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Crônica | Quais as fronteiras do impossível?

Um relato sobre a greve dos professores do DF, paixão, política, ceticismo, comunismo e outras coisas.

Rosa Linh Estudante de Ciências Sociais na UnB

terça-feira 16 de maio de 2023 | Edição do dia

No meio dos grevistas, daqueles homens e mulheres, professores em luta, gritando e cantando, lotando aquela rodoviária toda, eu passava dizendo “Oh professor, pode lutar, o estudante tá aqui pra te apoiar!”. Imediatamente, alguns deles me olharam totalmente diferente, vi algumas delas olhando para trás e meio que dizendo “pode cantar!” quando eu estava checando se o som estava saindo certo. Um homem me parou, puxou meu braço e disse “de qual curso vocês são?” e eu disse que éramos de vários cursos da UnB e estávamos lá para apoiar essa luta tão importante, ele logo me disse “cara, vocês são foda!”, e eu disse “vocês é que são nossa inspiração!”. Ele apertou minha mão e me abraçou.

Aquele momento foi algo quase que intangível. Um homem que eu nunca vi antes. Talvez eu não o encontre, e se o encontrar não saberia dizer quem é, mas por um instante nada disso era importante, a única coisa que era relevante é que tínhamos uma mesma causa, estávamos na mesma trincheira. Um sentimento de solidariedade mútua me cobriu inteira. Ele nem me conhecia, não sabia meu nome, meu gênero, meus pronomes. O que importava era esse laço, essa chama dialética. Eu só queria expressar todo apoio, de que eu e minhas companheires da Faísca estaríamos lá não importa o que aconteça, apesar do reacionário do Ibaneis, das mentiras da mídia burguesa, da precarização, militarização, superlotação, e toda a miséria pelas quais passa a educação pública, não importa - ali, naquele momento, em meio a centenas e centenas de professores e professoras em greve, parando seu trabalho para defender o futuro da juventude, condições dignas de trabalho e também de vida, ali naquele momento havia uma certeza no meu coração de que essa era a classe que poderia parar tudo e mudar tudo pela raiz. Eu não sabia quais eram seus gostos musicais, o que ele lecionava na escola, qual escola ele tinha ido quando criança, eu não sabia seu nome. Aquele zeitgeist meio que me mexeu toda, parecia uma atmosfera de que, não importa o que aconteça, estaríamos um do lado do outro. Não havia nenhum romantismo, idealização ou qualquer coisa do gênero, era mais real que concreto. A escola não funcionam sem o professor. A juventude não aprenderia, não trabalharia, não viveria, não amaria e nem poderia desfrutar as belezas da arte e da ciência, mesmo que apenas um pouco, se não fossem os professores, eles e elas dia após dia desvalorizados, com o capitalismo massacrando eles, elas e as crianças, depredando as escolas e jorrando uma ideologia cretina de extrema-direita, gerando episódios como os ataques recentes pelo país. Aquela vontade de fogo ardia em mim, e de alguma forma eu senti aquela força nas mãos desse professor.

Era um soco na rotina, nas picuinhas do dia-a-dia, na sensação gradualista de que as coisas podem mudar aos pouquinhos com esse novo governo que nem sequer quer revogar a reforma do ensino médio ou a trabalhista, um tapa no ceticismo. Era como um catalisador numa reação química (e eu adorava química, graças a ótimos professores que tive) acelerava uma chama de vida e vontade inabalável. Não importa o quanto o machismo, a cisheteronormatividade, a família, todo esgoto neoliberal e reacionário, o peso do conformismo e a depressão que o sistema tenta nos impor e submeter. A luta de classes é o motor da história.

O espontâneo é o gérmen do consciente, já dizia Lênin. Apesar de todas as manobras que a direção cutista do sindicato impõe a esses trabalhadores, chegando ao ponto de em assembleias ameaçar que os contratos temporários seriam demitidos (!) caso entrassem em greve, tentando restringir a luta apenas a uma pauta salarial, corporativa, econômica; há um anseio claro e forte na base que ecoa muito mais do que isso, uma sede de vida. O trabalho é o que faz do ser humano diferente das outras espécies animais. O anseio de valorização do próprio trabalho não se limita apenas a uma remuneração melhor, algo que inclusive é o mínimo diante de anos e anos sem reajuste, mas há uma vontade genuína de viver, desfrutar das coisas boas que o mundo pode nos dar diante dessa breve passagem terrena que temos. O trabalho é que move o mundo, e com horas e horas dedicadas a formação das novas gerações, esse trabalho não serve? Não foi precificado o suficiente para o governador? Para os juízes e para a mídia? Como viver, não apenas sobreviver, num sistema que suga o tempo e a vontade de viver incessantemente, dia após dia? A precarização do trabalho, os contratos temporários que não tem estabilidade nenhuma e fazem o trabalho de um efetivo (às vezes muito mais) e ganham menos, é colossal. Os temporários, inclusive, são maioria da categoria, um batalhão de mulheres negras.

