR (sigla que os militantes do PCB usavam para poder se candidatar, já que o partido estava na ilegalidade), depois deputado estadual e foi cassado em 1964 pela ditadura civil-militar.

[23Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 108

[24Ibidem. Pg. 118.

[25Barros, Jefferson. O Golpe mata jornal. Desafios de um tablóide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre. 1999, pg. 35.

[26Oliveira, Franklin de. Rio Grande do Sul: um novo nordeste. Rio de Janeiro, 1960. p XVIII.

[27A Carris havia sido comprada pela mesma Bond and Share em 1928, mas o modelo privado do transporte coletivo também entrou em crise na década de 1950.

[28Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 124

[29Ver: O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil, de Edison Urbano e Daniel Matos. Essa é uma das teses fundacionais da sessão brasileira da Fração Trotskista – Quarta Internacional Link: https://www.esquerdadiario.com.br/O-processo-revolucionario-que-culmina-no-golpe-de-64-e-as-bases-para-a-construcao-de-um-partido

[30Tanto a CTG quando a Intersindical tinham peso do PCB e do PTB, mas a primeira eram mais influenciada pelas lideranças tradicionais e pelegas, em especial do PTB, enquanto a segunda era mais ligada às bases dos trabalhadores e com lideranças mais jovens, portanto sentiam com mais força as demandas que vinham das bases dos trabalhadores. Apesar das diferenças entre PCB e PTB, nenhum deles possuía uma estratégia de construir um movimento operário independente dos governos e do Estado, cada um expressava uma estratégia de conciliação de classes à sua maneira. Mas entre a direção de cada partido e as bases dos partidos pode haver, muitas vezes, um abismo, levando as direções a irem mais à esquerda do que gostariam.

[31Jornal O Gráfico. Agosto de 1960. In: Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp, 2022. pg. 133

[32Ibidem. pg. 138.

[33Costuma-se chamar de greve “selvagem” aquela em que a base dos trabalhadores se revolta com a sua direção e a atropela, destituindo-a de suas funções de representação no percurso da greve. O nome é inadequado, pois confere aos trabalhadores e sua legítima revolta um status de irracionalidade, selvageria, violência, etc. Trata-se de uma forma pejorativa de se referir a uma mobilização legítima, mas que utilizamos aqui a fins didáticos.

[34E também revelava a enorme influência que a revolução cubana e a estratégia da guerrilha teve sobre a vanguarda de trabalhadores naquele momento.

[35Tese de doutorado da PUCRS de Marco Antônio Medeiros da Silva, de 2015.

[37Trótski, Leon. A indústria nacionalizada e a administração operária. In: https://ceip.org.ar/La-industria-nacionalizada-y-la-administracion-obrera-1

[38Ibidem.

[39Maestri, Mario. Revolução e Contra-Revolução no Brasil [1530-2018]. Porto Alegre, RS, 2019. p. 153.

[40O diretor da CIA, Allen Dulles, enviou ao presidente dos EUA, John Kennedy, um memorando comparando o gesto ao de Fidel Castro, em Cuba, e de Perón, na Argentina, que renunciaram uma vez com esse mesmo propósito. No memorando, Dulles também afirma que uma junta militar para substituir Jango criaria problemas de ordem interna e externa, poderia dividir as Forças Armadas e desencadear a guerra civil. Memorando 25/2303ZAUG, In: Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil 1961-1964. Ed. Unesp, 2010. Pg. 122

[41Mensagem enviada à Assembleia Legislativa Estadual na abertura da sessão legislativa de 1961. Diário da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - sessão solene de instalação dos trabalhos da 3ª reunião legislativa da 4ª legislatura, em 21 de abril de 1961. Anais da AL. Vol. 14, abril de 1961.

[42Uma das consequências dessa aproximação foi a viagem de Brizola para a Conferência de Punta Del Este, no Uruguai, representando a comitiva brasileira, onde Brizola pôde conhecer o então ministro da indústria e do comércio de Cuba, Ernesto Che Guevara. Nessa Conferência, Jânio Quadros dá o aval para que Brizola e a comitiva brasileira saiam caso os interesses do país não sejam contemplados. Após aprovarem resolução que visa retaliar Cuba, Brizola se retira da conferência em protesto. O jornalista Flávio Tavares registrou esse encontro em fotos e no livro Meus 13 dias com Che. O presidente do Uruguai na época, queria reunir todos os gaúchos da conferência para um churrasco em sua casa, uruguaios, argentinos e os gaúchos do Brasil. Foi nesse curioso contexto em que Brizola conheceu Che Guevara. Anos depois, quando o golpe militar é consolidado no Brasil, Brizola ajuda a erguer a primeira guerrilha do país, a do Caparaó, com ajuda financeira de Cuba, que fracassa e dura pouco tempo. Depois disso, Brizola desiste da guerrilha e, após conhecer a Europa, volta ao Brasil um social-democrata convicto.

[43Derby gaúcho - partida de futebol entre Grêmio e Internacional.

