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Governo Lula e batida em retirada do conceito de guerra híbrida

Thiago Flamé

Governo Lula e batida em retirada do conceito de guerra híbrida

Thiago Flamé

De uma constelação de intelectuais que depois da constituição de 1988 se dedicaram a estabelecer laços e estudar as forças armadas, durante muito tempo Piero Leirner brilhou como o único, é preciso dizer, que foi capaz de ver o óbvio: O comprometimento da cúpula militar com seu retorno à política e seu engajamento organizado no giro à direita que se operou no Brasil com a lava jato a partir de 2015 e seu caráter golpista. Publicamos este artigo como parte do Dossiê especial 59 anos do golpe de 1964 pelo semanário teórico-político Ideias de Esquerda.

Mais preocupado em captar os costumes, os conceitos e saberemos do sujeito analisado, um antropólogo atendo ao seu campo de estudo como Leiner pode captar o movimento em curso antes que os demais, sem se prender em saberes consolidados da sociologia e da política especializada no tema que, presos em seus próprios esquemas de análise, acreditaram na ascensão de uma geração de oficiais “profissionais” dentro das F.A. que com o fim da guerra fria aos poucos superariam a concepção do exército como garantidor da ordem e se concentrariam nos problemas da defesa nacional.

Atento, Leirner captou as movimentações internas e a predominância da visão de tutela militar que sempre foi hegemônica na caserna. Mais profissionais, certamente. Porém, nunca abandonando a visão de que missão mais elevada da sua profissão é a de guiar o populacho, que liberado da tutela da mão forte do exército levaria o país ao caos e a dissolução. Frente às elites civis, entregues a demagogia eleitoral e sem a disciplina e unidade necessária para manter o povo miúdo no seu lugar, a unidade e coesão da nação são tarefas que caberiam a casta militar, disposta a realizar o nobre e duro sacrifício de guiar as pobres almas de um povo sempre imaturo rumo ao caminho do bem, mesmo contra a sua vontade. A casta de generais e oficiais de todas as forças nunca abandonou essa visão e sempre se ressentiu das elites econômicas e intelectuais que se postularam a partir dos anos noventa como modernizadoras e não reconheceram esse papel quase divino da casta militar. No fundo, acham que mereciam mais verbas, mais regalias e privilégios em troca de salvar a nação de si mesma.

Leirner viu a profundidade das raízes desse pensamento na oficialidade e mais, viu os movimentos que visavam transformar essas concepções numa ação política. Sua explicação para o que viu, no entanto, através de uma aplicação do conceito de guerra híbrida ao processo do golpe institucional no Brasil levou a uma série de equívocos, sobrevalorizou o peso da cúpula militar sobre a situação e sua capacidade de condução política e não permite compreender o novo marco estratégico aberto com a eleição de Lula e o governo da frente ampla, em que os generais buscam uma retirada organizada ao mesmo tempo que não querem perder o protagonismo político que recuperaram.

João Roberto Martins Filho, na introdução do livro “Os militares e a crise Brasileira”, que ele organizou com artigos de especialistas de diferentes áreas, cita as palavras de Manuel Domingues Neto, no artigo “Fileiras desconhecidas”: “desde 2016, as atitudes dos oficiais contrariaram as expectativas alimentadas pelo mundo político e pelos acadêmicos”. Em entrevistas e palestras, pronunciou-se de forma ainda mais contundente. No livro publicado em 2021, que reúne alguns dos principais estudiosos do tema, ainda estavam apalpando meio às cegas uma explicação.

Haviam acreditado que os acordos e concessões, o grande pacto de impunidade que preservou os militares, os serviços de espionagem, o artigo 142, a justiça militar e uma série de prerrogativas dos militares seriam uma concessão necessária, que se corrigiria com o tempo. Grandes estudiosos do tema como Eliezer Rizzo de Oliveira passaram a promover as relações de colaboração intelectual com os meios militares. A oficialidade agradeceu a gentileza, mas se manteve hermética, aguardando por novas oportunidades. A história não respeita a ideia de progresso da intelectualidade hoje chamada, muito propriamente, de progressista. O que determina seu rumo e suas idas e vindas, são os embates da luta de classes e era previsível que as posições preservadas pelos militares seriam utilizadas a favor das classes dominantes quando fosse necessário. Não devemos nos espantar com o fato de fenômenos grotescos como o Bolsonarismo ainda existirem em pleno século XXI, mas nos preparar para horrores ainda maiores do que os do século XX, se não acionarmos, como dizia Walter Benjamin, o freio da revolução proletária.

