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CULTURA | Da revolução artística à arte revolucionária

O encontro entre Trotsky e Breton traz definições sobre a relação entre arte e revolução, o encontro em terras mexicanas e das repercussões, tanto na escrita de seus protagonistas, como daqueles que comentaram posteriormente.

sábado 16 de abril de 2016 | Edição do dia
[1] Mais questionável, em todo caso, é seu posterior e deficiente oportunismo, que na década de 1960 o levou a aceitar o Ministério da Cultura, no governo de De Gaulle. Mas, é claro, disto Trotski não chegou a enterar-se. No entanto, na já referida Literatura e Revolução, Trotski tinha feito elogios para A condição humana (cfr. “La revolución estrangulada. Una novela francesa sobre la revolución china”, em op. cit.), mas sem privar-se de atribuir a Malraux “individualismo e capricho estético”.
[2] Adorno, Theodor W.: Teoria estética, Madrid, Taurus, 1975.
[3] Díaz, Ariane: “Há 70 anos do Manifesto pela Arte Revolucionária Independente”, na revista Ramona 83, agosto de 2008.
[4] [Figura retórica de pensamento que consiste em complementar uma palavra com outra que tem significado contraditório ou oposto.]

Extrato do prólogo “Trotski com Breton: da revolução artística à arte revolucionária” de Eduardo Grüner, ensaísta, sociólogo e professor da UBA, ao livro “O Encontro de Breton e Trotski no México” publicado na Argentina pelas Ediciones IPS e CEIP León Trotski em 2016 (compre o livro em espanhol aqui)

[...] Em uma carta a Breton, Trotski escreve [em 1938, em seu exílio no México devido à perseguição stalinista, em um contexto em que o regime burocrático dirigido por Stalin perseguia os artistas que se opunham ao governo e que não se enquadravam no modelo imposto para a área das artes plásticas e da estética, o “Realismo Socialista”]:

Nosso planeta está se convertendo em um asqueroso e fedorento quartel imperialista. Os heróis da democracia (...) fazem de tudo quanto possível para se parecerem com os heróis do fascismo (...) e quanto mais ignorante e obtuso é um ditador, mais destinado se sente a dirigir o desenvolvimento da ciência, filosofia e arte. O instinto de rebanho e a servidão da intelectualidade constituem um sintoma a mais, e não insignificante, da decadência da sociedade contemporânea.

É uma duríssima acusação para a sociedade do seu tempo – tanto a europeia “ocidental” como a burocrática “soviética” - e o papel dos intelectuais em vários níveis, desde os bajuladores do stalinismo (“os Aragon, Ehrenburg e outros enganadores de baixo nível”) até os ecléticos bons pensadores incapazes de tomar uma posição clara (“os homens que, como Barbusse, escrevem com o mesmo entusiasmo biografias de Jesus Cristo e Josef Stalin”). Nem se quer se salva de sua polêmica um figurão da esquerda francesa como André Malraux, a quem ele atribui uma imperdoável “falsidade” em suas descrições da situação alemã e espanhola “pois é muito mais repugnante quando se trata de lhe dar forma artística (...) típico de toda uma categoria, quase de uma geração de escritores: os que contam mentiras amparadas na solidariedade com a Revolução de Outubro, como se as mentiras solidárias fizessem falta à revolução!”.

Talvez aqui Trotski não seja inteiramente justo ao colocar no mesmo saco de Aragon (um ex-surrealista que passou com armas e bagagens para o mais obediente estalinismo) com Barbusse (um socialista liberal bem intencionado e bajulador) e Malraux (um escritor de estilo requintadamente poderoso, autor do grande romance sobre a revolução na china, A condição humana, e cuja arrogância e aventureirismo não deveriam diminuir o mérito - para um intelectual burguês - de ter acompanhado a Revolução chinesa ou de ter organizado a aviação republicana no início da Guerra Civil espanhola) [1] . No entanto, para além dos exemplos particulares, há nestas poucas linhas uma rica condensação de ideias muito relevantes para entender a posição de Trotski.

