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Análise Nacional | Reforma tributária: a disputa entre grandes grupos econômicos pelo orçamento público

O sistema tributário no Brasil, ou seja, o conjunto de impostos que afeta a produção e circulação de riquezas, é notoriamente um produtor e acentuador de desigualdades. A atual reforma tributária irá melhorar esse sistema?

Danilo ParisEditor de política nacional e professor de Sociologia

sexta-feira 7 de julho de 2023 | Edição do dia

Em tramitação em tempo recorde, o esboço original da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Reforma Tributária recebeu aprovação preliminar na noite de quinta-feira (6), contando com o apoio de 382 parlamentares, uma quantidade maior do que os 308 votos necessários para aprovar uma mudança constitucional. Houve 118 votos contrários e 3 abstenções. Por volta das 2 horas da manhã, a proposta passou pelo segundo turno de votação. Na última rodada, houve 375 votos favoráveis, 113 contrários e três abstenções. Agora, a PEC será encaminhada para o Senado Federal.

Junto com sua aprovação, o debate sobre os problemas gerados pelo sistema tributário brasileiro, especialmente suas características regressivas, ganhou maior destaque. O motivo pelo qual o sistema tributário brasileiro amplia as desigualdades é porque a maior parte dos impostos incide sobre o consumo, e não sobre o patrimônio e a renda. Como os trabalhadores e os setores mais pobres são os que têm a maior proporção de sua renda comprometida com o consumo, acabam sendo aqueles que arcam com uma carga tributária mais pesada proporcionalmente.

Embora seja uma ideologia liberal considerar a possibilidade de um sistema de tributação justo, uma vez que nenhuma mudança no sistema de tributação pode eliminar a desigualdade proveniente de uma sociedade dividida entre aqueles que vivem de salário e aqueles que lucram com a exploração do trabalho, o sistema vigente no Brasil é caracterizado como regressivo. Em vez de promover uma melhora na distribuição de riqueza, ele provoca sua maior concentração.

O oposto acontece com grandes empresas, bilionários, banqueiros e o sistema financeiro. Para eles, não apenas o Brasil tem uma das menores taxas de impostos do mundo, mas também aumentam suas riquezas por meio de mecanismos de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos.

Esse panorama estrutural do sistema tributário não mudará em nada. Não é por acaso que Tarcísio de Freitas, Romeu Zema, a FIESP e até Arthur Lira estão unidos a Haddad e ao governo de Lula em favor da aprovação da reforma. Basta observar o entusiasmo nos editoriais dos grandes meios de comunicação para ver a quem essa reforma realmente interessa.

Até mesmo a bancada evangélica sai agraciada com essa reforma. O texto aprovado da reforma ampliou isenção de impostos para entidades religiosas e beneficiou empresas ligadas a igrejas. É a representação direta do favorecimento de um pilar do bolsonarismo, que será beneficiado com essa reforma, como os conglomerados econômicos de gente como Silas Malafaia e Edir Macedo.

Nesse momento, seu formato final ainda não seja completamente visível, especialmente porque existem questões importantes que ainda serão definidas, como a alíquota (percentual de impostos) que será aplicada, além de uma implementação gradual ao longo de alguns anos econômicos.

Em resumo, é um plano que busca otimizar os ganhos financeiros de grandes grupos econômicos, e em particular, o setor industrial parece ser o mais beneficiado, conforme expresso no manifesto da FIESP. Isso ocorre porque a simplificação dos impostos reduz a acumulação dentro da cadeia produtiva, aumentando os lucros desse setor empresarial.

Essa chamada simplificação ocorre porque a reforma propõe a substituição de quatro tributos federais (PIS, Cofins, PIS-Importação e Cofins-Importação) por uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), gerida pela União; e a substituição de outros dois tributos (ICMS e ISS) por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), gerido por estados e municípios.

A arrecadação do IBS será centralizada e organizada por um Conselho Federativo, que também será responsável por criar fundos para compensar as perdas dos entes federativos.