Não à toa, os professores diziam, contrariando Ibaneis, "porque um professor não pode ganhar que nem um juiz’? Logo Ibaneis, que aciona esse mesmo judiciário para criminalizar o direito de greve. Logo Ibaneis, um milionário, playboy, burguês, morador da mansão mais cara do DF no Lago Sul, defensor daqueles que mataram o cacique Galdino Pataxó. Tenho asco só de lembrar! ... Ah, mas a beleza do olhar dessas e desses professores em luta, essa chama inigualável e profunda dizia, mesmo sem dizer, que a luta é incansável, como os trabalhadores que ergueram Brasília se denominavam erguendo suas associações de luta, os Incansáveis da Ceilândia. Aquele momento dizia que a luta ela é por uma educação pública de qualidade, pelo futuro das novas gerações, contra a reforma do ensino médio que faz a juventude negra e periférica estudar para virar atendente de telemarketing. A burguesia quer fazê-los pagar pela crise. A burguesia no mundo todo, na França, Sri Lanka, Peru, Estados Unidos, Coreia do Sul, Brasil: ela quer fazer a classe trabalhadora pagar pela crise que ela mesmo criou. Mas não vai ser fácil. A classe trabalhadora é teimosa, e levanta a cabeça sempre.

Há uma energia criativa imensa nas massas. Era possível ver isso em menor quantidade naquela rodoviária lotada (mas não menor em qualidade!), nas danças improvisadas, nos grandes cartazes com as músicas anotadas no verso para todos poderem ver e cantar, na banda montada com trompete, bateria, instrumentos de percussão e tudo o mais. A criatividade humana, quando irrompe a luta, é profunda e maravilhosa. A questão, como comunista que sou, como militante da Faísca Revolucionaria no movimento estudantil, é pensar em como que toda essa energia não seja desperdiçada e sim seja canalizada para o fim revolucionário, para destruir esse sistema de miséria e erguer um mundo novo. Quero sentar com cada estudante na UnB e transmitir esse espírito, essa vontade a cada um, fazê-los ver além das fronteiras do possível, fazê-los imaginar até onde podemos ir.

De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades. Essa era a máxima que Marx cravou na Crítica ao Programa de Gotha. Se a classe trabalhadora tudo produz, se ela organiza tudo, faz as escolas funcionarem, educam e reeducam as futuras gerações, o poder dessa produção, da ciência, da arte e da cultura nas mãos criativas de quem faz tudo girar é intangível como aquele olhar singelo. Rompendo com a irracionalidade do mercado capitalista, planejando as grandes riquezas mundiais de forma social, organizando a tecnologia a favor das maiorias, a educação será um instrumento de elevação da vida em todos os seus aspectos. Hoje, as crianças vão à escola comer merenda porque não tem comida em casa. Quando esses professores, trabalhadores, mulheres negras e periféricas tomarem o céu de assalto, passando do reino da necessidade ao reino da liberdade, onde todes podemos ter direito ao que quisermos e contribuir com o que pudermos, num mundo sem classes, sem Estado, sem fronteiras, sem opressão - as crianças tentarão fundir a teoria da relatividade e a mecânica quântica, vão explorar os buracos negros, desvendar os mistérios da psique e do amor, como se estivéssemos em um filme de ficção científica, num laboratório livre e maravilhoso, mas muito mais apaixonante…

Antes do ato, eu conversei com um amigo da portaria da UnB. Estávamos falando de amor. Sobre o sentido da vida nesse sistema e se era possível amar para além dos instintos, da natureza humana. Em certo momento eu disse que talvez ele fosse meio cético. Depois eu fiquei pensando se isso não foi meio duro. Eu estava pensando esses dias se eu conseguia mesmo manter relações humanas duradouras com as pessoas, se eu merecia o reconhecimento ou o afeto de outras pessoas. Acho que esse episódio me provou o contrário. Acho que esse texto talvez seja uma forma de mostrar a ele, e a tantos outros estudantes e trabalhadores, que a beleza criativa da vida, das possibilidades do amor e da amizade são muito mais profundas daquelas que o sistema quer nos vender e nos impor, das ideias que a burguesia nos vende como sendo verdades. As possibilidades dessa classe que tudo produz e tudo pode mudar são infinitas. Não existem barreiras entre a revolta e a revolução. A vida será tão bela quanto a própria arte, dizia Trótski sobre o comunismo. A grande questão, é que precisamos organizar essa energia e construir uma ferramenta, um partido que extraia as lições do passado para vencer hoje. A única coisa que sei é que vale a pena, com os erros e tropeços, não faria diferente. A poesia da revolução é ardente, um sopro de vida que não pode ser parada nem se me prenderem, nem se matarem.

Eu não sei se encontrarei mais esse companheiro professor, se eu o verei novamente, se ele passar por mim não sei se lembrarei dele ou vice-versa. Mas onde quer que esteja, o levarei em cada piquete, em cada ato, em cada cafezinho com os trabalhadores da UnB, em cada conversa apaixonada com os estudantes. Apenas obrigada!




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