Em primeiro lugar, e embora possa parecer paradoxal, a ideia implícita de que no campo da literatura [e da arte em geral] é irrenunciavelmente defendida a liberdade absoluta, esta liberdade é de certa forma condicional quando o “tema” da obra é explicitamente político, já que neste caso é exigida uma parte não negociável de responsabilidade com a verdade (com a verdade “objetiva”, até onde ela possa ser determinada; não, é claro, com uma “verdade” decretada pelo Estado, como no caso stalinista). Mas, sempre que compreendemos ao mesmo tempo este “condicionamento” da liberdade como sendo um fator de crítica posterior ao texto [ou a qualquer produção artística], ela não pode ser de nenhuma forma uma imposição prévia dos aparatos do governo ou do partido, muito menos um argumento para a censura.

Em segundo lugar, e aprofundando o anterior, a “solidariedade” por uma “boa causa” (mesmo que seja, por exemplo a Revolução de Outubro, que para Trotski era a causa suprema, mesmo que pese sua degeneração burocrática ditatorial) não é em si mesma garantia alguma nem de “estar com a verdade”, nem de valor estético-literário, nem sequer de “utilidade” política: defender o indefensável, mesmo que seja contra o fascismo ou imperialismo, não deixa de ser uma falsidade, tanto em termos políticos como artísticos. Quem mente a si mesmo – mesmo que se faça “inconscientemente” - necessariamente mente aos outros também como artista e, portanto, está impossibilitado de criar uma obra verdadeira também em termos de verdade estética.

Como se pode ver, a “liberdade” de Trotski no que diz respeito à criação artística não implica em modo algum em nenhum tipo de neutralidade de valor ou indiferença ética. Pelo contrário, há uma decisiva dimensão moral implicada na crítica a Malraux - novamente, se consideramos justo ou não: o que nos interessa agora é a ideia – de que a “falsidade”, especialmente na política, é muito pior quando se trata de embelezá-la artisticamente. É altamente improvável que Trotski tenha tido a oportunidade de ler o famoso ensaio de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, publicado em Paris alguns anos antes dessas suas palavras, mas é impressionante a coincidência com as críticas benjaminianas ao que esse filósofo alemão denominava de estetização da política. E de fato, enquanto o objeto imediato da crítica de Benjamin a essa “estetização” (ou seja, a transformação da experiência histórica dos sujeitos, tanto a social como a artística, em um espetáculo “belo” para a pura contemplação estática e deshistorizada) é a cultura fascista, seu apontamento é perfeitamente aplicável ao “Realismo Socialista”, bem como às “belas mentiras” dos bajuladores a que Trotski se refere.

Então, como dizíamos, as boas intenções, a defesa das causas justas ou os conteúdos “progressistas” ou até mesmo revolucionários, não garantem a verdade artística. E se acabamos de ver como Trotski coincidiu com Benjamin seguramente sem conhecê-lo, agora podemos observar como em alguns aspectos ele antecipa Bloch e Adorno, quando na referida carta a Breton continua a dizer:

Na arte, o homem expressa (...) sua necessidade de harmonia e de uma existência plena (...) que a sociedade classista lhe nega. Por isso, em toda autêntica criação artística há implícito um protesto, consciente ou inconsciente, ativo ou passivo, otimista ou pessimista, contra a realidade (...). O capitalismo em decadência é incapaz de garantir nem sequer as condições mínimas necessárias para o desenvolvimento daquelas correntes artísticas que em alguma medida satisfazem as necessidades do nosso tempo. Qualquer palavra nova aterroriza-o supersticiosamente.

É um parágrafo espantoso, ao menos para aqueles que desde seu esquematismo preconceituoso, acham que um dirigente revolucionário deve necessariamente subordinar a arte aos objetivos políticos. Mas, na verdade, poderia dizer que é o inverso: a “autonomia relativa” da arte, que está indubitavelmente condicionada pelo político (mais precisamente, a palavra relativa não quer dizer que esta autonomia é “pouca” ou “fraca”, mas sim que está em inevitável relação com o político, e é porque existe essa relação que se pode falar de “autonomia”, pois quem necessitaria ser autônomo a respeito de nenhuma relação?). A autonomia, portanto, consiste de que a arte – a “autentica criação artística”, disse Trotski - não pode ser subordinada (que não é o mesmo que “condicionada por”) nenhuma “externalidade” política ou de qualquer outra natureza. É isso o propriamente “revolucionário” da arte e não sua temática ou seus conteúdos intencionais.

Como Bloch, Trotski dá essa autonomia da “autêntica criação artística” um papel positivamente utópico (uma “necessidade de harmonia e de existência plena... que a sociedade classista lhe nega”). Mas, como Adorno, sabe que não é a arte que pode transformar radicalmente as condições sociais dessa alienação (“o capitalismo é incapaz de assegurar...”, etc).

