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Debate | Resistência-PSOL: tão perto da burocracia sindical na França, tão longe de existir na luta de classes

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 5 de abril de 2023 | Edição do dia

"Estrelas, escondam suas chamas; não deixem a luz ver meus desejos obscuros e profundos" - Macbeth

Dizem que há um lugar especial no inferno para os que invertem a realidade a fim de respaldar suas opiniões. Pior ainda para os que usam a invenção alheia para esconder as próprias opiniões. O Resistência/PSOL - sim, o mesmo que sugeriu apoio a Emmanuel Macron no 2º turno de 2022 - sequer encontrou tempo para inventar uma leitura sobre os acontecimentos na França, centro de gravidade da luta de classes mundial. Para assuntos internacionais, essa corrente prefere poupar-se a fadiga, e exibe engenhosa energia... espelhando a visão dos outros.

O Resistência publicou artigo sobre a luta contra a reforma da previdência na França, de Antoine Larrache. Larrache pertence à direção mandelista do NPA, que se rompeu em dois numa crise política profunda que os arremessa nos braços do movimento reformista La France Insoumise (LFI), de Jean-Luc Mélenchon. Este que, por sua vez, divide tarefas com as centrais no quesito da desmoralização das massas. Enquanto a Intersindical freia o movimento nas ruas e nos locais de trabalho, Mélenchon e a LFI fazem o mesmo usando o terreno parlamentar.

O objetivo do petit texte, por um lado, é saudar a política da burocracia sindical francesa, reunida na Intersindical dirigida pela CFDT de Laurent Berger e a CGT de Philippe Martínez e Sophie Binet. A Intersindical é atualmente um dos principais pilares de sustentação do governo Macron, da reforma da previdência e da V República imperialista. Larrache nem precisa ser do Resistência para sabermos que retrata fielmente a opinião dessa organização. Em uma nota de quem se sente abençoado por observar as coisas de muito longe e não precisar responder pelas próprias posições, Valério Arcary diz que “a força da resistência [francesa] é liderada pelos sindicatos e organizações de esquerda”, saudando a burocracia da Intersindical, sem qualquer crítica. A Intersindical existe para alegria do melhor dos mundos.

Por outro lado, o objetivo do Resistência, que concorda com a Intersindical, é atacar a política da nova organização da extrema esquerda francesa que busca combater a política derrotista das burocracias reformistas, o Révolution Permanente (RP). Tudo isso em meio à campanha repressiva do Ministro do Interior, Gérald Darmanin, contra os trotskistas e a vanguarda dos trabalhadores, em que o RP naturalmente é um dos alvos. Essa jovem organização vem tendo uma aparição no movimento, junto a operários e estudantes em todo o país, em meio à crise do NPA (Novo Partido Anticapitalista) e da paralisia da Lutte Ouvrière, as duas organizações tradicionais desse espaço político. Assim o reconhecem personalidades do jornalismo, como Abel Mestre, editor político do Le Monde, para quem “Neste movimento, a exposição do Révolution Permanente e de suas organizações satélites (por exemplo, Le Poing Levé) é verdadeiramente impressionante em relação ao peso desta corrente. O RP aproveita o vácuo deixado por uma Unef moribunda [velha organização estudantil dirigida pelo PCF, NdT] e um NPA em crise”. É o caso de Sylvia Zappi, também do Le Monde, para quem “é impressionante como o RP encabeça uma grande parte das colunas de jovens nas manifestações”, e de Marceau Taburet, do jornal Libération, para quem o RP, nesse movimento, “já conquistou um lugar de direito”.

Ler aqui: França

Elsa Marcel, do RP, denunciando o governo Macron em confronto direto com deputado da extrema direita, no canal France5

O Révolution Permanente não compreenderia “as dificuldades do movimento” e estaria “criando rupturas dentro dele”. Todos os setores sociais que se enfureceram com o obstáculo burocrático da Intersindical e buscam superá-lo pela base são considerados como “divisionistas” pelo Resistência no Brasil. Essa apreciação de Larrache/Resistência é basicamente a mesma que aquela de Ugo Palheta, antigo dirigente do NPA, publicada no Contretemps. Também incomodado com o crescimento do Révolution Permanente, Palheta lançou uma campanha de propaganda em favor da direção burocrática da Intersindical, aparentemente sem a qual seria impossível conceber a luta contra a reforma. Segundo Palheta, um dos pontos mais fortes do movimento é a "unidade da frente sindical, sem a qual é duvidoso que o movimento tivesse conquistado tamanha amplitude e colhido tamanho acatamento na população". Agrega que "as dificuldades do movimento não se explicam, de maneira nenhuma, pelo papel nefasto da Intersindical". Não admira a decadência do NPA. O mundo fica de cabeça para baixo: as massas não estariam dispostas a se autoorganizar, então a direção Berger-Martínez faz o que pode. Com uma esquerda assim, as grandes transformações sociais ficariam para as calendas gregas.

As fontes do Resistência não são um acidente. Com efeito, a única coisa que essa organização vinculada ao governo Lula-Alckmin tem a oferecer sobre a França, como diria Jack London, é sua própria ignorância e confusão.