A ideia de uma guerra híbrida surge como um consolo tranquilizador para “o mundo político e acadêmico” que viu frustradas suas tão nobres e otimistas expectativas. Como diz João Roberto Martins em outra parte da mesma introdução, quando se refere ao ensaio de Leirner, “na medida em que a replicação dos princípios dessa modalidade de guerra se faz ‘a partir de grupos com conexões pouco estruturadas e nada evidentes’ [1], Leiner também oferece uma explicação para a dificuldade que nós, especialistas no tema, tivemos para entender, de imediato, os processos subterrâneos que vieram à luz somente na reta final da campanha de 2018.”

Junho de 2013 e as temporalidades da crise brasileira

Ao desenvolver uma adaptação do conceito de guerra híbrida aplicado ao processo político brasileiro, Piero Leirner se apoia nas elaborações de diversos autores, entre eles em Foucault para questionar a fórmula de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Sem adotar, mas partindo da inversão proposta por Foucault no Em Defesa da sociedade, de que seria a política a continuação da guerra por outros meios, Leiner afirma “a guerra híbrida, neste sentido, é a continuação mais acabada que dispomos hoje da aproximação entre esses dois polos (guerra e política)… o que quero chamar atenção é que talvez tenhamos que colocar entre colchetes e suspender temporariamente a ideia de “extensão por outros meios” de Clausewitz e Foucault”. Por caminhos e conclusões diferentes a aproximação de Leiner da inversão foucaultiana de Clausewitz tem pontos de contato com a de Maurizio Lazzarato, intelectual italiano com quem Emilio Albamonte e Matias Maiello fizeram um amplo contraponto no seu artigo “Mais além da restauração burguesa: 15 teses sobre a nova etapa”, ao qual remetemos para uma discussão mais ampla. Aqui queremos apenas nos deter a alguns elementos fundamentais deste debate que ajudarão não só a explicar a atuação dos militares como a elaborar uma estratégia capaz de enfrentá-los.

E um ponto em comum a Leirner e Lazaratto que Albamonte e Maiello criticam é que uma das consequências da “premissa de que não há mais distinções entre guerra e política, e portanto entre guerra e paz” [2] é a de que a estratégia, sem captar as diferentes temporalidades “é incapaz de cumprir seu objetivo: vincular os combates isolados com o objetivo da guerra”.

Isso fica evidente na elaboração de Piero Leirner quando ele afirma, sobre o debate do golpe institucional de 2016, que ele rejeita a ideia de golpe “uma vez que esta supõe uma ação unilateral de um grupo e um começo, meio e fim” [3]. O estado de guerra permanente, a dissolução da dimensão temporal da ação golpista, o impede de analisar a dinâmica da correlação de forças entre as classes e as contradições do grupo, ou bloco, que empreendeu o golpe de 2016 e a continuidade do golpe em 2018, com as eleições manipuladas pela prisão de Lula que garantiram a vitória de Bolsonaro e a continuação e o aprofundamento do golpe de 2016.

Uma das questões fundamentais do debate político brasileiro é a relação entre junho de 2013 e o golpe institucional de 2016 e, por mais que Leiner não chegue a sustentar a versão petista de que junho de 2013 foi uma revolução colorida e reconhece legitimidade ao elemento “rua” daquelas jornadas, não consegue apontar nenhuma possibilidade de que não fossem capitalizadas pela direita na trama judicial e militar que se desenvolveu. Mas não era inevitável que fosse assim. Apesar de toda a operação que certamente se colocou em marcha naqueles dias quentes de junho para influenciar pela direita a crise aberta pelo protesto da juventude, a situação imediata aberta pelas grandes mobilizações foi uma possibilidade desaproveitada pelos setores que se colocavam à esquerda do PT.

A classe trabalhadora não entrou em cena em junho, mas simpatizou massivamente com o protesto da juventude. Se vislumbrava naquele momento a possibilidade de ir além das melhoras graduais prometidas pelo PT e entravam em choque com interesses estratégicos da classe dominante, que se propunha a um ataque brutal sobre as condições de vida das massas para enfrentar a recessão que se avizinhava. No ano seguinte, a greve dos garis do Rio de Janeiro e dos rodoviários de Porto Alegre marca uma virada na etapa aberta por junho. Batalhões importantes da classe trabalhadora se colocaram em movimento, superando as direções ultra burocráticas e mafiosas dos seus sindicatos e arrancando conquistas salariais significativas. A derrota da greve do metrô de São Paulo e das greves de professores naquele ano, junto com a política do PT de conduzir tudo para as eleições naquele ano, abriram espaço para a lava jato, para as massivas manifestações reacionárias de 2015 e para o golpe.