[44As Ligas Camponesas fizeram parte de um enorme ascenso camponês na década de 1950 e que se inseriam nesse quadro mais amplo de lutas sociais da época. Para saber mais sobre as Ligas, ver: O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil, de Daniel Matos e Edison Urbano - https://www.esquerdadiario.com.br/O-processo-revolucionario-que-culmina-no-golpe-de-64-e-as-bases-para-a-construcao-de-um-partido

[45Legalidade 25 anos. A resistência que levou Jango ao poder. Editora Redactor. Porto Alegre, 1991.

[46Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp. 2022. Pg. 173.

[47Ibidem. Entrevista feita entre agosto de 1999 e outubro de 2001. Pg. 174-175.

[48Ibidem. Entrevista feita com Ony Nogueira em outubro de 1999. Pg. 174.

[49Maestri, Mario. Revolução e Contra-Revolução no Brasil [1530-2018]. Porto Alegre, RS, 2019. p. 160.

[50A Cadeia da Legalidade foi a forma que Brizola encontrou em ecoar para o resto do país a necessidade de resistir à conspiração golpista e defender a posse de Jango. A partir da Rádio Guaíba, cobriu primeiro a região do sul e depois chegou à boa parte do país com mais de cem retransmissoras. A antena da rádio, que ficava na Ilha Pintada, foi guardada por efetivos da Brigada Militar durante os dias de sublevação.

[51Santos, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 a 1963. Dissertação de mestrado pela Unicamp. 2022. Pg. 179.

[52Logo após o golpe de 1964, a Base Aérea de Canoas ficou marcada como foco de possíveis insurgências e o coronel Alfeu de Âlcantara Monteiro foi assassinado três dias após a consumação do golpe. A intenção era controlar e se vingar dos revoltosos de Canoas. Essa história pode ser lida em - https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2018/04/a-historia-do-coronel-assassinado-tres-dias-depois-do-golpe-de-1964/

[54Correio do Povo, Porto Alegre, 29 agosto de 1961.

[55Peri Bevilacqua foi um dos primeiros oficiais generais a defender a posse de Goulart e foi considerado, pela cúpula petebista e pecebista, como um exemplo de militar da chamada ala nacionalista e legalista, que poderiam contar na luta contra o entreguismo. É um exemplo de como as ilusões na ala nacionalista da alta cúpula do exército, alentadas pelo PTB e PCB, com destaque para o próprio Brizola, levou a problemas graves. O “nacionalista” Peri, durante governo de Goulart, defendeu a ilegalidade de greves políticas no país quando era Comandante do II Exército. Após o golpe de 1964, Peri manteve seu cargo de comando do Estado-Maior das Forças Armadas até 1965, em que foi designado ao Supremo Tribunal Militar até 1969, quando foi cassado pelo AI-5. Na década de 1970, na reserva, ingressou no MDB.

[56Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil 1961-1964.

[57Nós e a Legalidade: depoimentos. Pg. 42

[58Brizola conta isso a Moniz Bandeira em entrevista. In: Bandeira, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil 1961-1964. Ed. Unesp, 2010. Pg. 128.

[59Ibidem.

[60Para saber mais sobre qual programa e política uma organização revolucionária deveria ter na etapa revolucionária aberta com a renúncia de Jânio Quadros, ver: O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil https://www.esquerdadiario.com.br/O-processo-revolucionario-que-culmina-no-golpe-de-64-e-as-bases-para-a-construcao-de-um-partido

[61Trótski, Leon. A indústria nacionalizada e a administração operária. In: https://ceip.org.ar/La-industria-nacionalizada-y-la-administracion-obrera-1

[62A referência é ao texto Classe, Partido e Direção, de Leon Trótski. A frase em questão diz que “A vitória, de nenhum modo, é o fruto maduro da "maturidade" do proletariado. A vitória é uma tarefa estratégica.”

[63Em nossas teses, dizemos: A luta por um governo deste tipo deveria estar ligada: 1) à luta pela formação de milícias de operários junto aos sindicatos, e de camponeses, junto às Ligas para resistir ao golpe, chamando operários e camponeses a se solidarizaram com as bases das Forças Armadas rebeladas e exigindo que todo militar ou direção burguesa que se colocava contra o golpe repartisse armas à população. 2) À luta por um programa operário independente que respondesse às demandas mais sentidas pelo movimento de massas numa perspectiva independente da burguesia (tanto do programa da UDN quanto das “reformas de base” janguistas), que tivesse como pontos centrais: a expropriação do latifúndio e repartição das terras entre os camponeses pobres, principalmente das terras mais produtivas, sob controle dos próprios camponeses, com crédito barato do Estado para financiar sua produção; o reajuste automático dos salários de acordo com o aumento do custo de vida, com um salário mínimo capaz de atender as necessidades básicas de uma família; e a estatização sem indenização e sob controle dos trabalhadores das grandes indústrias e empresas de serviços essenciais à população. 3) À luta por uma Assembléia Constituinte Revolucionária, sob as ruínas do regime então vigente, da qual participassem todas as organizações operárias e camponesas, proporcionalmente ao peso social real que estas têm na sociedade, que ajudasse as massas a superar suas ilusões na democracia burguesa. 4) À luta para que se desenvolvessem conselhos (sovietes) de operários, camponeses e soldados, com delegados eleitos com mandatos revogáveis por local de trabalho, para conformar um governo baseado na democracia direta das massas.
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Guilherme Kranz

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