E que confusão! Em um mesmo parágrafo, Larrache/Resistência diz que a "liderança de [Philippe] Martínez [da CGT] favorece acordo com a CFDT [de Laurent Berger], que desempenha um papel positivo no movimento"; em seguida à saudação às lideranças burocráticas que freiam de maneira determinada a luta contra a reforma da previdência, diz que o movimento precisa se "emancipar" do acordo para "construir a greve geral"; poucas linhas depois, sugere que o movimento contra a reforma da previdência "poderia ser levado ao fim em um breve espaço de tempo", já que há "dificuldades objetivas difíceis de se contornar". Falando sobre coisas que se contradizem entre si, e que não tem conexão uma com a outra, o Resistência espera salvar a alma das críticas. Como não somos padres de confessionário, temos de admitir que a ignorância não é um salvo-conduto. Por isso, perguntamos: Por que falar da possibilidade de construir a greve se a esperança está na burocracia sindical que a freia? Por que falar de greve geral se as “greves renováveis fracassaram, a juventude se atrasou e a repressão ultrapassou os limites”? Por que fingir ser arauto do triunfo quando se age como o coveiro que encontra o crânio de Yorick?

Vejamos:

No artigo, Larrache/Resistência diz que “mantemos sempre a posição de construção da greve, renovável sempre que possível”. Realidade: a burocracia da Intersindical é contrária às greves renováveis. Já no dia 7 de março, Laurent Berger, líder da CFDT e da Intersindical, havia denunciado o desejo dos grevistas de “fazer ajoelhar a economia francesa” (paralisar o país e sua burguesia), e atacou a política de multiplicação das greves renováveis dizendo que a Intersindical nunca defendeu esse tipo de ação. Em seguida, se opôs abertamente à greve dos garis de Paris (TIRU d’Ivry), um dos maiores emblemas do heroísmo operário contra a reforma da previdência, à tomada das refinarias pelos petroleiros em greve, e também à greve dos professores durante os exames. Philippe Martinez não adotou posição crítica a Berger. Como denunciou o ferroviário Anasse Kazib, “o método da Intersindical é adiar as datas das jornadas de mobilização nacional, a fim de quebrar definitivamente as greves renováveis”.

No artigo, Larrache/Resistência diz que “mantemos a batalha pela auto-organização, apesar das grandes dificuldades”. Realidade: a burocracia da Intersindical, que “cumpre um papel positivo”, é a maior inimiga da autoorganização. Desde fevereiro, Berger anunciou à Macron que “a CFDT não será ultrapassada pelo movimento”. A Intersindical nega o direito às assembleias de trabalhadores definirem os rumos do próprio movimento: tirou a greve das mãos dos grevistas. Dezenas de milhares de grevistas entraram em greve: nos setores de energia, do petróleo, do tratamento de resíduos e transporte público, à parte os trabalhadores, como os petroleiros da refinaria Total-Normandia e do centro técnico dos trens de alta velocidade de Châtillon, que buscam se organizar pela base. Em todos esses casos, são abandonados pela Intersindical, que ajuda seu isolamento e enfraquecimento. Que “autoorganização” é essa de Larrache/Resistência, feito com Berger e Martínez?

No artigo, Larrache/Resistência diz que “incentivamos uma visão política do movimento [...] contra o poder de Macron, sua polícia, os patrões”. Realidade: A Intersindical rechaçou a politização do movimento, e defendeu sempre a restrição à consigna limitada da reforma da previdência, limitação programática que se contrapôs à expansão do movimento. Quando a radicalização explodiu nos calcanhares de um governo sem força, debilitado e isolado, após o decreto 49.3, a Intersindical abandonou até mesmo a consigna de derrubada da reforma, e passou a reivindicar uma “pausa” na sua implementação. Ademais, diante da repressão policial e das requisições (investidas da polícia para obrigar operários a voltarem ao trabalho à força), os líderes das confederações sindicais, a CFDT ou a CGT, não têm feito absolutamente nada. “Seja Martínez ou a nova direção da CGT, não tivemos nenhum sinal de vida das centrais sindicais em face das requisições que sofremos. Nenhum contato, nenhuma discussão sobre o assunto”, denunciou Alexis Antonioli, presidente da CGT-Energia na refinaria da Normandia. Ao contrário de enfrentar a polícia, a Intersindical fecha os olhos diante das requisições anti-greve pela polícia.

Elsa Marcel, do RP, denunciando a repressão policial

Ou seja, é impressionante como erram tudo o que falam! O “papel progressista” que Larrache/Resistência dão à unidade da burocracia sindical é o de conduzir o movimento a um beco sem saída, limitar o repertório de ações a manifestações cada vez mais impotentes contra a violência do Estado, e desgastar os grevistas com jornadas espaçadas.