Essa dimensão de um processo que tem início, meio e fim é fundamental para entender o momento atual, de uma ampla reconfiguração das forças no cenário político. A ofensiva golpista chegou no seu ponto culminante e o bloco golpista de 2016 se dividiu. Uma parte dele integra o governo de Lula e pretende consolidar os ataques e revestir de legitimidade democrática a obra do golpe. Por mais que se diferencie do petismo na avaliação de junho, sua visão do processo é funcional à política do governo da frente ampla, e especificamente sobre a questão militar acaba fazendo coro com a política carente de base real, de uma reforma militar.

Como dizem Albamonte e Maiello, “Se o evolucionismo social-democrata é, por definição, incapaz de pensar e antecipar a guerra, a indistinção entre guerra e paz tem consequências semelhantes. A chave da preparação estratégica passa pela capacidade de construir pontes entre as diferentes temporalidades do processo histórico. Qualquer concepção de tempo homogêneo, seja concebida em termos de desenvolvimento evolutivo (das forças produtivas, organização política, consciência, etc.) ou em termos de "guerra permanente" é um obstáculo à estratégia revolucionária.”

O capitão e os generais

Ao conceber a situação brasileira como expressão da dissolução da guerra na política e vice-versa, eliminando a relação entre guerra e paz para a de uma guerra permanente travada por outros meios, Leirner acaba passando por alto uma das questões fundamentais do processo que vivemos. Que a novidade de um golpe em frio, sem mobilização de tropas, sem uma ação propriamente militar , se apoiando muito mais na ação do judiciário e na manipulação da comunicação de massas do que na violência física propriamente dita (ainda que não prescinda dela) é uma forma transitória, não duradoura, que corresponde a uma determinada correlação de forças em que o movimento de massas não ofereceu qualquer resistência séria ao avanço golpista (tendo sido a greve geral de abril de 2017 desviada pelas direções petistas que esperavam uma vitória eleitoral em 2018). Ao mesmo tempo em que já era impossível para a classe dominante impor o enorme ajuste neoliberal e demolir o pacto social de 1988 como fizeram Temer e Bolsonaro sem restrições cada vez maiores à já limitada democracia.

Nessa situação, vimos surgir novos fenômenos autoritários sobre os quais buscamos elaborar com os conceitos de bonapartismo judicial e bonapartismo institucional e uma disputa entre estes e o clássico bonapartismo militar das forças armadas se apoiando em Bolsonaro para dar conta da novidade desses fenômenos. Ao que agora, com Lula assumindo os poderes da presidência da república, vemos uma terceira força bonapartista se agrupando no executivo com o objetivo de estabilizar a situação. Para colocar, por exemplo, no lugar do insustentável e rígido teto de gastos de Temer o flexível arcabouço neoliberal de Haddad, que na essência tem o mesmo conteúdo ainda que suavize um pouco a magnitude do ataque para que esse possa se legitimar.

Os militares não são um poder que paira no ar com uma atuação independente das frações de classe em disputa. Conceber as contradições que vimos se expressar entre os generais e entre estes e Bolsonaro, não como resultante de contradições mais profundas no bloco golpista, entre os atores e interesses internos e externos, sobretudo dos EUA, é outro fator que impede o trabalho da estratégia. Na conceitualização da guerra híbrida brasileira, não é só o tempo que se torna homogêneo, o espaço, digamos assim, também. Os atritos se tornam todos parte de “false flags”, com o que se anula a dinâmica viva dos embates de classe e o inimigo parece dotado de uma força e racionalidade muito superior à que tem na realidade.

Bolsonaro e a cúpula militar compartilham uma visão de mundo e ideias, se é que se pode chamar assim, comuns. No entanto, se apoiam em diferentes setores e camadas sociais e estabelecem uma relação de colaboração e disputa que chegou a ser tensa em vários momentos do governo Bolsonaro e sem as quais não conseguiríamos também entender sequer a dinâmica dos acontecimentos do oito de janeiro. Leirner vê Bolsonaro como um peão, manipulado pelos interesses homogêneos na cúpula militar. Não iríamos nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem Bolsonaro é um ator tão dócil, nem os generais tão coesos.

Nunca deixou de ser um incômodo para os generais terem que se apoiar num capitão reformado e se submeter e prestar continência a essa figura de terceira ordem. Foram arrastados a isso pela dinâmica da situação política e das suas próprias contradições internas. Bolsonaro se apoia diretamente na radicalização pela direita da média oficialidade e das camadas médias do campo de onde provém majoritariamente e em setores lumpenizados e ligados a atividades ilegais, como as milícias cariocas e o garimpo ilegal na Amazônia e na direita trumpista norte americana se conformando numa corrente com fortes elementos proto-facistas propriamente ditos, uma extrema direita de características insurrecionais.