O que a arte pode fazer com sua “autonomia”, sua imaginação e sua liberdade formal é indicar a existência possível de um mundo de liberdade não alienada cuja realização só pode ser realizada por homens e mulheres de carne e osso operando sobre suas condições materiais de existência. Que, entre outras coisas, é exatamente o que quer dizer Adorno com sua afirmação em aparência enigmática e para alguns contraditória - mas se trata de uma “contradição” constitutiva da dialética negativa, como a chamaria o próprio Adorno – de que a arte é uma promessa de felicidade... com a condição de que não se cumpra [2] . De fato, ao mostrar que “outro mundo é possível” (esse mundo de “harmonia e existência plena” que disse Trotski e que na sociedade de classes só a arte pode oferecer, novamente, não por seu “conteúdo” mas por sua absoluta liberdade interna) a arte gera um contraste, um conflito com a realidade atual, sem pretender substituí-la nem transformá-la. Quer dizer, gera, no melhor sentido do termo, um mal-estar entre a percepção da distância entre o desejável/possível e o real. E o que está dizendo Trotski com sua afirmação de que na criação artística está implícito um protesto contra a realidade? A “impotência” da arte de transformar por si mesma as condições sociais, não resulta de nenhuma incontaminada “pureza” nem de uma indiferença ou alienação a respeito do social. Como claramente diz Trotski em seus apontamentos ao Manifesto [pela Arte Revolucionária e Independente] (em uma frase que logo passou para o manifesto final): “(...) Temos uma ideia muito elevada da função da arte para lhe negar uma influência sobre o destino da sociedade”.

Daí a importância não somente ética senão política da liberdade artística. Só esta liberdade “interior” pode aspirar a superar mais profundamente possível os condicionamentos da sociedade de classes (e os limites sufocantes do despotismo burocrático, devemos presumir) e gerar a “utopia” de uma humanidade melhor, embora não esteja em condições de realiza-la em termos concretos. Não teríamos que estranhar demasiadamente, então, que, em defesa dessa liberdade, o materialista histórico Trotski seja às vezes ainda mais extremista que o surrealista Breton. Como se poderá ver no texto em duas colunas do Manifesto do México que está publicado neste volume (título do livro), onde originalmente o texto propõe a frase-consigna “Total liberdade na arte, exceto contra a revolução proletária” que Breton tinha corrigido de Literatura e Revolução para o texto definitivo, sem dúvida, a pedido de Trotski, simplesmente diz: “Total liberdade na arte”. Trotski mudou sua posição, teria a “liberalizado”? Ariane Díaz sugere outra solução: “Mais do que uma mudança de posição, se trata da mesma ideia em um particular contexto político e ideológico no qual se escreve o MARI [3] ”. Já não estávamos em tempos “heroicos” em que esta questão poderia fazer parte dos intensos debates políticos e culturais no interior do bolchevismo. Em 1938 a dominação stalinista era total e se trata então de demonstrar que, contra as falsificações grotescas do “marxismo” do PCUS [Partido Comunista da União Soviética] como também dos Partidos Comunistas ocidentais, a liberdade artística não é inimiga da revolução, como é, simultaneamente, inimiga da opressão capitalista e da burocratização-estatal.

A essa altura do texto está completamente estabelecido que “a revolução comunista não teme a arte”, entre outras razões porque como mencionado de outra maneira acima, “a determinação desta vocação (a artística, EG) pode acontecer somente como resultado de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Nesta conjuntura, e o grau de consciência que dela se pode adquirir, faz do artista seu (da revolução, EG) aliado predisposto”.

A arte implica objetivamente um conflito com as “formas sociais”: maior liberdade “interna”, portanto, maior intensidade de evidência do conflito, na medida em que as “formas sociais” (novamente, na sociedade de classes como na ditadura burocrática) são, por definição, restritivas e repressoras. Mas mesmo, e talvez especialmente, em uma situação revolucionária de construção do socialismo – na qual se supõe que essas “formas sociais” estão ao menos começando a ser transformadas – deve-se manter uma radical diferença entre o “dirigismo” econômico e político e a atitude frente à cultura e à criação artística. Veja essa notável formulação do Manifesto:

Reconhecemos, desde já, o Estado revolucionário no direito de se defender contra a agressiva reação burguesa, inclusive quando se cobre com o manto da ciência ou da arte. Mas, entre essas medidas impostas e transitórias de autodefesa revolucionária e a pretensão de exercer uma direção sobre a criação intelectual da sociedade, existe um abismo. Se para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, a revolução precisou erguer um regime socialista centralizado, para a criação intelectual deve, desde o princípio, estabelecer e garantir um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coerção, nem o menor traço de autoridade.