Apesar disso, o Resistência, que ouve o galo cantar mas jamais sabe onde, nos informa que a luta pela greve geral deve ser feita “com o movimento como ele é, levando em conta a consciência de classe como ela é, e não como se sonha que ela seja”. A tradução do pensamento é: nenhuma luta política com as burocracias reformistas que estão asfixiando conscientemente o movimento. Nos manuais dos petits bureaucrats, essa é a definição da auto-complacência, em que o papel subjetivo da disputa de programas e estratégias na luta pelo avanço da consciência é igual a zero. Devemos aguardar piedosamente o momento em que o movimento alcançará por si só uma dinâmica disruptiva antiestatal, enquanto as burocracias destroem a mobilização pouco a pouco.

O petit texte parece, portanto, escrito por dois personagens reunidos numa só alma: alguém que olhou o movimento francês e colocou o gorro de dormir pelos últimos dois meses, ou um decidido defensor da linha institucional da burocracia reformista nos sindicatos. É tão boa propaganda da Intersindical que Berger cotaria levar Larrache/Resistência a um cargo secundário da CFDT.

Como afirma Juan Chingo, “a unidade da Intersindical, apresentada, até mesmo por muitos sindicalistas de base, como a chave da vitória, é uma loucura, um crime, diante do impasse cada vez mais explícito da estratégia das lideranças das confederações. Podemos dizer com segurança que o principal obstáculo para a transformação do ‘momento’ pré-revolucionário em uma situação abertamente pré-revolucionária, ou mesmo revolucionária, é a liderança conservadora e institucional do movimento operário”. Qualquer esquerda que seja digna de pensar a passagem da revolta à revolução busca pensar as condições para superar os mecanismos do Estado integral para avançar o momento pré-revolucionário na França. Isso, naturalmente, irrita os Palhetas, Larraches, e seus espelhos no Brasil, muito longe do pensamento estratégico.

Sustentar os piquetes de greve, buscar generalizar a greve nas categorias, retomar o controle do movimento pelos próprios grevistas através da auto-organização contra a estratégia derrotista da Intersindical: essa batalha é levada adiante pelo Révolution Permanente. Não à toa, é alvo das burocracias, e de seus cúmplices de segunda categoria. Depois de tanta purpurina lançada à CFDT-CGT, Larrache/Resistência consideram o Révolution Permanente como “sectários” que “negam as dificuldades do movimento e criando rupturas dentro dele”. Assim, apaziguam a Intersindical, verdadeira responsável por dividir o movimento e fragmentar a classe trabalhadora, negando-lhe a autoorganização e um programa expansivo para que todas as camadas trabalhadoras ingressem na luta contra Macron.

Rede pela Greve Geral, junto aos trabalhadores da refinaria Total-Normandia, na total ausência da Intersindical

Junto à Rede pela Greve Geral, reagrupamento de vanguarda que reúne inúmeros ativistas independentes, artistas como Adèle Haenel, intelectuais como o filósofo Fréderic Lordon, referências do movimento antirracista como Assa Traoré, entre outros, o Révolution Permanente lançou uma forte política pela construção de comitês de ação pela greve geral. Sem ajoelhar-se diante dos limites impostos pela Intersindical (“consciência atual do movimento”, segundo Larreche/Resistência), a Rede busca defender os piquetes de greve, lutar contra as requisições policiais, incrementar a autoorganização e expandir o programa para incorporar as demandas salariais e a luta contra a precarização do trabalho, única maneira de englobar as grandes massas precárias dos trabalhadores ao movimento.

Chegada da Rede pela Greve Geral no piquete dos petroleiros da Total-Normandia, para combater as requisições da polícia

A Rede pela Greve Geral publicou novo manifesto no site francês Politis, com 250 ativistas, sindicalistas, intelectuais, artistas, questionando a estratégia da Intersindical, defendendo a autoorganização e o reforço dos bloqueios e greves em curso, com os comitês pela greve geral. Qualquer setor da esquerda que se aventure a escrever algo sobre a França sem mencionar o papel da Rede pela Greve Geral - um exemplo de nova instituição de reagrupamento da vanguarda, atuando no terreno da luta de classes para unificar os trabalhadores que a Intersindical dividiu - está fadada ao delírio.

Com a juventude do Le Poing Levé, o RP está nos piquetes mais importantes, como na refinaria Total-Normandia, na refinaria de Donges, no centro técnico de Châtillon assim como esteve no centro de tratamento de resíduos de Ivry, bastião dos garis de Paris, para auxiliar no avanço da luta. Na televisão, combate os ministros de Macron e os políticos da extrema direita de Marine Le Pen, como fizeram Elsa Marcel e Ariane Serge.

Jovens do Le Poing Levé, enfrentando a polícia junto aos garis em greve de Paris

Ariane Anemoyannis, do Le Poing Levé, denunciando o governo a uma entrevistadora de direita

Essa é a extrema esquerda que cresce na França. O Révolution Permanente, ao estar junto com as dezenas de milhares de trabalhadores e jovens na luta de classes, contra os divisionistas das direções reformistas, prossegue seu enraizamento nos setores estratégicos e nos movimentos sociais. Um coquetel odioso à Berger-Martínez, e também para os seus cúmplices na França, e no Brasil.

A quinta roda da burocracia sindical francesa, no Brasil, continua sonhando com o milagre da greve geral à la Berger. Que descansem na paz daqueles que inexistem na luta de classes.




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