Os generais não. Seus laços com os interesses da grande burguesia e com o aparato tradicional do Estado norte americano, democrata e republicano, são muito maiores. O que aconteceu é que no contexto da operação lava jato um setor de generais liderado por Villas Boas encabeçou uma virada histórica na relação de subordinação das forças armadas aos EUA, durante a administração Obama. A entrada de um general brasileiro na cadeia hierárquica do Comando Sul dos EUA foi um símbolo dessa virada. A maioria do Alto Comando acompanhou o movimento, porém seguiu ligada à ideia tradicional e dominante inclusive durante a ditadura militar, de uma diplomacia menos alinhada automaticamente aos EUA para explorar melhor as brechas oriundas das disputas interimperialistas. Essas diferenças se mostraram publicamente no início do governo Bolsonaro, na tentativa do governo Trump de depor o governo venezuelano.

A forma dessa intervenção já estava sendo planejada desde a administração Obama e no contexto do envio de militares brasileiros à Ucrânia em 2014. O primeiro exercício militar conjunto na Amazônia foi acordado entre os dois exércitos, além de Peru e Colômbia, quando o comandante ainda era Villas Boas. Tratava-se justamente de uma ação de “ajuda humanitária” de envio de alimentos na região da floresta.No momento da sua execução, o general Heleno, considerado o mais bolsonarista dos generais, foi quem se colocou contra. Foram diferentes os motivos que levaram Villas Boas e Heleno e os outros generais ao governo Bolsonaro. Villas Boas resistiu ao movimento de Heleno e de Mourão ansiosos por retornar ao palco principal da política nacional movidos mais por interesses menores que por cálculo estratégico. Foi a vitória eleitoral de Trump em 2016 e a completa falência do candidato tucano Geraldo Alckmin, o preferido da lava jato e do próprio Villas Boas, que o arrastaram definitivamente para o bloco bolsonarista e junto com ele toda a cúpula militar.

Com Bolsonaro fora do governo, o futuro dessa relação é incerto, como ficou evidente no oito de janeiro. Interessava aos generais a manifestação na porta do planalto e os acampamentos para ao fim aparecerem como pacificadores e negociarem em melhor situação sua situação no regime político sob o governo Lula. Mas a radicalização das médias patentes e a penetração do bolsonarismo na polícia do DF falou mais alto e comprometeu os generais com uma ação que terminou dificultando sua relação com o novo governo e os colando numa situação defensiva. Agora o exército vai tentar se equilibrar entre a integração institucional à frente ampla e na disputa da base social de direita com o bolsonarismo, no marco de uma disputa pela liderança da oposição entre pelo menos três setores, o clã Bolsonaro, Sérgio Moro e os militares, que com Mourão adquiriram uma posição no Senado. Há que se ver como vão se colocar os governadores bolsonaristas e todo o chamado bolsonarismo institucional, frente a uma liderança que retorna ao Brasil diminuída e enfraquecida.

É significativo que Lula tenha arremetido contra Sérgio Moro justamente no evento de lançamento do segundo submarino a partir da colaboração com a França e cercado de almirantes. No mesmo evento, o comandante em chefe apresentou Lula como o principal responsável pelo bom momento da Marinha. Justamente a força que estabeleceu as relações mais profundas com o governo Lula e a única que teve um alto oficial preso pela lava jato, o Almirante Othon, presidente da eletronuclear e um dos líderes do programa nuclear da Marinha. Na corrida por se adaptar às novas condições, a Marinha deu um passo à frente e ofereceu o primeiro apoio aberto vindo dos militares ao executivo lulista, enquanto o Exército patina por carregar o lastro do seu comprometimento com o bolsonarismo.

A guerra da Ucrânia e o retorno da guerra convencional ao coração da Europa

Se bem que seja preciso reconhecer e estudar as novas condições da guerra no século XXI e que as fronteiras entre guerra e paz tenham se tornado mais turvas, a guerra da Ucrânia marcou a volta da guerra convencional ao território europeu e uma aceleração nos ritmos das disputas internacionais. A ideia de uma guerra híbrida sai de cena quando a análise do resultado das batalhas entre dois exércitos entra como fator fundamental. No cenário ucraniano, os olhos se voltam menos para os relatos e mais para a situação no campo de batalha com a concentração cada vez maior das tropas na batalha de Bahamusk, comparada com batalha de Verdun na primeira guerra mundial, pelo elevado número de baixas de lado a lado e pela imobilidade das tropas do campo de batalha. É a política que conduz a guerra, não só no sentido de limitante que é como Leiner entende as tendências da guerra a assumir uma dinâmica própria e buscar se aproximar do conceito de guerra absoluta, mas também como o que determina a causa e o motor da própria guerra.

