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Feminismo internacionalista: O caso da argentina Thelma Fardin contra seu agressor e a justiça brasileira

Thelma Fardin é uma atriz argentina de 30 anos. Aos 16 anos, em 2009, numa turnê do espetáculo infantil Patito Feo, na Nicarágua, foi violentada por Juan Darthés, ator argentino-brasileiro, 28 anos mais velho que Thelma. A denúncia foi tornada pública em 2018, junto a um grupo de atrizes argentinas que se levantaram contra a indústria do entretenimento e as relações de poder e de assédio sexual nesse meio.

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

quinta-feira 8 de junho de 2023 | Edição do dia

Juan Darthés, que tem dupla cidadania, conscientemente fugiu para o Brasil logo depois que a denúncia pública foi feita. Essa vinda repentina de Darthés ao Brasil não foi motivada pela saudades da sua terra natal, foi uma estratégia jurídica para que não respondesse pelas acusações de estupro que lhe era imputada e para escapar do movimento político desatado a partir da denúncia corajosa de Thelma Fardin. De acordo com a lei brasileira, um cidadão brasileiro não pode ser extraditado. Assim, se fosse julgado, só poderia ser no Brasil e sob leis brasileiras.
A enorme repercussão que a campanha tomou graças à atitude corajosa de Thelma, deveria servir para impedir que Juan Darthés tivesse o mesmo destino que futebolistas como Robinho, Cuca e outros tiveram. Mas, a justiça burguesa brasileira nunca foi uma aliada.

Nos tribunais

O julgamento teve início em 2021, com diversas idas e vindas. No início de 2022, após vários depoimentos de testemunhas e faltando apenas duas audiências para o final do julgamento, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela anulação por determinar que o país não tinha jurisdição para julgar os fatos, além de outras mil tecnicalidades jurídicas. Após novo revés, o caso voltou a julgamento. Ainda assim, o acusado tentou todas as estratégias para impedir que se seguisse com o processo..Somente no final de 2022 Darthés apresentou sua defesa no tribunal, por quase duas horas. No entanto, se recusou a responder às perguntas da promotoria e da advogada de acusação. Seu silêncio perante o júri não foi, senão, uma tentativa de calar o grito das mulheres.

Agora, em maio de 2023, a justiça brasileira mais uma vez abusando de uma tecnicalidade jurídica, absolveu Juan Darthés. O detalhe técnico ao qual o juiz Fernando Toledo se apegou na argumentação da defesa diz respeito ao que é considerado estupro e sua prescrição. Toledo afirma que está comprovado que, por meio de práticas de sexo oral e penetração vaginal com os dedos, o homem abusou da adolescente. No entanto, o juiz alega que a lei da época dos fatos somente considerava estupro se houvesse penetração peniana. E para a Justiça isso não está comprovado.

Em junho de 2009, quando ocorreram os eventos relatados por Thelma, o Código Penal brasileiro passou a considerar como crime de estupro não apenas atos com conjunção carnal, ou seja, quando há penetração peniana na vítima, mas também todo ato que visa constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso (Lei 12.015/2009). Até junho de 2009, a lei considerava atentado violento ao pudor quando não havia penetração. A mudança na lei buscava responder uma demanda do movimento de mulheres internacionalmente em relação à dignidade sexual e a violência contra a mulher de todo tipo, dado os crescentes casos de assédio e violência sexual contra a impunidade diante da justiça brasileira.

Os casos de estupro e violência sexual até os dias de hoje são subnotificados seja pela culpabilização das vitimas que, com medo do julgamento social não conseguem efetivar a denúncia, seja a sua revitimização nos hospitais, nas delegacias e tribunais, onde sofrem com todo o tipo de violência estatal. Segundo dados extra-oficiais a taxa de condenações por estupro no Brasil gira em torno de 1% ( Hélio Buchmüller, o perito criminal federal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, no artigo Crimes sexuais: a impunidade gerada por um Estado omisso).

De acordo com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) o relato da mulher vítima de violência deve ser levado em consideração como prova relevante para a apuração dos crimes. No entanto, a justiça brasileira, na figura do juiz Fernando Toledo, ignorou o depoimento de Thelma, absolvendo Darthés, pois o crime cometido por ele que foi reconhecido pelo juiz já havia prescrito .

#Mirácomonosponemos

As denúncias de Fardin ganharam as ruas, despertando a fúria do movimento de mulheres argentino. No país que deu origem ao movimento por Nenhuma a menos (#NiUnaMenos) as acusações de Fardin contra Darthés deu vazão à enorme repulsa das mulheres contra a situação degradante que o patriarcado lhes impõem. A hashtag #miracomonosponemos foi o grito engasgado na garganta.

No entanto, casos como o de Mari Ferrer, por exemplo, mostram que a lei diante de um judiciário imerso no patriarcalismo não é capaz de barrar a violência e ou sequer impedir a impunidade, mesmo depois de superadas as barreiras que impedem as denúncias de acontecerem. Vale lembrar que Mari Ferrer foi brutalmente humilhada pelos promotores e juízes do caso. A vítima, que foi drogada e violentada num bar, teve sua vida exposta e julgada, sua dignidade desrespeitada pelos agentes da lei e depois de um contorcionismo jurídico absurdo, com uma afirmação implícita ultrajante de que há estupros culposos, quando não há a intenção de estuprar(?) numa sociedade cujo sustentáculo se baseia na opressão e submissão do corpo da mulher, foi condenada moralmente e o agressor absolvido. Quando a justiça está decidida a ser injusta, nada a corrompe. Assim é a justiça burguesa.

O judiciário, braço do estado burguês, não esconde a profunda herança patriarcal ao absolver Darthés (absolvido é verdade, porém não inocente) transformando a vítima em ré, condenando-a a viver com o seu grito de dor entalado na garganta. A autoritária justiça dos ricos é rápida em absolver um famoso galã símbolo do poder da indústria cultural que por anos permitiu a homens como Darthés, José Mayer, para citar um exemplo brasileiro. Tão rápida quanto para atacar a classe trabalhadora, especialmente as mulheres trabalhadoras negras, abraçado à extrema-direita e a sede de lucro dos capitalistas. Foi justamente a sede de lucros dos patrocinadores que pressionou o Corinthians a suspender o contrato de Cuca e não qualquer solidariedade à vítima. Toda essa violência é sustentada pelo Estado porque patriarcado e capitalismo estão juntos para perpetuar essa opressão

O estado, capitalista e patriarcal, apesar de reconhecer as mulheres como vítimas, com leis que aumentam seu poder punitivo revitimizam as vítimas em delegacias e tribunais e é incapaz de prevenir ou mesmo diminuir a taxa de feminicídios.

O combate de Thelma Fardin demonstra que é preciso desmascarar as instituições burguesas e destruí-las. “Esta es una batalla que ganamos, hay muchas personas que se animaron a romper el silencio y hoy, a ellas les digo que esto no nos adoctrina. La justicia se verá inundada de denuncias”. O Pão e Rosas no Brasil, presente em mais de sete estados, se coloca ao lado de Thelma Fardin na luta por justiça, para que o reconhecimento de que foi vítima de uma violência atroz, não a revitimize e cale a todas as mulheres, mas fortaleça a luta para por abaixo o patriarcado.

O grito não vai ficar entalado em nossas gargantas. Vejam como ficamos, vejam como lutamos.




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