Com esse arranjo, é possível que a União tenha um controle maior sobre o orçamento, em detrimento do que previamente vigorava entre estados e municípios. Isso foi uma fonte de tensão que inicialmente colocou alguns estados e municípios como opositores da reforma, mas que começaram a convergir nos últimos dias para um acordo.

Em particular, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás eram estados onde esse movimento ocorreu. No entanto, as negociações avançaram e foi significativo o aparecimento conjunto de Tarcísio e Haddad em defesa da reforma. Os pontos de tensão e negociação também se estendem para a própria composição do Conselho Federativo que irá gerir parte dos recursos, além de questões políticas importantes.

Entre elas, o conflito aberto entre Bolsonaro e Tarcísio ganhou destaque. Desde o início, Bolsonaro tem se declarado abertamente contra a reforma e busca pressionar para que seu partido, o PL, vote em bloco contra a reforma. Após a mudança de posição de Tarcísio, veio a público um vídeo de uma reunião de Tarcísio com deputados e com o próprio Bolsonaro, onde ele foi severamente questionado sobre essa posição, inclusive pelo próprio ex-presidente. Talvez seja o início de uma maior separação entre eles, que ainda não está definida, mas que mostrou seu principal momento de crise pública.

A posição de Bolsonaro talvez reflita a posição de alguns setores do agronegócio e dos setores de serviços. No caso dos primeiros, a reforma não altera nenhum de seus privilégios e isenções. Além disso, eles ainda conseguiram maiores isenções para agrotóxicos e aeronaves utilizadas em suas atividades. No entanto, por se tratar de um setor que produz principalmente itens primários, a reforma não trará melhorias substanciais.

No caso do setor de serviços, alguns pontos de sua tributação podem aumentar, especialmente porque era um setor que tinha maiores vantagens no sistema anterior. Considerando que o varejo foi um dos grandes setores que apoiaram o bolsonarismo, não seria estranho considerar que esses mesmos setores estão por trás da posição de Bolsonaro.

Por último, mas não menos importante, há um cálculo político na movimentação de Bolsonaro. Mesmo inelegível, ele pretende se manter como a principal figura opositora a Lula, e para isso tem que tomar iniciativas diante de algumas agendas do governo.

No meio dessa disputa acirrada entre diferentes frações da burguesia, surge a posição de alguns deputados do PSOL, como Guilherme Boulos, que de maneira um tanto ridícula tenta vender a reforma como um avanço. Para isso, afirma que agora quem tem jatinho pagará IPVA e que acabou a "farra das isenções".

Quanto à primeira afirmação, é uma medida tão pontual que não poderia sequer ser considerada uma verruga nessa arquitetura regressiva do sistema tributário brasileiro, que ele mesmo antes denunciava como "Robin Hood às avessas". Já em relação à segunda afirmação, o deputado precisa fazer malabarismos retóricos para chamar de isenção o que antes era cobrado sobre alguns itens da cesta básica. O que ele não diz é que as enormes isenções não se referem a isso, mas sim às destinadas a favorecer grandes grupos econômicos e industriais.

Enquanto a reforma tramita, com a celeridade de Lira, que busca se mostrar como um bom serviçal dos interesses da grande burguesia, Haddad e o PT fazem demagogia, dizendo que a reforma irá aumentar empregos e a renda. É a mesma ladainha liberal de todas as reformas, quando se tenta vender "avanços sociais" que na verdade só beneficiam os milionários e grandes capitalistas.

É preciso questionar o conjunto dessa arquitetura que determina a distribuição de renda na sociedade. A dívida pública, que desvia trilhões do orçamento público para os grandes bancos, com recursos provenientes também desse sistema tributário, sequer é debatida publicamente. Além disso, o Arcabouço Fiscal, que serve para restringir os investimentos públicos a fim de garantir o pagamento religioso dessa mesma dívida, sequer é questionado pelos defensores da "eficiência" de um novo sistema tributário.

Ao invés de vender uma mentira sobre essa reforma, como se ela fosse "progressista", aqueles que se consideram de esquerda deveriam questionar o conjunto desses mecanismos que drenam a riqueza de milhões para satisfazer os interesses de um punhado de capitalistas, defendendo a revogação integral de todas as reformas e o não pagamento da dívida pública.




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