Leiner também faz eco à crítica dos anti-clauzewitianos de que o fato de que a guerra não tem sido travada entre dois estados nacionais e sim por sujeitos e grupos muito mais fragmentados anularia a teoria de Clauzewitz, mas não passa em revista os argumentos dos seus defensores. E muito menos leva em conta a apropriação crítica que fez dele o marxismo revolucionário. Que o sujeito político que encabeça a guerra não seja um estado, não muda o fato de que é a política que comanda a guerra. Na medida em que o estado não só busca deter o monopólio do uso da força, mas o faz em benefício da classe dominante (e não é um detalhe a adesão da cúpula militar ao neoliberalismo de Guedes, questão reafirmada do documento que publicaram no fim de 2022),a questão que Leiner também ignora é a possibilidade de que as classes subalternas, lideradas pela classe trabalhadora, possam conduzir a guerra a partir de seus interesses políticos para derrotar as classes dominantes e seu estado. Essa questão é a fundamental, mas passa longe da visão de Leirner: como organizar uma força, na forma de partido revolucionário, que seja a representação dos interesses históricos do conjunto dos explorados e possa articular a luta do conjunto dos movimentos sociais e de todos os oprimidos, em torno de uma estratégia anticapitalista unificada, capaz de conduzir os atos de resistência isolados como parte de uma única batalha, evitando que processos de rebelião como o de junho possam ser desviados ou diretamente aproveitados pela direita.

Da mesma forma que a agudização das tensões interestatais teve sua expressão na guerra da Ucrânia, superando o que poderíamos de alguma maneira ver como o hibridismo de processos anteriores numa situação de menor tensionamento das relações internacionais, e trazendo de volta o perigo das guerras convencionais e inclusive a possibilidade de enfrentamentos diretos entre as grandes potências, a agudização da luta de classes trará de volta enfrentamos diretos entre as classes, choques agudos entre revolução e contra-revolução, guerra civil e ação de fascismos de tipo clássico, que utilizarão métodos de guerra civil para abater as organizações dos explorados. A volta do movimento operário e seus métodos de luta nas três principais potências europeias e a radicalização de setores de massas na França, são um indicador não só de que a guerra convencional retornou, mas que também a revolução proletária pode ressurgir.

No momento atual, o governo da Frente Ampla, que tenta atuar como um freio das contradições de classe, ainda vive um período chamado de lua de mel, mas vários indícios apontam para a possibilidade de que esse momento seja mais curto e mais conturbado do que se esperava. Durou pouco a força extra que os acontecimentos do oito de janeiro conferiram ao governo, que já enfrenta um desafio no Congresso Nacional e vê setores importantes do proletariado organizado levantarem a cabeça, como fizeram os metroviários de São Paulo e ameaçam fazer o mesmo os professores na luta contra a reforma do ensino médio, uma questão que o governo Lula terá que administrar. Não é um dado desprezível que sejam esses setores, com maior tradição sindical, e alguma experiência acumulada com as direções sindicais e os governos petistas, sejam parte dos primeiros batalhões da classe trabalhadora a se colocar em movimento.

Na medida em que o governo Lula enfrente suas primeiras dificuldades, veremos a oposição de extrema-direita com seus métodos extra-institucionais levantar a cabeça. A forma desse movimento e se seguirá sendo liderado por Bolsonaro ainda precisaremos ver. No entanto, é de se prever que na medida em que também o movimento de massas e setores de vanguarda da classe trabalhadora se coloquem em movimento, a violência extra-institucional mostrada no oito de janeiro também se volte diretamente contra essas lutas. Desde já, é preciso lutar pela independência de classe frente ao governo de Lula, organizar a vanguarda da classe trabalhadora e uma oposição de classe à esquerda do governo Lula, para evitar que o inevitável desgaste do seu governo seja mais uma vez capitalizado pela direita, o que teria consequências ainda mais desastrosas do que o golpe institucional de 2016 e da eleição de Bolsonaro em 2018. Não é que a possibilidade de golpes militares clássicos e de movimentos propriamente fascistas tenham ficado no passado, substituídos pela vaga noção de guerra híbrida, mas estão também inscritos como possibilidades e tendências do futuro para o qual temos que nos preparar estrategicamente para enfrentar.


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FOOTNOTES

[1LEIRNER, Piero. O Brasil no contexto de uma guerra híbrida. Editora Alameda, 2020. pg. 133

[2Idem. pg. 20

[3Idem. pg. 269
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