Socialismo para a economia, anarquismo para a arte e a “criação intelectual” em geral. O grau necessário de firmeza contra a reação burguesa, a mais absoluta liberdade individual para a prática artística. Há aqui uma certa contradição lógica? Em uma primeira leitura, parece que sim. Não se pode negar certo aparente descuido ou pressa na redação do parágrafo: por um lado, se reconhece ao Estado revolucionário – como é lógico - o direito de se defender contra a reação burguesa, “inclusive quando se cobre com o manto da ciência e da arte”. Por outro lado, para a criação intelectual sustenta-se que não deve haver coerção nem autoridade alguma. O que é feito com essa parte da reação que, segundo o parágrafo, “se cobre com o manto da ciência ou da arte”? Há ali uma espécie de limbo que se ergue no “abismo” entre a coerção político-econômica e a liberdade “anárquica” para a arte, e o documento não dá pistas suficientemente satisfatórias para preencher esse hiato (e mesmo assim, para os mais detalhistas, pode soar como um oximoro [4]] que diz de um “regime anarquista”). A essa “contradição” se soma também o fato de que o parágrafo junta – na mesma frase sobre os “mantos” da reação burguesa – a ciência com a arte: por acaso a ciência, diferentemente da arte, mão ocupa um lugar decisivo neste “desenvolvimento das forças produtivas materiais” para o qual obriga a construção de um “regime socialista centralizado”? A ciência não deveria estar, então, - segundo o próprio raciocínio do parágrafo – mais próxima do socialismo da economia do que do anarquismo da arte?

Mas, seja como seja, o valor do parágrafo encontra-se no fato de que sinaliza um problema, ou melhor, um dilema, de difícil resolução, e o enfrenta explicitamente. Não se trata tanto de ingenuidade quanto de férrea defesa de um princípio, ainda quando esse princípio gere um conflito interno para a própria política (para o stalinismo, pelo contrário, não há conflito: tudo – a política, a economia e também a “criação intelectual” – está submetido ao mais despótico dos autoritarismos, e não como “medidas impostas e transitórias de autodefesa revolucionária”, e sim como regime permanente contrarrevolucionário) [...].

*Entre colchetes, comentários adicionais da tradução para este extrato, feitos por Lina Hamdan

[1] Mais questionável, em todo caso, é seu posterior e deficiente oportunismo, que na década de 1960 o levou a aceitar o Ministério da Cultura, no governo de De Gaulle. Mas, é claro, disto Trotski não chegou a enterar-se. No entanto, na já referida Literatura e Revolução, Trotski tinha feito elogios para A condição humana (cfr. “La revolución estrangulada. Una novela francesa sobre la revolución china”, em op. cit.), mas sem privar-se de atribuir a Malraux “individualismo e capricho estético”.

[2] Adorno, Theodor W.: Teoria estética, Madrid, Taurus, 1975.

[3] Díaz, Ariane: “Há 70 anos do Manifesto pela Arte Revolucionária Independente”, na revista Ramona 83, agosto de 2008.

[4] [Figura retórica de pensamento que consiste em complementar uma palavra com outra que tem significado contraditório ou oposto.]


[1Mais questionável, em todo caso, é seu posterior e deficiente oportunismo, que na década de 1960 o levou a aceitar o Ministério da Cultura, no governo de De Gaulle. Mas, é claro, disto Trotski não chegou a enterar-se. No entanto, na já referida Literatura e Revolução, Trotski tinha feito elogios para A condição humana (cfr. “La revolución estrangulada. Una novela francesa sobre la revolución china”, em op. cit.), mas sem privar-se de atribuir a Malraux “individualismo e capricho estético”.

[2Adorno, Theodor W.: Teoria estética, Madrid, Taurus, 1975.

[3Díaz, Ariane: “Há 70 anos do Manifesto pela Arte Revolucionária Independente”, na revista Ramona 83, agosto de 2008.

[4[Figura retórica de pensamento que consiste em complementar uma palavra com outra que tem significado contraditório ou oposto.



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